Admirável mundo de Bruno
Bruno Willians sempre teve o mundo aos seus pés. Desde menino, aprendera com os primos mais velhos a se defender, e com seus tios, a fina arte de ser um conquistador. A vida para ele era uma excitante aventura. Mais do que isso, a vida lhe era um presente a ser aberto e desfrutado todos os dias. Bruno era aquele tipo de gente que conseguia apreciar o sabor em tudo – ele era mesmo um bon vivant. Hoje não aparentava seus quase cinquenta anos, apesar de uns poucos fios de cabelo grisalhos nas costeletas estilo Anos 60. Bruno era um solteirão de um metro e oitenta, corpo atlético, e tinha uma vida empreendedora que as mulheres de quarenta e poucos anos admiravam, tinha o sorriso descolado que as mulheres de trinta e poucos anos se encantavam, e tinha o papo de pegador a que as mulheres de vinte e poucos anos se entregavam. Bruno era tudo isso: bem-sucedido, boa pinta, pegador, e um tanto sacana. Mas não que ele fosse um cafajeste. Nada disso. É que ele tinha jeito com as mulheres, um certo charme infalível que poderia parecer natural à primeira vista ou aos olhos de um solitário, mas que, na verdade, era o resultado de anos de prática e dedicação. Sua receita de sucesso para tudo na vida era: uma dose de bom papo, uma pitada de atitude, e pegada a gosto. De fato, ele experimentava cada dia como se provasse um sofisticado coquetel. Mas, acima de tudo, devo dizer também que Bruno não existia.
Pelo menos não no mundo real. Bruno era tão somente um personagem que eu – um escritor mediano –, havia desenvolvido para o meu mais recente livro: um romance dedicado ao público feminino. Modéstia à parte, meu trabalho me agradara além das minhas expectativas. Desde que aluguei este chalé na praia faz uma semana, eu me encontrava em um borbulhante clima de inspiração e as ideias simplesmente saltitavam de minha mente inventiva e pareciam criar vida própria. Trezentas páginas de vida própria. Já estava farto de publicar apenas contos esporádicos e crônicas nos jornalecos da cidade. Desta vez, daria uma arrancada definitiva para o sucesso. Afinal, esta obra estava perfeita: personagens bem desenvolvidos, uma trama envolvente, uma dose de humor e comédia, e um final emocionante. Reli satisfeito os últimos parágrafos do livro uma última vez e dirigi sossegadamente meu carro de volta ao centro da cidade – eu tinha uma entrevista marcada com uma editora no dia seguinte, bem cedo. Cheguei ao meu apartamento exausto da viagem e ao mesmo tempo extasiado pela missão cumprida. Repousei minha obra-prima em cima da mesa de centro e fui dormir. Sentia que minha vida estaria prestes a mudar, porque quando nos entregamos em uma oportunidade extraordinária, tudo tende a progredir extraordinariamente. E foi assim que coisas ainda mais extraordinárias começariam a acontecer, e que minha vida mudaria, mas não do jeito que eu planejava.
E aconteceu que, no dia seguinte, qual não foi meu espanto ao sair do quarto de roupão e deparar-me com um estranho no meio da sala, sentado em minha poltrona, tomando um café e lendo o livro que eu acabara de escrever e que deixara em cima da mesa de centro. O meu livro! Bem, não era de certa forma um “estranho” que estava sentado em minha poltrona como se estivesse na casa dele, mas também não posso dizer que era um homem qualquer. Alto, robusto, com costeletas e sobrancelhas grossas, era o protagonista do meu livro, que parecia ter saído de minha imaginação e criado vida própria! No momento, fiquei sem palavras. Ainda estaria sonhando ou teria eu criado Bruno Willians com tanto entusiasmo e força de vontade a ponto de trazê-lo à existência? Seja qual fosse a explicação – assim como para a indagação filosófica sobre o sentido da vida e a singularidade de sermos os únicos na imensidão do universo: o fato é que estamos aqui, independente de qual seja a razão ou a causa –, também para Bruno não havia uma explicação racional: o fato inegável, puro e simples, era que ele simplesmente estava aqui. Não só estava aqui como começou a puxar assunto como se estivéssemos em uma conversa de bar entre amigos de longa data. Até sugeriu modificações no roteiro do meu livro. Mas a única pergunta que consegui formular naquele instante foi:
– Bruno... V-você é real?
– Sou tão real quanto eu posso ser. Assim como você. – respondeu tranquilamente. Então estalou os dedos como se me despertasse de algum transe: – E aí? Não vai se arrumar? Vamos chegar atrasados para a avaliação da editora, cara! – arrematou empolgado meu inusitado e festivo convidado literário, enquanto se levantava da poltrona. É verdade, tenho hora marcada com o editor-chefe.
Bruno foi tão cortês que já havia até preparado o café da manhã. E que café da manhã!... Como ele conseguira preparar um desjejum tão saboroso e sofisticado assim com os mesmos ingredientes que eu sempre tivera na cozinha? Depois ele fez questão de dirigir meu carro, dando uma carona até a editora. Até porque, eu estava muito atordoado com esta manhã surreal. Mas aos poucos começava a me dar conta do quanto este fenômeno singular poderia favorecer-me, no fim das contas. Teria eu um poder paranormal? Este mundo, afinal, era regado de magia? Bruno interpretaria a si mesmo em um filme-sobre-o-livro? O filme teria continuação em uma série de televisão? Eram tantas as divagações que mal percebi quando Bruno estacionou o carro em frente à editora e começou a conversar com o editor-chefe. Em menos de cinco minutos, Bruno e Idevan – este era o nome do editor – já estavam proseando na calçada, um dando tapinhas nas costas do outro e gargalhando, como se fossem velhos amigos (Bruno levava mesmo jeito para se socializar, mas isso já começava a me causar espanto).
Saí do carro e resolvi explicar a situação, antes que as coisas parecessem ainda mais estranhas. Mas nesses poucos minutos, Bruno já havia convencido Idevan de que sua versão para o livro era mais atraente e lucrativa do que a minha versão original. Quando me aproximei dos dois, Idevan forçou um sorriso amarelo e apoiou a mão em meu ombro. Ele tinha acabado de aprovar a versão de Bruno, e já iria assinar um contrato com ele. Mas, como? O editor-chefe havia escolhido a versão do meu personagem ao invés da minha própria versão de livro? Um absurdo! Afinal, eu havia criado Bruno. Ele era fruto da minha imaginação, da minha criatividade, o mérito deveria ser meu. Mas Bruno reconfortou-me, alegando que minha obra fora rejeitada em letra, mas aceita de fato, na pessoa dele, e até prometeu-me uma porcentagem nas vendas. Lembrou-me que, às vezes, os personagens criam vida própria e se tornam independentes da direção do escritor. Alguns personagens se tornam até mais interessantes do que o próprio autor. Isso lá era verdade, mas jamais sonharia que isso poderia acontecer logo comigo. Embora confuso, eu estava contente por Bruno, por uma criação minha ter feito sucesso. Afinal de contas, o maior êxito de um escritor não é ter sua obra reconhecida? Bruno melhor do que ninguém faria isso. Eu sei, eu o criei para ser perfeito, para ser um empresário de sucesso. Como um típico pai simplório, eu estava de certa forma feliz com o êxito do filho prodigioso. E se algum orgulho a mim cabia naquele momento era justamente este, o de ter criado Bruno e ter lhe dado asas. “Eu que fiz”, pensava, com os olhos lacrimejantes.
Bruno despertou-me de minha melancolia com um soquinho no ombro – como um homem de verdade faria com um amigo melancólico. Então prometeu-me levar de volta para casa. Enquanto deixávamos a editora, pensei ter escutado Idevan gritar: “A gente se vê na festa hoje à noite, Bruno!”
No caminho, um pensamento me veio à mente: “Onde Bruno irá morar? Meu apartamento era pequeno, e, além disso, seu estilo de vida- como bem havia escrito – era de agitação e festanças. Tal natureza perturbaria minha pacata vida cheia de rotina e introspecção”. A resposta veio de forma trágica e irônica quando avistei minha namorada – minha doce e meiga Lara –, na esquina, em pé, carregando uma mala. Seu carro estacionado bem em frente ao prédio. Duas lágrimas escorriam por sua face ruborizada.
– Lara! Minha musa inspiradora! O que aconteceu? Por que está chorando? – corri para abraçá-la. Afinal, estive fora por uma semana. Mas ela afastou-se de mim, erguendo a mala e indo para o carro.
– É o Bruno! Desculpe, querido. Mas é o Bruno! Ele apareceu aqui uns dois dias depois que você viajou. Eu não sei explicar, mas ele disse coisas maravilhosas que você jamais me diria, e me mostrou o mundo de um jeito encantador que você nunca tentou me mostrar. Saiba que vim aqui tão somente para me despedir. Estou indo morar com o Bruno. - Disse minha agora ex-namorada, soluçante.
– Ah, você se apaixonou por um tal de Bruno. Espere um pouco... Por este Bruno aqui?! Quê?! Mas este Bruno aqui é só um personagem de um livro! Isso é inacreditável! Mais do que inacreditável: isso é impossível! Mais do que impossível: isso é um absurdo! – eu agora estava fulo.
– Ele pode ser só um personagem, mas ele conseguiu ser mais autêntico do que você! Adeus! – dizia enquanto colocava a mala no carro e enxugava as poucas lágrimas que restaram. Bruno a abraçou e disse a ela algo que a fez rir (Droga, Lara tinha vinte e poucos anos!). Em seguida, Bruno resolveu prestar contas comigo (Droga, como ele conseguia ser tão gentil em um momento como esse?):
– Olha, cara. Não é nada pessoal. Mas você me fez assim. “Sabe o que é viver cada dia como se estivesse com a mulher amada, degustando uma taça de vinho francês, sentado na grama de um parque, admirando um pôr do sol de verão? A mim só faltava a mulher amada”.
– Capítulo 4, Linha 28, Bruno. Você está citando uma frase sua do livro que eu acabei de escrever sobre você! – respondi, cabisbaixo.
– Eu sei. Essa é diferença entre você e eu. Você tão somente escreveu sobre isso. Mas eu vivi. Eu sempre irei lhe agradecer por ter dado esta vida para mim. Mas você também sabe que, agora que eu existo, só eu posso compartilhá-la. Este é o meu propósito. Eu existo para isso. Para viver a vida todos os dias “como se provasse um sofisticado coquetel”.
Ao dizer isso, meu personagem mais bem-sucedido acenou para mim e piscou o olho de forma simpática antes de partir. Ah, Bruno, meu Bruno! Como você pôde fazer isso comigo? Na verdade, pensando bem, como eu pude fazer isso comigo? Se não bastasse perder o contrato com a editora, agora eu ficara sem namorada. Nada mais me restava a não ser escrever de novo. Recomeçar meu ofício. Mesmo que seja um conto. É isso! Se consegui trazer um personagem à vida uma vez, talvez seja possível repetir o feito. Preciso voltar para a praia. Entrar no clima inspirador novamente. Quem sabe não dou vida a um personagem mais companheiro? Com certeza um que não roube minha vida.
Sem perda de tempo, arrumo minha mala para mais uma semana e trato logo de partir para o litoral novamente. No caminho, quase causo um acidente de trânsito ao voltar minha atenção para um outdoor anunciando o mais novo programa de entrevistas da cidade, com ninguém menos que o Bruno Willians como apresentador! Recobro a consciência desejando não me deparar com mais ironias e concentro-me em apenas voltar para o meu querido chalé de criação. Mas desta vez, todos os chalés estão lotados. A recepcionista da pousada aponta para uma mulher de elegância inglesa, cabelos grisalhos, vestindo um blazer cinza, e que acabara de alugar o último chalé, justamente o qual eu me hospedara. Corro até a mulher para ver se a faço mudar de ideia. Mas ela está decidida a ficar. Diz que também é uma escritora em início de carreira e que o lugar paradisíaco fora muito bem recomendado por um homem chamado... Bruno.
– Bruno? – engasguei.
– Sim, Bruno Willians – confirmou. – Um bonitão bacana e conversador, o noivo da Lara...
– Eu sei quem é Bruno Willians! – exaltei-me. Espere um pouco. Eles já vão casar? Recompus meu tom e prossegui o interrogatório – Mas como raios você o conhece?
– Essa é uma boa pergunta. Mas você não vai acreditar. Ele simplesmente inventou-me! Eu sou uma personagem de um conto dele que criou vida. Agora, com licença. Eu estou a trabalho e preciso desenvolver uns contos de ficção científica para ele. Tenha um bom dia. Ah, quase esqueci. Tome aqui um cartão de visitas do Sr. Willians.
Peguei o cartão. Mas rasguei só de raiva. Esses fenômenos já tinham ido longe demais. Como se não bastasse um personagem fictício ser trazido à existência, agora um personagem estava dando vida a outros personagens. Se Bruno provocou tantas mudanças em apenas uma semana, aonde isso iria parar?
Mal terminara meus desassossegados pensamentos e uma propaganda é veiculada na televisão da recepção, atraindo a atenção de todos: está sendo anunciado um novo Reality Show para o começo do ano. E Bruno fora selecionado para participar junto com outras celebridades. “Um personagem de ficção selecionado para um Show da Vida Real”, revoltei-me. Não contive minha indignação e comentei com a recepcionista:
– Você sabia que aquele ali é só uma mera fabricação de um roteiro bem elaborado? – desabafei.
– E todos eles não o são? – respondeu secamente a recepcionista.
– Mais um intelectual metido a discutir o que é realidade e o que é entretenimento – praguejou baixinho um moleque atrás de mim, avesso a minha revolta metafísica.
Sem nada mais a fazer por ali, entrei no meu carro e peguei a estrada. Não precisava mais de um chalé, precisava da minha casa, e ligar para um psiquiatra. Refletir sobre minha vida. E ligar para um psiquiatra- bem, acho que já disse isso. De repente, ao virar uma curva (enquanto tentava achar o telefone de um psiquiatra), um homem mascarado, vestido de vaqueiro e montado em um cavalo preto, salta do matagal, bloqueando meu caminho. Com uma pistola em cada mão, ordena que eu pare o carro. Um assalto. Era só o que me faltava. Ele pede dinheiro. Dou tudo o que tenho. Então ele empina o cavalo e grita algo sobre alcançar o trem pagador, cavalgando velozmente para o pôr do sol. Mas de onde saiu um vilão do velho oeste?, pergunto a mim mesmo. Essa não! Bruno!
Mal me recomponho do assalto e me aparece um homem vestindo um uniforme colante, descendo do céu em alta velocidade. Ele pousa na estrada de terra batida com um estrondo, levantando poeira. Joga a capa esvoaçante para trás e pergunta em que direção fora o malfeitor. Eu aponto para o oeste com as mãos trêmulas, mas o super-humano diz para que eu nada tema, e então esbraveja uma fala clichê, enquanto voa novamente como um foguete, singrando o crepúsculo em perseguição ao bandido.
Antes que escureça eu ligo o carro e trato de rodar a estrada novamente. Não pretendo ser abduzido por nenhum alienígena que Bruno porventura tenha inventado. É isso! Bruno é minha invenção. Eu o criei e posso finalizá-lo também. Posso continuar a escrever sobre sua vida e fazer com que minha vida volte ao normal. Será que invento que ele se muda para outro país? Será que eu conseguiria até mesmo escrever que ele morre no final?! Não. Não sou um assassino. Mas, oras, ele não é humano! E como escrever pode causar a morte instantânea de alguém? Não existem leis sobre isso. Vários escritores matam seus personagens e isso não é crime. E se as criações de Bruno sumirem junto com ele tanto melhor.
Estaciono na esquina de casa e vejo um velho amigo meu da faculdade tomando uma cachaça no bar. Bem, acho que uma dose ou duas irão me dar mais coragem para minha tarefa tão decisiva.
– Há quanto tempo! E aí? O que conta de novidade? – cumprimenta-me Rodrigo, enquanto dá uma tragada daquelas.
Peço uma dose dupla e também dou uma tragada de esquentar a garganta.
– Ah, Rodrigo...! Lembro de quando você trancou a faculdade de Letras e foi cursar Filosofia. Então me responda uma coisa: Se os ingredientes da minha cozinha são os mesmos, como pode um cara cozinhar melhor do que eu? Se a mulher é a mesma, como pode um cara namorar melhor do que eu? Se o mundo é o mesmo, como pode um cara viver melhor do que eu? Os ingredientes não são os mesmos para todos? – Desabafo, batendo o copo vazio no balcão.
– Acho que, independente das habilidades naturais de cada um, o mais importante é ter dedicação no que se faz – respondeu, um tanto atônito.
– Bah, dedicação! Dedicação...! A única vez em que me dediquei de corpo e alma, criei algo realmente extraordinário. Mas de que adiantou? Bruno roubou minha obra-prima, minha namorada, minha vida...
– Que Bruno?! Bruno Willians? Você também conhece ele?
Simplesmente lancei um olhar congelante para Rodrigo e virei as costas para o bar, tratando logo de chegar em casa. Não posso mais adiar meus escritos fatais.
Entro no prédio bufando. O porteiro me chama, interrompendo minha marcha decidida. Se eu escutar a palavra Bruno mais uma vez, eu juro que dou um murro na cara desse porteiro, pensei:
– O senhor é aquele escritor, não é? Minha esposa sempre lê suas crônicas de domingo. Será que ela conseguiria um autógrafo? – perguntou.
– Olha, Oliveira, eu estou muito ocupado neste momento, mas ficaria honrado em dar meu autógrafo para sua esposa uma outra hora.
– Bem, na verdade, ela gostaria que o senhor conseguisse pra ela um autógrafo, mas do Bruno.
Eu realmente quis esmurrar aquele homem, mas resolvi guardar minha energia para concluir minha trama sobre o diacho do Bruno – droga, agora sou um autor que pegou ódio do personagem!
Entro no apartamento enfurecido. Sim, fúria é a emoção apaixonante de que preciso para dar vida (ou fim) aos meus novos textos. Começo a escrever em uma folha de papel em branco. Escrevo uma frase, e mais outra. Estou chegando ao clímax de minha narrativa: “... E então, Bruno Willians aproxima-se da varanda do décimo andar, quando de repente...”
Um baque. Policiais estão invadindo meu apartamento com ordens de prisão. Mas o que está acontecendo? Sou informado de que estou sendo detido por escrever uma biografia não autorizada e por tentativa de assassinato. Era só o que me faltava. Será este o meu fim? Sou levado até a delegacia e o chefe de polícia diz algo como: “Macacos me mordam! Tirem este maldito delinquente da minha frente, rapazes!”. Espere um pouco. Ninguém fala assim na vida real. Esses agentes são personagens de uma trama policial! Droga, Bruno! Você pensou em tudo, até mesmo em se proteger de ser dirigido por seu próprio autor!
Eu agora divido a cela com outro detento. Por mais uma ironia, é o mesmo vilão mascarado que me assaltara na estrada há algumas horas, e que passa o tempo olhando para o teto e jurando vingança contra um tal de Capitão Átomo. Desiludido com meu futuro, já não sei mais o que será da realidade, agora que está sendo apenas parte da criação de um personagem fictício. Bruno literalmente fará com que este mundo esteja aos seus pés, sem dúvidas. Bem, talvez isso até seja uma coisa boa, já que a maioria das pessoas parece não dirigir a própria vida, tão somente vagueiam neste mundo como espectadores, como coadjuvantes, e não como protagonistas. Mas as pessoas estão preparadas para Bruno? E se Bruno e seu mundo se voltarem para o mal? Ó, como pude ser um autor tão inconsequente? Parece até que estive brincando de Deus. Mas sendo só humano, creio não ter forças para arcar com tal responsabilidade. Será que Deus responderia minhas orações se pedisse para que tudo voltasse ao normal? Sem mais esperanças, ajoelho-me no chão gelado e úmido da cadeia e começo a rezar. Não que eu tenha uma fé específica. Acontece que minha vida – ou o mundo – havia perdido completamente o sentido. Fecho os olhos com força e peço para que tudo isso acabe, para que tudo isso seja apenas um pesadelo. Em minha mente vejo uma luz suave no meio da escuridão. Pouco a pouco a luz transforma-se na imagem de Deus, o Deus barbudo assentado no trono, como nas histórias da catequese. Eu realmente sinto que Deus respondeu minha oração, consolando-me:
– Meu filho, não tema. Eu te criei desde pequeno e continuo zelando por você.
– Deus, meu pai amado, eu sei que você me criou com todo amor, mas agora preciso de ajuda.
– Não, filho. Você não entendeu. Eu realmente criei você. Eu sou um escritor do mundo real. Você é apenas um personagem literário que eu desenvolvi e que também criou vida própria. O personagem mais maravilhoso e complexo que já criei. Tão complexo que foi capaz de dar vida a seus próprios personagens, dentro de seu mundo literário. Tão complexo que acredita que tudo isso seja a vida real. Mas não se aflija, meu filho. Eu irei escrever um final feliz para você. Apenas durma, e amanhã você verá que tudo estará consertado. Tudo estará bem. Agora fique em paz – disse meu criador, com um sorriso paternal.
Abri os olhos novamente e fiquei de pé. Meu coração palpitava. Minha respiração ofegava. Toda minha vida não passava do roteiro de outra pessoa. Eu era apenas um personagem dentro de uma estória maluca. Eu já havia tido essa sensação antes, mas pensava que isso era apenas um devaneio existencialista comum a todo ser humano. De qualquer forma, mesmo eu sendo imaginário, tudo voltaria ao normal dentro da minha realidade. Não contive a emoção e resolvi compartilhar minha revelação com meu provisório companheiro de cela. Afinal, tudo isso passaria mesmo. Mas o vilão mascarado testemunhou que também já tivera a mesma experiência mística em seus momentos de desespero. Claro, somos personagens do mesmo criador, concluí, rindo comigo mesmo.
– Por acaso a aparição piscou o olho para você de forma simpática antes de desaparecer, compadre? – perguntou o vilão mascarado.
Agora que meu companheiro de cela mencionou, eu lembrei. A aparição tinha mesmo piscado o olho para mim, de fato.
– Ó, entendo – disse o vilão, agora rindo. Então, continuou: – Aquele não era o seu criador. Até porque você não é um personagem de ficção. Você é real mesmo. É um escritor de contos medíocres e de crônicas de jornaleco. Sinto lhe informar, mas quem você viu em sua oração foi apenas Jobilin, o deus brincalhão. É o personagem mais traiçoeiro e sacana já desenvolvido pelo nosso admirável e hilário Bruno Willians.