Ressurreição

Ele acreditava na vida eterna. Buscou por ela. Nem imaginava como seria. Existência eterna? Ressurgimento eterno? Consciência eterna? Afinal, o que era a eternidade? Existir até o esgotamento final da transferência de energia do Universo? Ou do equilíbrio de energia entre os universos do Multiverso? Uma vida incorpórea nunca atraiu. Não era o bastante, para ele, o esgotamento da entropia de sua própria existência? Aparentemente não! Ele queria mais. Queria uma eternidade da carne! Mesmo tendo a certeza de que nada de novo haveria para se viver após um tempo muito longo,ele queria ver, queria testemunhar este nada com os próprios olhos.

Não havia nada de bonito neste nada, no esgotamento de novidades, final da troca de informações, mas ele QUERIA VER! Por não aceitar o final é que ele, foi aos poucos abrindo os olhos dentro de um branco carro de ambulância em carreira descompassada.

— Rishney isnof nai bepishnâp... Ifm-Ná!!

Os dizeres dos paramédicos nenhum sentido a ele trazia. Sua confusão mental certamente era a explicação óbvia para isto. Se lembrou aos poucos de um grave acidente de trânsito. Ele, ser orgânico, desprotegido perante a fúria de um bruto corpo de metal guiado por outro com cérebro e coração de pedra. Teria sobrevivido? Era fácil perecer perante tais feras! O mortal impacto na cabeça inutilizando o cérebro, senhor da existência! Ou o também mortal impacto na coluna vertebral, calando todo o contado nervoso com o resto do corpo. O cérebro só, isolado, incapaz de perceber o mundo pelos sentidos, ou interagir com ele com impulsos nervosos. Ou acidentes ainda mais medonhos, vísceras humanas expondo seu dono a uma macabra nudez que nunca seria sonhada nem no pior dos pesadelos. Mutilação que impossibilitava qualquer tola tentativa das defesas do corpo de reverter os danos. Ah, como saber? Tudo de que tinha consciência agora eram daquelas palavras esquisitas, proferidas naquela língua estranha!

— Ranin ranin grej najim! Nashim machê!!!

O breve instante de consciência começa a se esvair rápido. Gradativamente ele de novo se esvazia no nada, retornando ao estado que (agora ele o sente!) parece ser o natural de todo ser consciente!

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Quando ele despertou de novo, não compreendia porque os paramédicos o deitavam fora da maca, depositando-o naquele chão frio. Só tentava compreender, sem sucesso, os dizeres daquela língua estranha, que um desconhecido berrava:

— U sarvôrb! U sarvôrb!

Ele observou a tétrica cena dos paramédicos colocando fora da maca seu braço decepado. E, ao mesmo tempo, o colocando no chão. Que estava acontecendo ali?

A ambulância fechou as portas e foi se afastando. Mas... que estranho!!! Ela se afastava em marcha ré!!

A dor só aumentava. Ele agora via seu membro, o braço esquerdo, claramente separado de seu corpo! O sangue jorrava do membro amputado. Sim, era um acidente, ele se lembrava dele. O ACIDENTE QUE HAVIA COLOCADO FIM À SUA VIDA!! Por que voltavam assim tão nítidas suas lembranças ?

A dor crescia. Não resistiu a elas, e de novo desmaiou...

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Estrebuchava desfigurado em meio à avenida. Populares faziam roda, observando a cena. Fora gravemente atropelado! Mas viu depois as pessoas se afastando... A dor era intensa, aumentava a cada segundo. Foi quando viu aquele carro se aproximando em marcha ré! Como era possível alguém correr tanto guiando para trás? Mas o atingiu. Ele voou. O carro voltando, em altíssima velocidade... e ele, logo depois de voar e se ver despedaçado, viu cada osso fraturado se recompondo, cada músculo e nervo se religando enquanto ele descrevia aquela doida curva parabólica e... como explicá-lo?... caiu em pé! Inteiro, perfeito, sem um músculo, nervo ou osso danificado!

Olhou atordoado o mundo à sua volta! Os carros todos na avenida, correndo ao contrário. E as pessoas conversando naquela língua estranha. Chovia muito, isto estava claro! Saiu do meio da rua, evitando novos acidentes. Estendeu a mão para observar aquela estranha chuva. Estaria imaginando coisas, ou as gotas subiam? Apontando para baixo, a palma de sua mão permanecia seca. As gotas subiam do chão, nascendo daquela água corrente que parecia subir ao lado da rua, no meio-fio da calçada. As gotas subiam até as laterais de sua mão direita estendida, sem atingir a palma. Se espalhavam pelo dorso da mão, formando-se novamente em vários pontos e voltando a subir... em direção às nuvens do céu lá no alto! Olhou para cima sem acreditar no que via.

Agora tudo fazia sentido. Ele não esperava aquele carro vindo no sentido contrário, por isso foi atingido! E também não era nenhuma língua estranha que ouvia as pessoas todas falando! Era o bom e velho português, mas falado de trás para a frente!

De pé, ele se sentiu vivo de novo. Inteiro, sem nenhum ferimento. Mas... num mundo totalmente doido! Sim, sem sombra de dúvida, havia RESUSCITADO! Vivia de novo, depois de ter morrido naquele trágico acidente. Não vivendo uma vida diferente, uma continuação de vida fora de seu corpo. Era uma continuação corpórea, uma vida física, material. Mas uma coisa ele não sabia, ou descobria agora... Não se reverte a segunda lei da termodinâmica! O que foi vivido, foi vivido! Não se reverte o caos. Não havia maneira de se reconstruir um corpo destruído por um grave acidente sem violar leis universais. A única maneira de viver de novo num corpo saudável, depois de vitimado por uma morte violenta, era mesmo aquela: voltando, revivendo os mesmos passos que já havia pisado!

Só se vive de novo voltando tudo aquilo que já foi vivido! Pisando outra vez sobre as pegadas que já foram deixadas no chão. Ainda que seja preciso fazê-lo de trás para a frente...

*** FIM ***