2017

Primeiro tinha sido o assassinato do guerrilheiro, comemorado em praça pública com clamor tão intenso que abafou os raros protestos por ação tão atroz.

Depois foi o linchamento do tirano, sob clima de festa. Desta vez os algozes, não tão poderosos quanto os outros, tinham sido obrigados a reconhecer a hediondez do ato, se eximindo da atuação, abdicando de compartilhar todas as glórias dela advindas.

Povos recém libertados tornavam a sentir o açoite, mais intensamente ainda que antes, medido e aplicado por aqueles que anteriormente haviam sentido o seu furor.

Navios fantasmas singravam os oceanos a longas distâncias de qualquer testemunha. As embarcações execráveis traziam cativos prisioneiros sequestrados em todos os cantos do planeta. A dor que impunham aos desgraçados em nada se comparava ao terror que os fazia sentir; um pânico “científico” induzido por ameaças, torturas, e amplificados por drogas escusas, inconfessáveis.

Tais abominações ocorriam sob a iminência do caos, e da pressão de grandes perdas econômicas, enquanto as cifras financeiras esvaíam-se em pó por quase todo o ocidente.

Paralelamente a isso, a grande nação do oriente retomava seu papel no mundo, desequilibrando economias, pulverizando riquezas consolidadas.

Conflitos tradicionais foram retomados, reabrindo feridas recentes, enquanto novos ventos pareciam fazer tender as batalhas para novas direções, redescobrindo ódios intensos.

Mas, sobre todas as coisas, a superioridade produtiva do novo gigante econômico se impunha sobre as vãs tentativas de oposição à nova força inexorável que se revelava.

Em meio a tal cenário, e a uma atmosfera de descontentamento geral, os guerreiros da grande nação elegiam seu novo líder, amargo, potente e duro. Sua voz arrogante se erguera sobre todas as outras, insuflando ânimos, incendiando paixões, e acendendo ódios inauditos; conquistando dessa maneira os corações de todo o povo.

Apenas poucos meses separaram a normalidade atormentada do esforço de guerra concentrado, da convergência de todos os esforços para uma única meta, para a finalidade singular e nefasta de destruição do inimigo.

A eleição do novo líder lançava a sorte e as sombras sobre todo o planeta.

Os novos exércitos mais pareciam brinquedos letais. Máquinas animadas de todos os tamanhos invadiram céus e terras levando com elas a destruição. Bombas aladas, teleguiadas, procuravam seus alvos em meio às trevas ubíquas decorrentes das grandes explosões. enquanto os novos soldados permaneciam sentados nas salas subterrâneas controlando os joguetes à distância, do mesmo modo que vinham treinando desde a infância.

Encerrados em subterrâneos profundos, os militares se resguardavam de ataques, deixando como alvos expostos apenas instituições civis. Protegidos das bombas nas profundezas, deixavam à mercê do flagelo as populações espicaçadas pelas explosões, pelos raios mortais e por toda a sorte de armadilhas engenhosas e surpreendentes espalhadas pelo o planeta.

Brinquedos espiões se confundiam com insetos, pássaros e peixes. Máquinas mortais vasculhavam rodovias e planícies, enquanto bólidos explosivos riscavam os céus.

Apenas os índios do sul empunhavam antigas armas, quase inócuas contra as novas criaturas letais.

* * *

Uma aranha se posicionava em um canto do teto, certamente uma espiã. As aranhas já não atraiam tanta ira como quando foram descobertas; espalhavam-se por todos os lugares, ubíquas, inextinguíveis. Também os mosquitos já não chamavam mais atenção, confundindo-se com os naturais, quase indistinguíveis deles. De fato, nem chateavam tanto quanto os antigos, os sugadores de sangue. Esses continuavam a incomodar o sono e espalhar doenças, como vinham fazendo por milênios. Não havia provas de que as maquinetas voadoras disseminassem doenças, conforme as crenças populares, nenhum mecanismo injetor havia sido encontrado, funcionavam apenas como espiões, colhendo imagens com seus olhos, transmitindo e retransmitindo os sinais de rádio pelos ares, numa rede imensa. Para a transmissão de doenças, os naturais eram mais eficazes, e quase indubitavelmente utilizados. Para a transmissão de dados até a poeira era utilizada.

A vida vinha melhorando naquelas paragens antes da irrupção da guerra nefasta e incompreensível. Depois, numerosos exércitos locais haviam sido armados para a luta corpo a corpo, uniformizados e obedientes. A desmobilização quase total só demorou porque as hostes liberadas das tropas nada teriam a fazer, sob uma economia alquebrada que murchava a cada dia. Mas os inimigos eram impalpáveis, ou quase. Algumas bombas riscando os céus, descendo sozinhas desde as alturas, e a multidão de artrópodes. Havia também os carrinhos controlando as estradas, mas nada disso possuía um rosto, eram apenas máquinas, brinquedos. Fora de propósito tentar metralhar mosquitos.

Seguiram-se os exércitos de exterminadores, armados com pulverizadores carregados nas costas como mochilas. A ausência de garbo na função acarretou a insurgência das tropas e a desmobilização das massas. Os mosquitos acabaram esquecidos, ou se incorporaram à normalidade do mundo. Depois disso, a participação dos índios do sul no conflito se resumiu à perplexidade. Apenas assistiam à guerra que não conseguiam entender, embora eventualmente alguns deles fossem apagados pelas novas forças.

Um grupo de pássaros cruzou o céu em formação, sob olhares inquisitivos. Não vinham mais sendo atacados por mísseis; ao que se dizia, os ataques estavam aniquilando pássaros naturais, e apenas esses. Eventualmente um dos novos pássaros, um dos mecânicos, caía, vítima de pane. Isso não era raro, e assegurava o fato de continuarem a dominar os céus. Certamente eram eles que, das alturas, deixavam cair seus ovos explosivos, teleguiados com precisão até seus alvos enigmáticos. Nada naquela guerra parecia fazer sentido aos indios, nem as armas, nem os alvos, e nem tampouco a própria guerra, destruidora e vil, mas incompreensível.

O toque de recolher imposto pelo inimigo se aplicava aos automóveis, impedidos de circular durante certas horas do dia e à noite. O movimento de veículos os sujeitava aos ataques dos pássaros, através de seus ovos explosivos. A destruição de um veículo frequentemente o jogava de encontro a outro, revelando a precisão com que o ataque era efetuado, e fazendo valer o dito: com colisão vale dez pontos. Colisões múltiplas haviam sido frequentes no início dos ataques. A redução drástica da densidade de veículos desfavoreceu o fenômeno. Veículos rápidos, ou em comboio, eram quase invariavelmente atacados, normalmente destruídos. A defesa com blindagens na capota dos veículos fez multiplicar outro tipo de ataque.

Os carrinhos permaneciam à beira das estradas como jacarés sonolentos, ou como onças prestes a dar o bote. Costumavam adentrar a estrada sorrateiramente dirigindo-se rapidamente de encontro ao alvo, quase sempre algum veículo rápido vindo em direção contrária. Também usavam a tática de camuflagem, perseguindo e escondendo-se atrás de um carro para se chocar violentamente contra outro a se aproximar em sentido contrário, liberando seu potencial explosivo contra o alvo escolhido. Veículos excessivamente pesados, denunciando fortes blindagens, eram frequentemente alvejados por tais bólidos.

Os eventuais assassinatos cometidos através de caixas teleguiadas levantavam suspeitas sob ambos os lados, semeando a cisão. Provavelmente haviam sido disseminadas pelo inimigo, buscando eliminar as lideranças nos momentos de decisão. Fortes boatos, no entanto, sugeriam a incorporação da tática por setores governamentais escusos.

As caixas pretas, como eram chamadas, ameaçavam especialmente os poderosos, mas atemorizavam a multidão ignorante, incapaz de reconhecê-las, e de imaginar seus alvos. Podiam assumir qualquer forma, cor ou padrão, consistindo em um invólucro sobre uma arma, inicialmente um fuzil automático, logo pistolas, acoplado a sistema de comando e câmera. As máquinas autônomas recebiam ordens de soldados distantes, há centenas de quilômetros, mas as cumpriam com precisão milimétrica. Os não tão raros desgovernos, fenômenos ocasionais nos quais as máquinas “enlouqueciam” atirando a esmo em qualquer alvo que se movesse ao redor eram atribuídos, erroneamente aos mecanismos, sendo mais provavelmente, fruto do ensandecimento de seus controladores.

As armas dos índios, suas rezas e macumbas, mostravam-se completamente impotentes contra o inimigo, ainda que a maioria deles creditasse a própria sobrevivência à força de sua fé, sempre proporcional à própria ignorância.

Os índios do sul assistiam a tudo imersos em um misto de curiosidade, temor e uma vontade vã de participar ativamente dos eventos, mas mergulhados em uma perplexidade resignada, conformados que estavam, havia séculos, em cohabitar um mundo tecnológico do qual sua própria ignorância os excluía.

Todo o sistema de comunicação instalado previamente, incluindo fiação telefônica e torres de comunicação via rádio, havia sido destruído logo no início da invasão, substituído com vantagens pelos novos sistemas introduzidos pelo inimigo. Os inúmeros insetos artificiais consistiam, de fato, uma imensa e ultra-eficiente rede de comunicação tornada disponível gratuitamente a toda a população.

Os “gatos” na rede tinham sido induzidos pelo próprio inimigo, que liberara os códigos de acesso a ela simultaneamente à destruição dos antigos sistemas de comunicação. As tentativas oficiais de proibição dos gatos se mostraram sumamente ineficazes. A dependência da população à programação de televisão, por si só, garantia a impossibilidade de proibição dos meios dispostos pelo inimigo.

Houve quem insinuasse constituir traição o uso dos sistemas propiciados pelo inimigo, mas as antipatias imensas geradas por tais vozes logo as calaram. Também cessaram as tentativas de destruição dos insetos, em face da constatação de que a eliminação dos pequeninos artefatos bio-similares prejudicava localmente a recepção telefônica e de televisão. Tal constatação acarretou forte simpatia aos novos insetos, e sua proteção silenciosa pela maior parte da população.

A população indígena mantinha-se fortemente avessa aos comunicados oficiais afirmando que o uso dos sistemas inimigos garantia o domínio deles sobre as comunicações em solo nacional. Aos cidadãos importava mais manter a normalidade de suas vidas que as querelas dos poderosos. Do mesmo modo, comportavam-se as redes de televisão, que pararam de estimular as campanhas de erradicação das novas pragas ao constatar que a eliminação dos novos insetos significaria o término de seus serviços, devido à quase completa destruição dos antigos sistemas.

Naquela manhã, um pombo havia mergulhado das alturas explodindo na cabeça de um político do primeiro escalão do governo. O homem, um ministro, vinha sendo bombardeado por intensas acusações de corrupção, fazendo a ação parecer o ato de um vingador.

A ausência de evidências, e de reivindicações pelo atentado, favorecia todos os tipos de especulações. A mais forte delas sugeria um ataque inimigo. A estratégia consistia em materializar os desejos do povo, eliminando sumariamente as vítimas dos meios de comunicação. A popularidade da medida preparava os ânimos, predispunha a opinião pública a simpatizar com o inimigo.

Outra versão pintava o ministro assassinado como grande herói, mártir da república instantaneamente reabilitado, anistiado imediatamente de todas as acusações prévias.

Uma terceira variante sugeria uma dissensão interna culminando na eliminação imediata da liderança de facção influente.

Dada a falta de credibilidade de qualquer avaliação a respeito do atentado, a escolha da versão a que se aderir se baseava mais nas crenças sobre as conjunturas políticas e seus rumos futuros, que sobre informações atestando qualquer das versões.

Na verdade, de forma geral, não só a população, mas também as lideranças indígenas permaneciam nesse estado de perplexidade tentando interpretar os fatos a partir de indícios muito tênues, e só muito vagamente compreendidos.

Mais apavorantes que tudo eram os parasitas. Infestavam cães e gatos, além de pombos, ratos e quem sabe que outros seres. Os pombos pareciam alvos privilegiados devido a sua mobilidade e à altitude de seu vôo. Não surpreenderia se as águias e urubus também compusessem a rede inimiga, desde as alturas.

Mas eram, provavelmente, os cães os mais temíveis. Obedientes, facilmente controláveis, os cães eram joguetes sob o controle dos parasitas, que os faziam andar, correr, deitar, rolar, sentar, controlando sua direção, obrigando-os a se imiscuir nos mais improváveis locais, e a se associar a pessoas escolhidas posicionando-se exatamente onde as câmeras e transmissores funcionassem com precisão.

Mais surpreendente, talvez, era a capacidade demonstrada de impedir que os cães se coçassem, um aparente requinte de controle. O pavor não decorria diretamente de nenhuma dessas constatações, mas da possibilidade óbvia de parasitismo das próprias pessoas. Apavoravam os boatos de insidiosos vermes mecânicos devorando torturantemente as entranhas de prisioneiros. Causavam terror as elucubrações sobre parasitas cerebrais penetrando cabeças, corroendo-as por dentro. As divagações sobre artefatos circulando pela corrente sanguínea dos cidadãos não chegavam a ser inverossímeis, mas aparentemente nunca haviam sido confirmadas, apesar do número excessivo de óbitos entre os dirigentes do estado, fato atribuído também à cupidez dos sobreviventes. De qualquer forma, aparentemente, o inimigo preferia ocultar sua malevolência, apresentando-se bondoso à população inimiga, provendo-lhe comunicações e apoios logísticos.

Os índios haviam se preparado para outra guerra. Seus canhões acoplados a veículos blindados faziam tremer céus e terras, como os trovões de seus antigos inimigos tinham feito outrora, para a surpresa e terror de seus antepassados perplexos, impotentes frente a forças que não yinham podido compreender. Não mais empunhavam tacapescomo os antigos, ostentavam orgulhosamente sua artilharia pesada. Mas, assim como os pais de seus pais, não conseguiam entender as armas de seus antagonistas, muitos passos à frente deles.

Seus antepassados perplexos haviam sucumbido bravamente, ao erguer seus bordões contra o inimigo covarde, que os abatia à distância, com seus trovões incompreensíveis. Agora dominavam, eles, o trovão. Mas o inimigo permanecia intangível, desconhecido, nem ao menos conheciam sua face.

A dinâmica do ataque nunca pode ser compreendida, mas os fatos mais marcantes, analisados retrospectivamente, evidenciavam a insídia, a sutileza covarde do inimigo.

Primeiro tinham sido as grandes manifestações iracundas e acéfalas, expressões de uma insatisfação profunda mas nebulosa, sem objeto, sem direção, quando o povo bradara em uníssono: não querremos, chega! Mas sem nunca explicar a fonte do desagrado.

Muito mais explícita, a polícia demontrou sua própria insatisfação baixando o sarrafo generalizadamente, atirando bombas, e jogando pimenta nos olhos da turba. As hostes insanas enfrentaram temerariamente as polícias armadas, acirrando ódios intensificados a cada confronto.

Ingenuidade acreditar na coincidência das datas.

Ávido pelo retorno da normalidade, a povo se viu inundado por um estranho sentimento de rancor em seguida ao corte das transmissões de televisão, logo após o início do capítulo final da novela, no sábado á noite. A escuridão resultante do corte de energia elétrica teria levado a população para a cama mais cedo, mas isso não ocorreu. Só os canais de televisão ficaram fora do ar, obrigando as famílias a se olhar no rosto até a hora de dormir, em meio à repetição tediosa de resmungos coléricos.

No domingo, o corte das transmissões se repetiu, ocorrendo ainda mais cedo, no horário do futebol, tirando do ar a apresentação da final do campeonato. O boicote varreu também os sinais de rádio, emudecendo-os. A curiosidade e a apreensão permaneceram até a manhã seguinte, quando as comunicações foram restauradas, tendo obrigado a população entediada a encarar sus própria existência vazia, às claras.

No dia seguinte, na segunda-feira, foi com raiva, e não surpresa, que o povo recebeu novamente o corte do capítulo final da novela, tendo se reunido em massa e assistido ao primeiro bloco do episódio final, sub-repticiamente cortado. A ira causada pelo evento acirrou os ânimos, acalorou discussões, gerou insônias e predispôs ânimos nefastos.

As manifestações da terça foram recebidas por uma polícia injustificavelmente sangrenta, irracional. Foi em frente à antiga igreja, palco de chacinas anteriores, que os policiais dispararam seus fuzis de guerra contra a população indefesa, dizimando centenas, ferindo milhares, epalhando a população insana pela cidade, e reconectando as transmissões de televisão por todo o país, em tempo de assistir ao vivo o violento massacre, os gritos lancinantes de terror, a loucura, a irupção do descontrole caótico que se alastrouou por todas as grandes cidades do país contagiando as massas acéfalas, iracundas e selvagens.

Então um ódio violento e incontrolável tomou conta das ruas, assim como o pavor. As televisões registraram a guerra de todos contra todos, a explosão da raiva imensa incontida e descontrolada, sem propósito; a ira pura e simples, inadjetivada, louca, se apossando de todos os corações, eclipsando as mentes, conduzindo as hostes enlouquecidas à destruição cega. Raiva, desespero e terror se mesclavam, se sucediam, se somavam em uma ação insana e destrutiva, acarretando imenso rastro de fogo e destruição, arruinando em uma única noite, todas as grandes cidades, todas as habitações, todos os recantos que poderiam ter apaziguado a turba trazendo-lhe a visão de uma normalidade passada, e já, estranhamente, distante, após algumas horas.

O retorno à selvageria tinha cheiro de fumaça e sabor de carne queimada, único alimento disponível aos sobreviventes famintos a devorar os semelhantes com avidez animal.