O ator e o presidente
O ATOR E O PRESIDENTE
Miguel Carqueija
“Se Deus se deu ao trabalho de criar uma pessoa, é porque ela deve ter alguma utilidade.”
(Provérbio chinês)
Pelas nove horas de uma noite parisiense excepcionalmente clara, um homem esquivo, de sessenta anos, vestido com um terno surrado e sem gravata, esgueirou-se num pequeno bote até um barco ancorado no Rio Sena, sem que ninguém notasse essa aproximação. Chegando até a escada de portaló ele subiu rapidamente, conservando o velho chapéu e o cachecol entre os quais apareciam as suas feições enrugadas, agoniadas, os olhos vermelhos, injetados de febre.
De um dos compartimentos vinham ruídos de conversação e risos.
O ambiente era luxuoso, com pinturas a óleo e castiçais de prata, além de um rico tapete persa. Estavam ali sete pessoas, quatro homens e três mulheres de idades variáveis. Na mesa repleta havia um pouco de tudo: esturjão, “petit-pois”, azeitonas portuguesas, espinafre, vinhos finos, pastéis, rabanetes, beterrabas, peru etc.
Cobrindo a todos com a pistola que segurava com determinação embora trêmulo, o intruso cuspiu palavras carregadas de mágoa e ameaça:
— Vocês aí se banqueteando! Me arranjem um prato de comida antes que eu resolva acabar com tudo! Não como há dias e estou disposto a tudo!
O homem mais velho do grupo, à cabeceira da mesa, levantou-se e exclamou em tom de completo espanto:
— Richard! Meu Deus, que faz aqui e nessas condições? Que lhe aconteceu?
O espanto do invasor foi ainda maior: deixando pender a arma, pôde apenas balbuciar: — Presidente!
O princípio de pânico foi jugulado ante o patético da cena: rodeando a mesa, o Presidente da República Francesa aproximou-se em passos rápidos do invasor e dirigiu-se a ele:
— Me dê esse revólver. Você não se encontra em boas condições.
— Boas? Elas são péssimas! — assim dizendo ele se abraçou ao estadista, tomado de soluços.
Às perguntas que se multiplicaram, o Presidente explicou:
— É Richard Osmond, aquele ator de cinema norte-americano... e um velho amigo. Não se lembram?
— Mas demais! — disse uma das mulheres. — Vi tantos filmes seus! Como foi reduzido a isso?
Era uma boa pergunta...
....................................................
Richard Osmond fizera de fato muitos filmes, durante décadas. Tempo houvera em que era considerado um dos galãs mais atraentes, e as mocinhas suspiravam por ele. Fazia também outros papéis, até de cientista louco ou de paraplégico, e seu talento era real: cada caracterização era considerada perfeita. Interpretara certa vez o Dr. Fu Manchu, assumindo ares orientais.
Nessa época porém já estava em decadência. Aos trinta anos tornara-se amigo de Jean-Claude Dermèze, jovem ator francês que participara com ele de dois filmes norte-americanos. Claude porém sentia-se atraído pela política e acabou retornando ao seu país de origem, onde rodou ainda uma série cômica para a tv, durante três anos, nesse ínterim elegeu-se deputado e interrompeu a carreira artística. No intervalo de dois mandatos fez um filme de longa metragem, “O Major Thompson”, para cujo papel-titulo foi convidado Richard Osmond, ficando Jean-Claude na pele de Denainos. A presença do célebre Osmond — então com 43 anos e no auge de sua carreira — garantiu uma arrasadora bilheteria e extrema popularidade para Claude, que conseguiu se reeleger e nunca mais abandonou a política. Os anos se passaram: Jean-Claude Dermèze era agora o Presidente da França e de certa forma esquecera o amigo que indiretamente dera força ao seu nome.
Sim, que sucedera a Osmond? Retornando aos Estados Unidos, divorcia-se de sua segunda esposa. Começa a beber e a se tornar inconstante no trabalho, desentendendo-se com produtores e diretores. Um terceiro casamento desastroso leva-o à depressão. Afastado da religião e dos amigos, tendo três pensões a pagar, alem dos seis filhos (três com a primeira, dois com a segunda e um com a terceira), Osmond começa a ter tiques nervosos que o prejudicam como ator: o dinheiro escasseia e surgem as dividas.
Aos 52 anos faz ainda “A volta do Dr. Fu Manchu”, mas se este voltava, Richard dava adeus às telas: não consegue novas chances, após os problemas que criou nos bastidores das filmagens. Sobrevive durante alguns anos fazendo pontas ou comerciais de tv; lembra-se então de alguns cineastas franceses e do seu filme francês, ainda reapresentado de vez em quando: escreve para lá e recebe um convite e uma passagem. Richard viaja meio às ocultas, por causa das dividas. Chegando na França, porém, uma decepção: não é aprovado nos testes e fica o dito por não dito.
Não tem dinheiro para retornar. Vivendo agora de subempregos, escrevendo cartas para amigos da América que nunca lhe respondem, é Richard agora um trapo humano. Vagabundeia por Paris, bebe, dorme em antros, espeluncas; tenta cantar nas ruas, ganhando trocados. Não é fácil numa Paris eletrônica, onde robôs cançonetistas se apresentam em restaurantes e boates. Richard Osmond está fora de moda.
Neste triste estado deu-se o seu encontro com Dermèze.
Oito anos de miséria e privações.
...............................................
— Sente-se e sirva-se — disse o Presidente. — Depois nós conversaremos melhor.
— Não sei se devo...
— Ora! Depois de nos ameaçar com um revólver você não vai nos desfeitear, não é mesmo? Mas primeiro me acompanhe; vamos lavar as mãos.
O oficial que cuidava da segurança de Dermèze moveu-se para segui-los, mas o Presidente se opôs:
— Pode deixar, Claude. Eu o conheço bem.
Entregou, porém, o revólver a Claude, discretamente, e conduziu Richard para o lavabo.
Embora inibido, Osmond tentou conversar alguma coisa:
— Você então ainda se compadece desse seu velho amigo... meu Deus! Já não devo chamá-lo de “você”.
— Todos os meus amigos me tratam assim. Com você não é diferente. Lave o seu rosto também, Richard. Você está meio sujo.
— Calculo... puxa, se você soubesse como tenho sofrido! E como os antigos amigos me abandonaram...
— Este amigo não o abandonará. Quando eu retornar ao palácio, você irá comigo.
— Mas... como...
— Você vai me contar toda a sua situação e aí veremos o que pode ser feito. Não posso permitir que você continue vivendo ao Deus-dará. E pare de me abraçar, homem! Você está todo molhado!
..................................................
Paris, na época dessa história, estava profundamente transformada pelos recentes progressos científicos e mutações políticas.
O satélite geoestacionário, como segunda lua, iluminava as feéricas noites parisienses. A Torre Eiffel, derrubada durante os bombardeios da Guerra dos Árabes, estava sendo reconstruída em ritmo febril, o que era ponto de honra do atual Chefe de Estado. O Sena fora despoluído e, como nos melhores dias, era habitado em termos permanentes. Os habitantes do Sena moravam em barcos como o que Osmond abordara.
Os apaches estavam bastante jugulados numa época em que uma Suretè altamente informatizada dispunha ainda de armas que paralisavam sem matar. Além disso, a identificação de criminosos pela aura Kirlian tornava-se o terror das quadrilhas. A umidade denunciando o crime.
O Louvre fôra ampliado e agora incluía um museu de Astronáutica, com o traje usado pelo primeiro francês a pisar na Lua, Benedict de Saint-Michel.
Dermèze era um estadista atualizado e muito reputado internacionalmente. Um gesto sentimental podia prejudicá-lo politicamente ou perante a mídia, e ele sabia disso. Entretanto, ao colocar Richard como seu secretário particular, agiu sem hesitação. O cargo não existia e nem seria considerado honesto cria-lo de propósito, mas Dermèze pagou Richard do próprio bolso. “Eu tenho minha criadagem particular — diria mais tarde — e sobre ela não tenho que dar satisfação a ninguém”.
Dermèze encarregou Richard de negócios bem particulares, como a organização da sua biblioteca, que possuia edições raras como uma “Divina Comédia” do século XVII e as “Confissões” de Santo Agostinho, em edição de 1614. O arquivo de notícias de jornais e revistas, geralmente recortes de assuntos científicos (a grande paixão de Dermèze) foi organizado por Osmond. Afinal, o Presidente e a Primeira Dama não dispunham de tempo para essas coisas. Osmond achava que estava fazendo insignificâncias inventadas pelo amigo por pura caridade. Acompanhando o Presidente, Richard às vezes era também filmado para os cinejornais e telejornais. “Veja, você voltou ao cinema”, dizia Dermèze de brincadeira.
Realmente, um antigo admirador, cineasta norte-americano, aproveitando as notícias recentes de Osmond montou um documentário de trinta minutos a seu respeito, com cenas tiradas dos filmes ao longo de toda a carreira, uma narração biográfica e, silenciando sobre os fatos mais recentes e dolorosos, nos últimos três minutos mostrava cenas tiradas de cinejornais. “Agora, afastado do cinema, Osmond trabalha para o Presidente da França, seu velho amigo”, dizia a narradora. Um velho trecho de “O Major Thompson”, o personagem de Pierre Daninos interpretado por Dermèze, também foi mostrado.
Richard, assistindo no cinema (em complemento a uma longa metragem) essa singular homenagem à sua pessoa, chorou de emoção e saudade. Quando pôde dispor de algum dinheiro, realizou também uma rápida viagem a sua terra natal, para rever membros da família, visita essa que não o alegrou muito. Afinal, já era praticamente um estranho para os familiares.
Agora, com acesso à biblioteca particular do Presidente, dedicava o tempo livre à leitura, escolhendo de preferência os assuntos que mais paz lhe trouxessem — ele que tanto precisava de paz de espírito. Foi assim que acabou achando a Bíblia de Dermèze e lendo o Evangelho. Aquelas páginas, que ele tanto ouvira falar e nunca lera a fundo, o cativaram. Passou a ler diariamente trechos do Evangelho.
.....................................................
Cerca dum ano após a contratação de Osmond, o governo francês viu-se a braços com um súbito recrudescimento das atividades terroristas da Frente Anarquista de Libertação Nacional. Pareceu evidente às autoridades francesas que o recesso da FALN — duramente atingida pela repressão — fôra estratégica, para recompor forças e perseguir maiores objetivos.
Quando em 31 de julho o ônibus espacial Petit Prince foi explodido, Dermèze, indignado, pronunciou-se à nação por rádio e tv:
“Moveremos guerra sem trégua contra os inimigos da civilização. Não seremos bonzinhos. Se um terrorista receber ordem de prisão e quiser reagir a tiros, encontrará pela frente homens cumpridores do seu dever e que não hesitarão em atirar primeiro. Nós não seremos uma nação anarquista, nem hoje nem daqui a mil anos..”
Em resposta Conseil, o misterioso líder anarquista, em mensagem entregue a uma estação de tv, declarou que condenara Dermèze à morte e que o Presidente da França não escaparia de ser executado.
Essa notícia causou profunda impressão ao ator, que chegou a falar a sós com Helène, a Primeira Dama:
— Dermèze não zela muito por sua segurança. Ele não pode ficar se expondo a esses celerados! É uma vida muito preciosa para o mundo!
— E eu rezo muito por ele, Richard. Mas Jean-Claude é um homem que não tem medo de nada e acha que não deve se esconder do povo. Às vezes os agentes de segurança ficam desesperados, porque ele se expõe demais. Deus queira que esses terroristas sejam todos localizados.
Passou-se uma semana. Algumas prisões trouxeram certa tranquilidade, ainda que Conseil não pudesse ser encontrado.
Certa tarde Osmond desceu da biblioteca e, sabendo que o Presidente não tinha nenhum compromisso oficial naquela noite, procurou por ele e soube que partira para visitar os amigos do barco.
Lembrou-se da própria facilidade que tivera em penetrar naquele local e apontar uma arma carregada para o Chefe da Nação e, levado por estranha inquietação, deixou a residência e partiu para o ancoradouro, no automóvel com que o amigo o presenteara.
Chegando ao cais, avistou o automóvel presidencial com apenas dois carros de segurança que, à distância, cuidavam que ninguém se aproximasse. Osmond sentiu-se aliviado ao vê-los. Ele próprio não portava nenhuma arma; jurara nunca mais usa-las. Acenou para Claude, que o reconheceu de imediato.
— Veio falar com o presidente, Senhor Osmond? Pode ir, mas deixe seu carro aqui, por favor.
— É claro, Claude. Muito obrigado!
Dirigiu-se rapidamente ao ponto onde se encontravam Dermèze e Helène, que aguardavam o barco do casal, já visível, aproximando-se a jusante do Sena.
Só havia um outro carro ali perto: o do casal Gall, do barco.
Richard aproximou-se rapidamente, pensando em qualquer desculpa por sua presença. Jean-Claude e Helène, tendo-o visto, já o aguardavam com expressões de alegria.
Súbito abriu-se a porta de trás do outro automóvel.
Como num pesadelo, um homem mascarado e com traje de mergulho apareceu, portando uma automática. Em um pulo aproximou-se do casal, que estacara de surpresa; e apenas disse, ou rosnou: “Morre, cachorro!”
Os tiros soaram: um, dois, três.
E um homem caiu ao chão, arrastando na queda o assassino.
Dermèze chutou a arma. Os agentes Claude e Gaspar vieram e alvejaram o terrorista no momento em que este, tendo se livrado de Osmond, pulava para a água.
O sangue tingia o cais e a água.
Enquanto dois agentes resgatavam o corpo do terrorista morto, Dermèze inclinou-se sobre seu amigo Richard Osmond, cujo peito fôra varado pelas balas:
— Richard, Richard... por que fez isso?
..................................................
Na porta do quarto hospitalar, o Dr. Temporal mantinha mesmo uma cara de tempo fechado. Contudo, fica mais difícil barrar um visitante quando se trata do Presidente da República.
— Eu lhes peço, sejam breves. O estado dele é muito grave.
Helène, com os olhos vermelhos, foi quem falou:
— Mas ele viverá?
— Minha senhora, receio que isto esteja acima do poder da Medicina. Só dou algumas horas de vida. Ele já foi atendido por um sacerdote. Foi a primeira coisa que pediu, ao acordar da operação.
— Bem, então não percamos tempo — disse Dermèze. — Quero ao menos me despedir do meu amigo!
Entraram e se aproximaram do moribundo, enquanto o médico permanecia de pé junto à porta.
Richard, acordado e lúcido, sorriu ao vê-los.
— Claude... Helène... foi ótimo terem vindo.
Helène sentou-se junto ao amigo e, segurando-lhe a mao esquerda, chorou sobre ela.
— Ora, o que é isso, Helène — protestou Osmond. — Não é para isso que vocês vieram. Não quero lágrimas.
A esposa de Dermèze pediu desculpas e procurou conter as lágrimas. Dermèze, por sua vez, fitou o amigo com ar de queixa.
— Procure não se esforçar, Richard. Nós estamos rezando por você.
— Eu sei disso. Mas sei também que vou morrer.
— Não diga isso. Estamos com os melhores médicos...
Osmond sorriu.
— Conheço essa velha história. Do jeito que minhas artérias foram destruídas. Quero ver que milagre eles farão... mas eu já não creio em Papai Noel, amigo. Sejamos realistas.
— A propósito, não sei se você sabe que o terrorista morreu. Era o chefe da FALN em pessoa, o Conseil. Depois das ultimas prisões ele já quase não tinha elementos que pudesse usar e resolveu fazer o serviço pessoalmente. Creio que o terror está vencido.
— É um consolo saber que eu não morro em vão. Ainda mais, salvando a vida mais importante desse país, um homem da sua grandeza moral, Jean-Claude... ah, sim, diga á imprensa que eu já perdoei Conseil. Só espero que Deus possa perdoá-lo.
— Nós lhe seremos eternamente gratos — disse Helène.
— Mas, Richard — insistiu Dermèze — você não devia ter feito isso! Não, nunca! Era a mim que ele queria, não a você! O Presidente da República não é mais importante que o mais humilde cidadão! Você não tinha obrigação de se sacrificar por mim!
— Dermèze... você sabe o quanto eu lhe devo.
— Não vem ao caso.
— Vem, sim. Deixe-me falar, por favor, porque eu não tenho muito tempo. Escute. Quando você me encontrou eu era um rebotalho humano. Um traste. Estava a caminho do suicídio ou coisa parecida. Tenho certeza de que nem estaria vivo agora. Você me tirou do fundo do poço, recuperou-me, devolveu-me a dignidade. Fez por mim o que só um verdadeiro amigo faria. Pensei que nunca poderia saldar uma tal dívida. Graças a você e à sua esposa eu recuperei a crença no ser humano. Depois, freqüentando a sua biblioteca, descobri os Santos Evangelhos. E aí recuperei a Fé da infância, a Fé na Transcendência. Li e reli essas páginas inúmeras vezes, descobri a alegria de acreditar em Jesus Cristo e na Virgem Maria. E uma das frases de Jesus que mais me impressionaram foi aquela: “Ninguém é mais amigo do que aquele que dá a vida pelo seu amigo.” (*) Como eu poderia ter agido de outro jeito? Não seria digno dos favores que recebi.
O médico aproximou-se e deu a entender que a entrevista devia terminar. O Presidente e a Primeira Dama despediram-se comovidos e saíram.
De madrugada Richard Osmond entrou em coma e faleceu por volta do meio-dia.
Desde então, por iniciativa do Presidente Dermèze, a França passou a comemorar, a 12 de agosto, o Dia da Amizade, o dia em que Richard Osmond, o grande ator de cinema, morreu no lugar de seu amigo.
(*) Citação do Evangelho de São João: capítulo 15, versículo 13.
NOTA: esta narrativa foi escrita entre os anos 70/80, sendo das mais antigas que eu conservei. Hoje em dia tem um certo anacronismo como texto de ficção científica, apesar de alguns retoques posteriores. Foi originalmente publicada no meu livro "A volta dos dinossauros" (Editora Protótipo, Rio de Janeiro, 1992).
O ATOR E O PRESIDENTE
Miguel Carqueija
“Se Deus se deu ao trabalho de criar uma pessoa, é porque ela deve ter alguma utilidade.”
(Provérbio chinês)
Pelas nove horas de uma noite parisiense excepcionalmente clara, um homem esquivo, de sessenta anos, vestido com um terno surrado e sem gravata, esgueirou-se num pequeno bote até um barco ancorado no Rio Sena, sem que ninguém notasse essa aproximação. Chegando até a escada de portaló ele subiu rapidamente, conservando o velho chapéu e o cachecol entre os quais apareciam as suas feições enrugadas, agoniadas, os olhos vermelhos, injetados de febre.
De um dos compartimentos vinham ruídos de conversação e risos.
O ambiente era luxuoso, com pinturas a óleo e castiçais de prata, além de um rico tapete persa. Estavam ali sete pessoas, quatro homens e três mulheres de idades variáveis. Na mesa repleta havia um pouco de tudo: esturjão, “petit-pois”, azeitonas portuguesas, espinafre, vinhos finos, pastéis, rabanetes, beterrabas, peru etc.
Cobrindo a todos com a pistola que segurava com determinação embora trêmulo, o intruso cuspiu palavras carregadas de mágoa e ameaça:
— Vocês aí se banqueteando! Me arranjem um prato de comida antes que eu resolva acabar com tudo! Não como há dias e estou disposto a tudo!
O homem mais velho do grupo, à cabeceira da mesa, levantou-se e exclamou em tom de completo espanto:
— Richard! Meu Deus, que faz aqui e nessas condições? Que lhe aconteceu?
O espanto do invasor foi ainda maior: deixando pender a arma, pôde apenas balbuciar: — Presidente!
O princípio de pânico foi jugulado ante o patético da cena: rodeando a mesa, o Presidente da República Francesa aproximou-se em passos rápidos do invasor e dirigiu-se a ele:
— Me dê esse revólver. Você não se encontra em boas condições.
— Boas? Elas são péssimas! — assim dizendo ele se abraçou ao estadista, tomado de soluços.
Às perguntas que se multiplicaram, o Presidente explicou:
— É Richard Osmond, aquele ator de cinema norte-americano... e um velho amigo. Não se lembram?
— Mas demais! — disse uma das mulheres. — Vi tantos filmes seus! Como foi reduzido a isso?
Era uma boa pergunta...
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Richard Osmond fizera de fato muitos filmes, durante décadas. Tempo houvera em que era considerado um dos galãs mais atraentes, e as mocinhas suspiravam por ele. Fazia também outros papéis, até de cientista louco ou de paraplégico, e seu talento era real: cada caracterização era considerada perfeita. Interpretara certa vez o Dr. Fu Manchu, assumindo ares orientais.
Nessa época porém já estava em decadência. Aos trinta anos tornara-se amigo de Jean-Claude Dermèze, jovem ator francês que participara com ele de dois filmes norte-americanos. Claude porém sentia-se atraído pela política e acabou retornando ao seu país de origem, onde rodou ainda uma série cômica para a tv, durante três anos, nesse ínterim elegeu-se deputado e interrompeu a carreira artística. No intervalo de dois mandatos fez um filme de longa metragem, “O Major Thompson”, para cujo papel-titulo foi convidado Richard Osmond, ficando Jean-Claude na pele de Denainos. A presença do célebre Osmond — então com 43 anos e no auge de sua carreira — garantiu uma arrasadora bilheteria e extrema popularidade para Claude, que conseguiu se reeleger e nunca mais abandonou a política. Os anos se passaram: Jean-Claude Dermèze era agora o Presidente da França e de certa forma esquecera o amigo que indiretamente dera força ao seu nome.
Sim, que sucedera a Osmond? Retornando aos Estados Unidos, divorcia-se de sua segunda esposa. Começa a beber e a se tornar inconstante no trabalho, desentendendo-se com produtores e diretores. Um terceiro casamento desastroso leva-o à depressão. Afastado da religião e dos amigos, tendo três pensões a pagar, alem dos seis filhos (três com a primeira, dois com a segunda e um com a terceira), Osmond começa a ter tiques nervosos que o prejudicam como ator: o dinheiro escasseia e surgem as dividas.
Aos 52 anos faz ainda “A volta do Dr. Fu Manchu”, mas se este voltava, Richard dava adeus às telas: não consegue novas chances, após os problemas que criou nos bastidores das filmagens. Sobrevive durante alguns anos fazendo pontas ou comerciais de tv; lembra-se então de alguns cineastas franceses e do seu filme francês, ainda reapresentado de vez em quando: escreve para lá e recebe um convite e uma passagem. Richard viaja meio às ocultas, por causa das dividas. Chegando na França, porém, uma decepção: não é aprovado nos testes e fica o dito por não dito.
Não tem dinheiro para retornar. Vivendo agora de subempregos, escrevendo cartas para amigos da América que nunca lhe respondem, é Richard agora um trapo humano. Vagabundeia por Paris, bebe, dorme em antros, espeluncas; tenta cantar nas ruas, ganhando trocados. Não é fácil numa Paris eletrônica, onde robôs cançonetistas se apresentam em restaurantes e boates. Richard Osmond está fora de moda.
Neste triste estado deu-se o seu encontro com Dermèze.
Oito anos de miséria e privações.
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— Sente-se e sirva-se — disse o Presidente. — Depois nós conversaremos melhor.
— Não sei se devo...
— Ora! Depois de nos ameaçar com um revólver você não vai nos desfeitear, não é mesmo? Mas primeiro me acompanhe; vamos lavar as mãos.
O oficial que cuidava da segurança de Dermèze moveu-se para segui-los, mas o Presidente se opôs:
— Pode deixar, Claude. Eu o conheço bem.
Entregou, porém, o revólver a Claude, discretamente, e conduziu Richard para o lavabo.
Embora inibido, Osmond tentou conversar alguma coisa:
— Você então ainda se compadece desse seu velho amigo... meu Deus! Já não devo chamá-lo de “você”.
— Todos os meus amigos me tratam assim. Com você não é diferente. Lave o seu rosto também, Richard. Você está meio sujo.
— Calculo... puxa, se você soubesse como tenho sofrido! E como os antigos amigos me abandonaram...
— Este amigo não o abandonará. Quando eu retornar ao palácio, você irá comigo.
— Mas... como...
— Você vai me contar toda a sua situação e aí veremos o que pode ser feito. Não posso permitir que você continue vivendo ao Deus-dará. E pare de me abraçar, homem! Você está todo molhado!
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Paris, na época dessa história, estava profundamente transformada pelos recentes progressos científicos e mutações políticas.
O satélite geoestacionário, como segunda lua, iluminava as feéricas noites parisienses. A Torre Eiffel, derrubada durante os bombardeios da Guerra dos Árabes, estava sendo reconstruída em ritmo febril, o que era ponto de honra do atual Chefe de Estado. O Sena fora despoluído e, como nos melhores dias, era habitado em termos permanentes. Os habitantes do Sena moravam em barcos como o que Osmond abordara.
Os apaches estavam bastante jugulados numa época em que uma Suretè altamente informatizada dispunha ainda de armas que paralisavam sem matar. Além disso, a identificação de criminosos pela aura Kirlian tornava-se o terror das quadrilhas. A umidade denunciando o crime.
O Louvre fôra ampliado e agora incluía um museu de Astronáutica, com o traje usado pelo primeiro francês a pisar na Lua, Benedict de Saint-Michel.
Dermèze era um estadista atualizado e muito reputado internacionalmente. Um gesto sentimental podia prejudicá-lo politicamente ou perante a mídia, e ele sabia disso. Entretanto, ao colocar Richard como seu secretário particular, agiu sem hesitação. O cargo não existia e nem seria considerado honesto cria-lo de propósito, mas Dermèze pagou Richard do próprio bolso. “Eu tenho minha criadagem particular — diria mais tarde — e sobre ela não tenho que dar satisfação a ninguém”.
Dermèze encarregou Richard de negócios bem particulares, como a organização da sua biblioteca, que possuia edições raras como uma “Divina Comédia” do século XVII e as “Confissões” de Santo Agostinho, em edição de 1614. O arquivo de notícias de jornais e revistas, geralmente recortes de assuntos científicos (a grande paixão de Dermèze) foi organizado por Osmond. Afinal, o Presidente e a Primeira Dama não dispunham de tempo para essas coisas. Osmond achava que estava fazendo insignificâncias inventadas pelo amigo por pura caridade. Acompanhando o Presidente, Richard às vezes era também filmado para os cinejornais e telejornais. “Veja, você voltou ao cinema”, dizia Dermèze de brincadeira.
Realmente, um antigo admirador, cineasta norte-americano, aproveitando as notícias recentes de Osmond montou um documentário de trinta minutos a seu respeito, com cenas tiradas dos filmes ao longo de toda a carreira, uma narração biográfica e, silenciando sobre os fatos mais recentes e dolorosos, nos últimos três minutos mostrava cenas tiradas de cinejornais. “Agora, afastado do cinema, Osmond trabalha para o Presidente da França, seu velho amigo”, dizia a narradora. Um velho trecho de “O Major Thompson”, o personagem de Pierre Daninos interpretado por Dermèze, também foi mostrado.
Richard, assistindo no cinema (em complemento a uma longa metragem) essa singular homenagem à sua pessoa, chorou de emoção e saudade. Quando pôde dispor de algum dinheiro, realizou também uma rápida viagem a sua terra natal, para rever membros da família, visita essa que não o alegrou muito. Afinal, já era praticamente um estranho para os familiares.
Agora, com acesso à biblioteca particular do Presidente, dedicava o tempo livre à leitura, escolhendo de preferência os assuntos que mais paz lhe trouxessem — ele que tanto precisava de paz de espírito. Foi assim que acabou achando a Bíblia de Dermèze e lendo o Evangelho. Aquelas páginas, que ele tanto ouvira falar e nunca lera a fundo, o cativaram. Passou a ler diariamente trechos do Evangelho.
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Cerca dum ano após a contratação de Osmond, o governo francês viu-se a braços com um súbito recrudescimento das atividades terroristas da Frente Anarquista de Libertação Nacional. Pareceu evidente às autoridades francesas que o recesso da FALN — duramente atingida pela repressão — fôra estratégica, para recompor forças e perseguir maiores objetivos.
Quando em 31 de julho o ônibus espacial Petit Prince foi explodido, Dermèze, indignado, pronunciou-se à nação por rádio e tv:
“Moveremos guerra sem trégua contra os inimigos da civilização. Não seremos bonzinhos. Se um terrorista receber ordem de prisão e quiser reagir a tiros, encontrará pela frente homens cumpridores do seu dever e que não hesitarão em atirar primeiro. Nós não seremos uma nação anarquista, nem hoje nem daqui a mil anos..”
Em resposta Conseil, o misterioso líder anarquista, em mensagem entregue a uma estação de tv, declarou que condenara Dermèze à morte e que o Presidente da França não escaparia de ser executado.
Essa notícia causou profunda impressão ao ator, que chegou a falar a sós com Helène, a Primeira Dama:
— Dermèze não zela muito por sua segurança. Ele não pode ficar se expondo a esses celerados! É uma vida muito preciosa para o mundo!
— E eu rezo muito por ele, Richard. Mas Jean-Claude é um homem que não tem medo de nada e acha que não deve se esconder do povo. Às vezes os agentes de segurança ficam desesperados, porque ele se expõe demais. Deus queira que esses terroristas sejam todos localizados.
Passou-se uma semana. Algumas prisões trouxeram certa tranquilidade, ainda que Conseil não pudesse ser encontrado.
Certa tarde Osmond desceu da biblioteca e, sabendo que o Presidente não tinha nenhum compromisso oficial naquela noite, procurou por ele e soube que partira para visitar os amigos do barco.
Lembrou-se da própria facilidade que tivera em penetrar naquele local e apontar uma arma carregada para o Chefe da Nação e, levado por estranha inquietação, deixou a residência e partiu para o ancoradouro, no automóvel com que o amigo o presenteara.
Chegando ao cais, avistou o automóvel presidencial com apenas dois carros de segurança que, à distância, cuidavam que ninguém se aproximasse. Osmond sentiu-se aliviado ao vê-los. Ele próprio não portava nenhuma arma; jurara nunca mais usa-las. Acenou para Claude, que o reconheceu de imediato.
— Veio falar com o presidente, Senhor Osmond? Pode ir, mas deixe seu carro aqui, por favor.
— É claro, Claude. Muito obrigado!
Dirigiu-se rapidamente ao ponto onde se encontravam Dermèze e Helène, que aguardavam o barco do casal, já visível, aproximando-se a jusante do Sena.
Só havia um outro carro ali perto: o do casal Gall, do barco.
Richard aproximou-se rapidamente, pensando em qualquer desculpa por sua presença. Jean-Claude e Helène, tendo-o visto, já o aguardavam com expressões de alegria.
Súbito abriu-se a porta de trás do outro automóvel.
Como num pesadelo, um homem mascarado e com traje de mergulho apareceu, portando uma automática. Em um pulo aproximou-se do casal, que estacara de surpresa; e apenas disse, ou rosnou: “Morre, cachorro!”
Os tiros soaram: um, dois, três.
E um homem caiu ao chão, arrastando na queda o assassino.
Dermèze chutou a arma. Os agentes Claude e Gaspar vieram e alvejaram o terrorista no momento em que este, tendo se livrado de Osmond, pulava para a água.
O sangue tingia o cais e a água.
Enquanto dois agentes resgatavam o corpo do terrorista morto, Dermèze inclinou-se sobre seu amigo Richard Osmond, cujo peito fôra varado pelas balas:
— Richard, Richard... por que fez isso?
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Na porta do quarto hospitalar, o Dr. Temporal mantinha mesmo uma cara de tempo fechado. Contudo, fica mais difícil barrar um visitante quando se trata do Presidente da República.
— Eu lhes peço, sejam breves. O estado dele é muito grave.
Helène, com os olhos vermelhos, foi quem falou:
— Mas ele viverá?
— Minha senhora, receio que isto esteja acima do poder da Medicina. Só dou algumas horas de vida. Ele já foi atendido por um sacerdote. Foi a primeira coisa que pediu, ao acordar da operação.
— Bem, então não percamos tempo — disse Dermèze. — Quero ao menos me despedir do meu amigo!
Entraram e se aproximaram do moribundo, enquanto o médico permanecia de pé junto à porta.
Richard, acordado e lúcido, sorriu ao vê-los.
— Claude... Helène... foi ótimo terem vindo.
Helène sentou-se junto ao amigo e, segurando-lhe a mao esquerda, chorou sobre ela.
— Ora, o que é isso, Helène — protestou Osmond. — Não é para isso que vocês vieram. Não quero lágrimas.
A esposa de Dermèze pediu desculpas e procurou conter as lágrimas. Dermèze, por sua vez, fitou o amigo com ar de queixa.
— Procure não se esforçar, Richard. Nós estamos rezando por você.
— Eu sei disso. Mas sei também que vou morrer.
— Não diga isso. Estamos com os melhores médicos...
Osmond sorriu.
— Conheço essa velha história. Do jeito que minhas artérias foram destruídas. Quero ver que milagre eles farão... mas eu já não creio em Papai Noel, amigo. Sejamos realistas.
— A propósito, não sei se você sabe que o terrorista morreu. Era o chefe da FALN em pessoa, o Conseil. Depois das ultimas prisões ele já quase não tinha elementos que pudesse usar e resolveu fazer o serviço pessoalmente. Creio que o terror está vencido.
— É um consolo saber que eu não morro em vão. Ainda mais, salvando a vida mais importante desse país, um homem da sua grandeza moral, Jean-Claude... ah, sim, diga á imprensa que eu já perdoei Conseil. Só espero que Deus possa perdoá-lo.
— Nós lhe seremos eternamente gratos — disse Helène.
— Mas, Richard — insistiu Dermèze — você não devia ter feito isso! Não, nunca! Era a mim que ele queria, não a você! O Presidente da República não é mais importante que o mais humilde cidadão! Você não tinha obrigação de se sacrificar por mim!
— Dermèze... você sabe o quanto eu lhe devo.
— Não vem ao caso.
— Vem, sim. Deixe-me falar, por favor, porque eu não tenho muito tempo. Escute. Quando você me encontrou eu era um rebotalho humano. Um traste. Estava a caminho do suicídio ou coisa parecida. Tenho certeza de que nem estaria vivo agora. Você me tirou do fundo do poço, recuperou-me, devolveu-me a dignidade. Fez por mim o que só um verdadeiro amigo faria. Pensei que nunca poderia saldar uma tal dívida. Graças a você e à sua esposa eu recuperei a crença no ser humano. Depois, freqüentando a sua biblioteca, descobri os Santos Evangelhos. E aí recuperei a Fé da infância, a Fé na Transcendência. Li e reli essas páginas inúmeras vezes, descobri a alegria de acreditar em Jesus Cristo e na Virgem Maria. E uma das frases de Jesus que mais me impressionaram foi aquela: “Ninguém é mais amigo do que aquele que dá a vida pelo seu amigo.” (*) Como eu poderia ter agido de outro jeito? Não seria digno dos favores que recebi.
O médico aproximou-se e deu a entender que a entrevista devia terminar. O Presidente e a Primeira Dama despediram-se comovidos e saíram.
De madrugada Richard Osmond entrou em coma e faleceu por volta do meio-dia.
Desde então, por iniciativa do Presidente Dermèze, a França passou a comemorar, a 12 de agosto, o Dia da Amizade, o dia em que Richard Osmond, o grande ator de cinema, morreu no lugar de seu amigo.
(*) Citação do Evangelho de São João: capítulo 15, versículo 13.
NOTA: esta narrativa foi escrita entre os anos 70/80, sendo das mais antigas que eu conservei. Hoje em dia tem um certo anacronismo como texto de ficção científica, apesar de alguns retoques posteriores. Foi originalmente publicada no meu livro "A volta dos dinossauros" (Editora Protótipo, Rio de Janeiro, 1992).