A MÁQUINA DO TEMPO DO DR. WILLIAM

Diário de experiências do Dr. William

Experiência 39 – A máquina do tempo

23/04/2013:

Eis a luz onde reinavam trevas. Minha alma celebra e meus olhos faíscam diante das infinitas possibilidades. A máquina do tempo funciona. A longa reclusão, os sacrifícios e as árduas experiências de anos convergiram num inigualável momento de glória em benefício à humanidade. Eis o passado e o futuro na triunfante mão do homem!

26/04/2013

Como o medo freia-nos diante de maravilhas desconhecidas! Três dias de cruel ansiedade. Três dias de covarde inação. Contrariando anseios ferinos de conhecer o futuro, só agora inicio a longa e gratificante jornada aos mistérios do universo, e ao passado. Poderei eu alterá-lo? E se o puder, como se adequará a física a semelhante afronta? Como em qualquer experiência científica, dou início por eventos pequenos. A data, escolhi ao acaso dentre tantas sem importância para a história; no caso de desastre, não encontrar-me-ão culpado por um cataclismo global. Exporei unicamente minha própria história em teste.

11/09/1978 – 1°dia no passado

As cobaias não deixavam dúvidas de que eu sobreviveria à fantástica viagem, contudo, o frio na barriga e a expectativa foram-me inevitáveis. Do passado transcrevo as primeiras impressões num novo diário, eu velho em corpo de jovem. Sem surpresa recebi a constatação de que não me vejo vivendo a antiga vida, mas a vivo novamente, em primeira pessoa. Sem assombro. E não no exato local da partida, mas local original da nova idade. A viagem completou-se inesperadamente em tempo-espaço. Turbilhão de novas questões se levanta ao meu redor, sem, todavia, ofuscar o brilho das descobertas. Como seria se ajustasse o equipamento a uma data anterior ao meu nascimento ou posterior a minha morte? Por ora, limitar-me-ei a observação do instante em que me encontro e como se ajustarão possíveis mudanças na história já escrita.

Noite: A data escolhida, trinta e cinco anos atrás, deu-se por puro acaso, unicamente por encontrar-se no período de meus tempos de faculdade. Uma vida reclusa, dedicada à ciência, fez de minha mente um negro espaço em relação a memórias pessoais, porém a observância desse passado distante deu-me meu objeto de teste. Minha cobaia. Jaine. Amanhã a verei no mesmo dia.

11/09/1978 – 2°dia no passado

Talvez sua bela fisionomia houvesse agradado a meus olhos na ocasião original, contudo jamais me recordaria dela sendo a única e exclusiva vez em que nos cruzamos. Jaine estava sentada numa praça ao fim do dia e sei já o seu nome devido ao crachá pendurado no bolso. Tão bela. Poderia eu incutir tremendas mudanças no passado que tornasse essa belíssima estranha minha esposa no futuro e demovesse a solidão constante de meus caminhos? Pois fui à prática! Arrisquei-me sentar-me ao seu lado, certamente mudança considerável já nas rígidas linhas do destino, porém ainda insignificantes ao estudo. Ousei um “oi”. O frio na barriga e a timidez acentuada enregelam-me ainda agora enquanto descrevo minhas inarticuladas ações. Nada mais por hoje. Ajustei já o controle-remoto da máquina do tempo. A data: a mesma.

11/09/1978 – 3°dia no passado

O mesmo dia. O mesmo momento. Jaine sentada com um livro em mãos. Um novo “oi”, livre da timidez pela certeza do sucesso anterior e com o coração em brasa pela iminência de novo avanço. Perguntei-lhe sobre o livro que lia. Grande acerto! Com que inesperada fluidez seguiu a conversa, e que gentil menina! Sua docilidade despertou em mim alegria jamais sentida no trato humano e ao mesmo tempo um horror diante de lembranças dos meus caminhos até tão sublime momento. Os testes, os antigos experimentos, a falta de humanidade em nome da ciência tornaram-me indigno de desse louvável espécime e sentimento; a proximidade de um anjo fez-me ver o demônio que eu havia sido e, de certo modo, regenerou-me instantaneamente. Não sei a que novas resoluções minha mudança drástica irá levar-me ou mesmo se anulará trinta e cinco anos de experiências doentias e aferradas em nome do conhecimento. Mantenho para mim mesmo, por enquanto, fechado estes resultados, pois permaneço no mesmo dia. Amanhã quero tudo igual novamente, para levar a cabo minha tentativa com a doce Jaine.

11/09/1978 – 11° dia no passado

Sete dias sem escrever no diário. Sete dias sem progresso. Sete dias vivendo a mesma data. Iniciando-se toda vez o mesmo dia, nenhum progresso consegui das agradáveis e idênticas conversas no banco da praça. Arrisquei por duas vezes pedir um contato, podendo arriscar a continuação dessa doce história se atendido, ambas negadas. Com a mesma divina doçura com que me recebe pela primeira vez todos os dias, Jaine esquiva-se de minhas tímidas petições e da possibilidade de me ver no dia posterior. Assim, amanhã tento diferente abordagem antes de novamente vê-la ir embora para todo o sempre.

11/09/1978 – 12° dia no passado

Fracasso. Sinto-me um lixo. Infeliz. Depois de pela décima primeira ou décima segunda vez iniciar minha primeira conversa com Jaine e passarmos todo o fim de tarde num papo angelical, e de ter negado minhas expectativas de um contato sólido, abri-lhe o meu coração. Escancarei-o. Disse ter vindo de longe por ela, amá-la, ajoelhei-me com as pernas bambas e o coração em descontrole; agarrei as suas pernas quando tentou se afastar, beijando-lhe os pés numa agonia profunda e dilacerante. Jaine riu, depois, enojada de minha entrega, enxotou-me como a um cão de rua. Chorei preso às suas pernas. Quanto mais apego e devoção externei, maior aversão teve ela de mim. Encontro-me arrasado. Amanhã é uma nova chance.

11/09/1978 – 13°dia no passado

Dor. Grande e terrível dor. Meus dentes doem como se uma poderosa mão os apertasse e moesse, toda a minha boca se contorce em gemidos e lamentos. Sinto como se não reste um só osso intacto no meu corpo. Minhas mãos e braços tremem enquanto transcrevo essas vergonhosas linhas, meus olhos inchados e vermelhos com dificuldade reconhecem as letras. Aos dedos a tarefa de segurar firmemente a caneta afigura-se tão dolorosa e complicada quanto ao peito em mover-se segundo a segundo recebendo ar novo. Tudo me era conhecido neste dia que esmagado termino. O nascer do sol, o caminho das nuvens, os sons, cores e cheiros. Tudo. E o trato com Jaine. Nada havia que pudesse pegar-me desprevenido; nada no tempo ou nas ações que eu não soubesse quando começaria e terminaria. Sua empolgação e gentileza ao discorrer sobre o livro distópico cujo enredo eu passara a conhecer bem e dominar; a inflexão inteligente ao narrar-me a opressão dos personagens e depois inserir-me no seu próprio espírito de justificada revolta. Tudo me era conhecido e não menos prazeroso. Mesmo agora sob dores terríveis aprecio o prazer da lembrança. Mas dominava-me somente certa raiva pela rejeição anterior e uma ideia fixa. Envergonho-me e estremeço confessando que engendrei tão abjeta ideia numa criatura a mim de repente tão cara. Monstro. Queria-a à força, com a esperança tola de que uma brutalidade conquistasse dela o desejo e o respeito que a covardia, a timidez e a absoluta entrega não haviam conquistado. E aguardei até o fim de tarde, quando o céu levemente se escurecia e minha nova amada invariavelmente se retirava, para transformar meu semblante e minhas ações, embora desde o nascer do dia a expectativa me queimasse por dentro. Como sempre, Jaine se levantou e recusou o pedido de um contato futuro sem tornar-se antipática ou menos amável; sem negar-me o seu sorriso e um brilho que me tornam agora mais monstro e dominam-me com um poder assombroso. A covardia e o encantamento quase tolheram meus impulsos de violência. Mas chamei-a com a docilidade e a familiaridade que a repetição dos dias me havia concedido assim que ela se virou, e na mesma inocente simpatia Jaine tornou a me oferecer a atenção. Aproximei-me fingindo-me dócil e talvez algo tenha denunciado o mau que me movia ou talvez tenha ela pela primeira vez reconhecido o asqueroso velho por baixo da pela nova. Fato é que a sombra de minhas intenções murchou o seu sorriso e enegreceu a vivacidade de sua alma, e não fosse a rapidez dos acontecimentos, ter-me-ia feito chorar como agora tardiamente o faço descrevendo os fato em dores e a título de registro científico. Agarrei-a pelo pescoço e pelos cabelos, de súbito, surpreso pela força e vitalidade que o regresso no tempo me havia devolvido, e beijei-a. Ah, com que ardor beijei-a, e força, e com que desprezo às morais humanas! Frio e desprezível. Sinto ainda agora, nos gemidos de dor, o prazer e o reavivamento em mim sentido no ato, e lamento. Concedi a ela leve espaço a fim de observar a sua reação, pois a resistência forte não me havia convencido; considerei somente parte formal do jogo que eu havia iniciado; e Jaine gritou, a face desfigurada pelo medo e pelo ódio, e nojo, e tentou desvencilhar-se de minhas garras por definitivo e correr. Ah, a jovialidade! Com que facilidade a dominei e invadi com minha ânsia feroz. Declarei o meu amor enquanto a arrastava em direção às frondosas árvores ao fundo e a sua relativa escuridão. Já não podia controlar-me. Era todo paixões. Derrubei-a, ela debatendo-se e tentando inutilmente gritar sob meus lábios inflexíveis. A paixão, que por tanto tempo me fora desconhecida, dominava-me. A ciência e o raciocínio nada mandavam. Engoliria-a viva se pudesse. De tantos atos grotescos perpetrados em nome da ciência, sem amor, sem paixões, ali estava um em nome do amor e das paixões, sem ciência, sem raciocínio. Posso somente imaginar o abominável fim dos meus impulsos, pois, no auge de minha força e loucura, no auge desse ímpeto animalesco, uma pancada seca e imprevista tombou-me. Uma dor dilacerante na nuca; com a vista embaçada logrei ver o vulto de três homens valentes acudindo a jovem vítima, e com que remorso me recordo do seu rostinho terrificado. Cercavam-me corajosa e irreprimivelmente. Recordo-me dos primeiros chutes e socos sacudindo-me os sentidos, depois apenas uma escuridão de morte. Dor. A pele borbulha-me, provavelmente de uma queimadura profunda na face. Alegrei-me ao abrir os olhos e descobrir ao eu lado, com tudo intacto, minha bolsa com o diário e o valioso controle da máquina com que me mantenho senhor do tempo. Ajustei-o já, antes de lançar-me a este diário. 11/09/1978. Amanhã estarei de volta ao mesmo dia, com meus tormentos vivos, mas o corpo regenerado e saudável. E viverei eternamente esta data se for o preço por meu amor doentio.

Autor: Wendel B. Santiago

Email: igfry622@gmail.com

Wendel BSantiago
Enviado por Wendel BSantiago em 16/09/2013
Reeditado em 19/09/2013
Código do texto: T4484320
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