AS RAZÕES

AS RAZÕES

Miguel Carqueija


Séculos atrás, estávamos Siqueira e eu deambulando pelas ruas da quente e úmida Manaus, a grande metrópole perdida em meio à mais exuberante selva tropical do planeta. Embora tivéssemos um dever a cumprir, uma missão, nunca poderíamos escapar de todo à tentação de vivenciar um pouco de turismo e de arqueologia.
— O que terá atraído Percival a esta região? — comentei distraidamente, enquanto enxugava o suor que me escorria da testa.
— Manaus tem os seus atrativos, Junqueira. Pode ter sido um documentário, um artigo em qualquer revista holográfica...
— O que você acha? — indaguei, apontando a elegante loja envitrinada à nossa frente.
— A Bemol? Você acha que ele pode estar aí?
— Isso é como agulha num palheiro, você sabe. Mas se Percival deseja mesmo se estabelecer definitivamente neste local e nesta época, nada demais que visite uma movelaria de quando em quando. Ele pode estar precisando de móveis.
Siqueira deu de ombros.
— Naturalmente, a possibilidade de que ele apareça nesta loja ao mesmo tempo que nós, é mínima — admiti.
— Vamos entrar, de qualquer modo, Junqueira. O lugar parece agradável.
— Assim fizemos. Ainda não estávamos preocupados com o tempo da nossa missão: em princípio, como o “Viajante” da novela de H.G.Wells, nós dispúnhamos de “todo o tempo do mundo”.
A loja era bonita, de fato, e repleta de móveis de um tipo que para nós era muito estranho. As coisas mudam muito em quatro séculos. Por exemplo, a predominância do uso da madeira em pleno século XXI, apesar da alarmante derrocada das florestas, atestando a irresponsabilidade daquela civilização do passado. Pará nós, que há tanto tempo utilizamos o plasmefalto e outros materiais sintéticos degradáveis, isso parece incompreensível. E mais incompreensível ainda, alguém de nossa época querer se transferir para um período tão atrasado e bárbaro.
Uma simpática atendente nos mostrou uma série de móveis atraentes, como um conjunto de mesa de jantar e cadeiras, feitos de madeira envernizada; armários de cozinha; estantes com espaço para a televisão e outros aparelhos típicos do início do século XXI (claro, nenhuma cama flutuante). Fingimos interesse sem compromisso, e fizemos anotações de preços. Então Siqueira comentou, assim como quem não quer nada:
— Sabe, foi um grande amigo quem nos recomendou essa loja. Talvez você o conheça, temos a foto dele aqui.
Mostrou uma fotografia colorida não-holográfica (seria um perigo exibir tal coisa naquela época). A garota mostrou-se surpresa:
— Ora vejam! Atendi esse cavalheiro esta semana!
— Tem boa memória, moça — observei, admirado. — Vem tanta gente aqui...
— É, mas ele é tão peculiar... parecia tão desambientado... se não fosse a garota, que orientava tudo...
— Garota?
— É, a garota era bem esperta. Uns 25 anos... ele é bem mais velho, acho eu.
— Sem dúvida — esclareceu Siqueira. — Mas nosso amigo tem bom gosto.
— Bem, eu espero que ele seja feliz. Que todos sejam felizes — disse ela, com um sorriso matreiro.
Siqueira não se deu por achado:
— Então o Percival fez umas compras aqui?
— Percival? Acho que o nome dele era Leonardo Caldeira...
— É claro — expliquei. — Percival é só o apelido. Sabe, ele é fã das lendas arturianas...
Não creio que ela tenha entendido o que eu falei. Não seria conveniente perguntar informações sigilosas à funcionária (tipo o telefone do Leonardo), por isso nos despedimos e prometemos que retornaríamos se decidíssemos adquirir alguns móveis. Já na rua, não pude deixar de observar:
— Com certeza ela achou que você e eu somos “gays”. Essa alusão a que todos sejam felizes...
— Deixa ela pensar assim. É melhor do que ela achar que nós dois somos agentes credenciados da Patrulha Intertemporal Federal procurando um oficial que desertou.
— Em todo o caso, caro Siqueira, já temos um bom indício. Se há uma mulher no meio...
— Mas, Junqueira, você acha mesmo que o simples fato de ter conhecido uma garota vai levar um sujeito letrado e moderno como o Percival a abandonar todas as suas raízes? É o mesmo que ir viver num outro mundo, onde não se conhece nada e nem ninguém!
— Mas não foi isso mesmo que fizeram aqueles que colonizaram a América?
— Pode ser, mas havia outra mentalidade... puxa, mas que canícula! Nessa época ainda não se construíam cúpulas termo-reguladoras...
— É melhor a gente tomar alguma bebida.
— Pois sim! Vamos lá naquela lanchonete!
Uma coisa que não mudou muito nessas últimas centúrias foi o aspecto das casas de pasto. Afinal, elas têm que exibir comidas e bebidas, coisas facilmente reconhecíveis. Adentramos e nos dispomos a escolher alguma bebida do século XXI. Lembrei-me de uma típica da Amazônia, o guaraná.
Pedimos um guaraná Magistral e um Tuxaua, marcas que não conhecíamos. Nas andanças pelos séculos XX e XXI havíamos tomado muito guaraná, tanto em refresco como em refrigerante, coisa pouco popular no século XXV, onde em geral o que se encontra é bebida em pó, com ingredientes de procedência duvidosa; mas no sul e sudeste do país, que visitávamos mais, as marcas facilmente encontráveis eram outras. E enquanto bebericávamos numa mesinha, expus o meu plano:
— É claro que a loja tem o endereço dele. Nós vamos ter de entrar na calada da noite e examinar os arquivos.
— Mas, Junqueira, não temos instrumentos de arrombar...
— De tanto vigiar o passado você já está ficando com mentalidade primitiva? Nós vamos nos teleportar para dentro da loja!
— Ah, bom! Mas é meio arriscado... teleporte para um local fechado...
— Mas dá para fazer. Você viu que é espaçoso lá dentro.
Ouviu-se uma trovoada.
— Opa! — comentou Siqueira. — Vamos ter chuva!
Percebi como o tempo havia fechado. Lembrei-me que aquela região era periodicamente assolada por enchentes de grande magnitude, e uma preocupação começou a crescer no meu íntimo.
Quando saímos naquela Avenida Eduardo Ribeiro já chovia a cântaros, e o calor úmido da região equatorial se liquefizera totalmente. Encharcados, tratamos de retornar ao hotel; e eu dava graças a Deus que os comprimidos de Genomicina que portávamos nos garantiriam contra qualquer pneumonia, já que agasalhos maiores, guarda-chuvas ou capas nós não trazíamos.
— O que vai acontecer — perguntei, apreensivo, enquanto fazíamos hora em nosso quarto — se alguém na rua nos vir desaparecer em pleno ar?
Ele observou o temporal pela janela.
— A meu ver, não haverá muita gente na rua... por causa da hora e da chuva.
— Vamos fazer o seguinte, colega! Vamos nos teleportar daqui mesmo!
— Mas e se derem pela nossa falta, e sem termos saído pela porta?
— Não acho que eles vigiem tanto quem entra e quem sai, e sempre podemos escapulir.
— Você sabe, Junqueira, que a margem de erro aumenta com a distância...
— Vamos calcular bem, e seja o que Deus quiser. Afinal de contas, são só três quarteirões!
Utilizamos então nossa bússola de teleporte; coloquei meu butucum a tiracolo e “saltamos” para o interior da Bemol.
Chegamos lá com as lanternas-de-peito acesas, mas num primeiro momento não localizei o meu companheiro. Então escutei batidas irritadas que vinham do interior de uma duplex de canjarana. Fui até lá, felizmente a chave estava do lado de fora, e abri o armário.
— Não chegou a ser um azar — ironizei.
— Junqueira, vamos localizar logo os comutadores!
— Nem pensar. Uma inundação de luz aqui vai chamar atenção!
Tratamos de examinar todas as gavetas. Qualquer pesquisa nos micros iria requerer senhas; era preferível encontrar documentação em papel. Felizmente, porém, não era uma tarefa difícil. Achamos o arquivo dos contratos recentes e os dados de Leonardo Caldeira — o nosso colega Percival Belafonte de Almeida. Sentados junto a uma mesa, verificamos quão eficientemente ele pudera falsificar os seus documentos, forjando uma identidade. Mas, com ajuda de quem?
— Ele casou — disse o Siqueira. — Pelo menos é o que diz aqui. Com a Queila Campista...
— Espero que isso seja falso. Talvez seja só para comprar os móveis...
— Não faz sentido. Ele poderia comprá-los, mesmo solteiro.
— Será que ele enlouqueceu? Já não era muito certo...
Um grande trovão despertou-nos para outro fator.
— Junqueira! Já viu como está o tempo?
Corremos até a janela mais próxima e deparamos com um espetáculo aterrador.
A rua havia virado rio. O caudaloso Rio Negro havia transbordado enquanto Siqueira e eu, alheios a tudo que não fosse a nossa investigação, buscávamos a pista de Percival revirando os documentos da Bemol.
— O que nós vamos fazer? É uma catástrofe! — murmurei, já agora completamente apavorado. Passou pela minha imaginação a terrível piranha amazônica, cujos cardumes devoram bois inteiros... estariam na inundação?
Siqueira também parecia aturdido.
— Olha os móveis passando, as charretes...
— Meu Deus! Aquela loja de biscoitos ao lado já foi inundada! Estão saindo caixas de biscoitos...
— Vamos ter que ficar aqui até a cheia passar, Junqueira! Vamos ter que dormir aqui!
— Você está sonhando, homem! Vamos gravar tudo o que acharmos sobre o Percival e nos “pirulitar” daqui, da mesma forma que viemos!
Ele deu um tapinha na testa;
— Caramba! Esse negócio de tele-transporte é tão pouco natural que eu sempre me esqueço!
Retornamos à mesa, registramos na caixa holográfica tudo o que havia sobre Percival e nos apressamos em guardar a documentação. Só faltava agora calcular as coordenadas para retornarmos ao hotel.
Estávamos assim operando a nossa calculadora telepórtica, quando um barulho estranho chamou a nossa atenção. Na penumbra do aposento, mas entre os reflexos dos raios, a porta veio abaixo e como um tsunami de água doce penetrou apocalipticamente, avassalando tudo. Antes que eu tivesse tempo sequer de gritar “Mamãe!”, já estava sendo arrebatado pelas ondas e levado para fora de qualquer maneira. Incrédulo, fui arrastado de roldão junto com Siqueira; de repente havia um rabo de pirarucu na minha boca; livrei-me do bicho com dificuldade e lutei para não engolir água; por felicidade os nossos trajes eram de tecido flutuante, desconhecido no século XXI.
Redemoinhávamos ambos, desesperados naquela água escura e fria, quando Siqueira gritou para mim:
— Junqueira, pegue minha mão! Vou teletransportar a gente antes que nosso equipamento estrague!
— Mas como? Não podemos calcular...
— Segure naquele poste! Vamos nos estabilizar um pouco!
Deu um tabefe num tucunaré — aquele peixe que, por estranho mimetismo, parece ter olho perto da cauda — e se agarrou no poste. Eu me agarrei nele e, no meio daquela loucura pluviométrica, fizemos a teleportação.
Para minha surpresa, nós nos materializamos no quarto do Percival, quando ele e a esposa se preparavam... deixa pra lá.
É claro que a Queila armou um escândalo e que nós tivemos que correr para a sala. Percival era nosso amigo, e isso foi a salvação.
— Como é que nós viemos parar aqui? — indaguei, já com os nervos abalados.
— Não dava para voltarmos ao hotel, Junqueira. A casa do Percival era mais perto, eu arrisquei. Nós dois estávamos em risco iminente de morrer afogados!
Percival apareceu. O cabelo despenteado, deixando ver suas fundas entradas; e tendo vestido um pijama.
— Sei que vocês dois passaram maus bocados, mas, puxa, nunca imaginei tamanha persistência.
— Sentimos muitíssimo incomodá-lo e assustar sua esposa, Percival... mas você sabe o que nós queremos.
— Sei, Junqueira, sei. Você e Siqueira querem saber as minhas razões.


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Queila veio assistir as explicações. Vestira um roupão de banho, estava até vestida demais após o choque. Era uma mulher muito bonita, segundo nos esclareceu Percival, fazia lembrar uma atriz dos séculos XX e XXI muito conhecida por sua beleza, Elizabeth Taylor.
— Ainda bem que a Queila já sabia sobre viajantes do tempo — observou Percival, olhando para a esposa.
— Sim — disse ela. — Mesmo assim quase tive um infarto.
— Eu também — falei, para descontrair.
— Nós escapamos por pouco de morrer — acrescentou Siqueira. — Aliás, a casa de vocês está a salvo? Uma enchente assustadora como essa...
— Como a rua é mais alta, acho que sim. A não ser que venha o dilúvio.
— Percival, podemos entrar no mérito da questão? Puxa vida, eu me lembro tanto das partidas de futvolei que disputamos...
— Infelizmente, Siqueira, você agora terá de jogar sem mim. Lembra o que disse José de Alencar, no final de “Iracema”?
— Nem li esse livro.
— Ele disse: “Tudo passa sobre a Terra”.
— Isso quer dizer — interferi — que você não pretende voltar?
— Não mesmo. Fiz a minha opção.
— Mas por que? Por que você abandonou uma época tão maravilhosa como a nossa, para viver num lugar que tem pobreza, enchentes, mosquitos e piranhas?
— Sim. E que tem a Queila também — respondeu ele, segurando a mão da esposa.
— Mas... é por ela? Não pensou em traze-la?
— Sejamos razoáveis, Junqueira. Eu não tenho família, ela tem pais e irmãs. Eu só tenho tios e primos que nem me visitam.
— Até aqui eu entendo — tornou Siqueira. — Mas, e os confortos da nossa época?
— Você acha mesmo? Então, deixa eu elencar alguns fatores:
Comida: aqui eu posso pescar e comer assado um tambaqui delicioso. No século XXV só temos carne de peixe sintética, com gosto de papelão.
Aqui eu posso comer um bom pirê de batatas. No século XXV, só batata sintética.
Aqui eu posso tomar café com leite. Lá, só café e leite sintéticos.
Aqui, de dia temos a luz do dia. Lá, as nuvens de poluição já cobriram o mundo inteiro e nós sobrevivemos graças às usinas de purificação atmosférica.
Aqui, a colonização da Lua ainda é um sonho. No século XXV é um pesadelo, pois favelizamos a Lua.
Aqui, no século XXI, mal ou bem ainda dá para educar as crianças. No século XXV, se negamos um brinquedo aos nossos filhos, eles nos processam.
No século XXI você pode digitar o que quiser no seu computador. No século XXV, ele te xinga se não gostar do texto.
Preciso dizer mais alguma coisa?

Eu e Siqueira nos entreolhamos. Compreendemos que não seria possível convencer nosso amigo a voltar.
— Você deve ter razão — observei. — Respeitamos seus motivos, é claro.
— Não querem tomar alguma coisa antes de irem? — indagou Queila, querendo ser gentil.
— Obrigado — disse Siqueira. — Mas chegamos numa hora muito imprópria e é melhor irmos embora.
— Somos viajantes do tempo — lembrei. — Talvez possamos revisitá-los algum dia.
— Por que vocês não resolvem ficar aqui também? Já sabem como a coisa vai ficar feia mais adiante...
A proposta era tentadora, mas eu tratei de cortá-la:
— Lamento, Percival, mas devemos ir mesmo. Afinal, alguém precisa permanecer por lá para segurar a barra!





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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 06/11/2013
Reeditado em 03/03/2017
Código do texto: T4559438
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