Ultraviolência linguística

Meus irmãos, eu fui vítima de violência linguística. Os milicos não prenderam o autor, ou melhor, deixaram de trancafiá-lo. Porque ele mandava neles, ou seja, ele era uma espécie de chefe pra eles. Buááá buááá não paro de chorar. Falta justiça nesse mundo, gigante, eu falo a si mesmo. Sei que o gigante não pode fazer nada por nós, é porque ele não no lugar em que nós vivemos. Mas não fui ferido fisicamente, sim linguisticamente. Deram-me inúmeros socos linguísticos. Muitos pontapés linguísticos. E até sufocaram a minha respiração linguística por muito tempo e quase morri por isso. Aquilo foi muito forte e eu não tinha como me defender ferrenhamente. Do cérebro, tanto meu hemisfério esquerdo quanto meu direito, foi muito dodói. Ah, de acordo com a nova reforma ortográfica, sem acento na penúltima letra, foi muito dodoi. Foi dodoi, falo sério. Estamos nós todos nas mãos do totalitarismo linguístico. Ele nos impede de desenvolver a nossa ação linguística livremente. Sei lá como ele se chama. Prefiro não saber. Eu até tenho receio dele. Ele é capaz de esmagar qualquer coisa, exceto os seres superiores. A cada momento estou me recuperando dos ferimentos causados pela violência linguística.

Irmãos, eu espero que o que eu estou escrevendo chegue a tempo ao conhecimento de vocês. Vou descrever o episódio horrível horrível e usarei a terceira pessoa para que vocês entendam a ocasião sofrível sofrível. Sofrível. Muito diferente da época em que vocês estão nos dias de hoje. O jovem estava no bar intitulado moloko (que é uma gíria nadsat usada no livro chamado laranja mecânica, significa leite) lendo um livro. Surgiu do nada o sujeito na frente dele e dizia coisas ruins, mesmo não se conheciam: Em nome do governo, o que você está lendo é infração civil; jogue o seu livro e queime-o imediatamente, faça o que estou implorando. Senão vai ter que conviver com a casa fechada pra sempre. Ler um livro desses sem consultar o governo é uma infração muito grave. Sem consultar o governo? Mas estamos vivendo numa democracia. O jovem se defendia. Pelo jeito você está “sem ligação à sociedade”. Explicava o sujeito insano. Sem ligação à sociedade quer dizer desinformado ou ignorante. O pobre jovem estranhava a informação dada pelo sujeito. Aquele sujeito era um homem de trinta e poucos anos e moreno. Não vejo a necessidade de descrever a fisionomia dele porque até onde eu sei, ele era apenas um capanga do governo. Do governo. <<<<pausa>>> Com o medo de perder este texto em caso da queda da energia elétrica, aperto o F12 para salvá-lo. A história continuava. Tinha mais outros dois caras seguindo o sujeito, ele deu o aceno aos seus capangas: tirem esse infrator dessa mesa. Aí foi arrastado pelos capangas até o carro preto que era inacessível financeiramente pra mim e eles o jogaram agressivamente pra dentro. Bem que ele teve tempo de perguntar pra eles: Pra onde estão me levando? À casa do governo? Olha, eu não cometi nenhum erro. Continuo sem entender por que vocês me acusaram de infrator. Façam, para mim, a gentileza de explicar as regras. O sujeito impossível de ser reconhecido com facilidade que se virou se mostrou disposto a esclarecer: se o livro que você estava lendo trata da multiculturalidade linguística é proibido. Mas, após conferirmos o conteúdo do seu livro, temos de lhe prender.

A língua da nossa sociedade é a única língua, universal, concebida pelo nosso governo. Espere, mas estamos falando a mesma língua, digo, a língua do país. Que diabos história é essa? – O jovem se mostrou confuso. Impaciente, o homem misterioso acenou para que os seus homens o amarrassem. O jovem, mesmo não fazia ideia do que aconteceu, foi arrastado pelos homens para a rua e depois eles davam inúmeras surras nesse jovem. Aparentemente ferido, o jovem permanecia deitado no chão e o homem misterioso ao seu redor disse: Em nome do nosso grande irmão, a nossa promessa foi cumprida. O nosso irmão que desobedecia nossa bonita língua foi condenado. Caso você desobedeça novamente, nós o mataríamos. Ficamos claros para você? O jovem mal levantava e dizia firmemente: exijo maiores esclarecimentos acerca do que eu fiz de errado. O homem misterioso só falava incompreensivelmente grrrr grrrrrrrrrr grrrrrrrrrrrr esses gritos de cão. Os olhos do pobre jovem foram vendados. Vocês que não valorizam a metalinguística. Cala a sua boca encardida! Um dos homens ordenava. Ao chegar ao destino, o jovem foi retirado do carro pelos homens e foi repelido dentro do depósito abandonado – o jovem conseguia reconhecer a origem do lugar pelo cheiro dos objetos podres deixados em algum canto. Em seguida, um dos homens tirava o lençol dos olhos dele e dizia: seja bem-vindo ao lugar da única linguagem, pelo tom sinistro. O jovem ficava cego por poucos segundos por conta de conviver a maior parte do tempo com a escuridão de olhos vendados. O lugar da única linguagem? O mesmo se indagava em pensamento. Daqui a pouco você receberá a sessão de reabilitação linguística. O homem misterioso o alertava. Era um lugar bem bem bem triste.

Os homens conseguiam ser atemorizantes com o jovem. O jovem, praticamente sem forças para reverter tal situação, olhava por todos os cantos interiores pensando na atitude dos que lhe prendavam impiedosamente. Naquela época, cem por cento, não existia democracia linguística. A nossa Terra era um planeta monolinguística. E inclusive todos os seres vivos diferentes eram violentamente forçados a falar a mesma língua. O pobre jovem foi reabilitado, de forma dolorosa, linguisticamente. Mais uma vítima a ser igual aos perfeitos linguísticos. Ou seja, a ser recorrente à sociedade linguisticamente perfeita. Isso denominava-se Ultraviolência linguística. Nossos netos merecem ouvir essa história mais desumana do nosso sistema solar. Portanto, é o episódio mais horrível que eu já vivi. O jovem, recuperado da violência linguística, ficava escondido escrevendo matérias contra o totalitarismo para os jornais clandestinos que defendiam a democracia linguística. Todavia, em pouco tempo os caçadores descobriam o esconderijo dele e matavam-o.

Diogo Madeira
Enviado por Diogo Madeira em 20/09/2013
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