Ploc Monster (Um Conto Sobre Calçada)
2207 – Ano em que se passa esta historieta. Local: O extremo sul do Brasil.
O contexto? Tudo bem, vamos lá: estamos numa época em que os combustíveis fósseis estão esgotados e a radiação solar, o hidrogênio e a energia eólica são as principais fontes de energia utilizadas. Têm sido tempos difíceis para os homens, principalmente nas sociedades que criaram, em séculos anteriores, uma dependência extrema do petróleo e seus derivados.
Começou uma era de reaproveitamento total dos materiais, reciclagem, et cetera. O ser humano acabou desenvolvendo uma espécie de consciência ecológica forçada, por culpa do descaso das gerações anteriores e seus interesses econômicos imediatistas. Os homens do final do século XX e início do século XXI não estavam nem aí para o futuro, pois não estariam vivos mesmo.
Tudo bem, eles não estão, mas pelo menos temos suas cópias genéticas para nos vingarmos. Sim, a tecnologia de criação de clones humanos foi desenvolvida e os tabus quebrados (havendo, é claro, vários interesses envolvidos).
Duas são as maneiras de clonagem artificial: a tradicional, em que o clone nasce, cresce, e morre (quase sempre por causa da instabilidade celular, que se manifesta por volta dos 30 anos, ou induzido por um fator externo, como estresse, trauma físico ou uso de drogas). Nesse caso, o “cloninho”, gerado num útero artificial ou não, pode ser criado e educado de maneira que nada tenha a ver quando adulto com sua matriz genética, fora tendências hereditárias. A segunda maneira, desenvolvida poucos anos atrás, é mais polêmica por ser passível de ser criminosamente forçada: pega-se um ser humano, adulto de acordo com a lei, e injeta-se uma espécie de vírus (criado em laboratório) que carrega as informações genéticas da “matriz”. A função do vírus é modificar a estrutura molecular da criatura na qual ele é injetado e torná-la igual à da matriz. Esse processo de clonagem ainda está em desenvolvimento. As experiências com seres humanos foram feitas com pessoas que estavam em coma, indigentes moribundos ou doentes em fase terminal sem família (pois nestes tempos a família tem por lei uma obrigação cada vez maior de cuidar dos seus, o que traz muitos benefícios afetivos e problemas judiciais, como verão a seguir).
Voltando ao assunto, os resultados deste tipo de clonagem têm sido uma modificação física perfeita, e uma mente que não para de ter convulsões. Não se sabe o que aconteceria numa mente e corpo saudáveis, mas o fato é que ninguém se dispôs a ser voluntário.
Outro fator preocupante é a responsabilidade e inescrupulosidade das corporações que guardam e manipulam o material genético. Há também as questões morais de se criar um ser humano com tempo de vida tão curto, pois tendo sucesso parcial no processo, muitos cientistas se vangloriam (o sucesso é tudo, não?) e esquecem de aperfeiçoar a obra, aparar as arestas, afinal, já fizeram o mais difícil, que a próxima geração se preocupe, não era assim no passado?
Mas este é um conto sobre calçada. Estranho? Bem, acontece que os governos dos países mais ricos, e consequentemente o mesmo aconteceu nos países pobres, começaram a inventar desculpas ecológicas minuciosas para o aumento de impostos, e as famílias devem pagar taxas de acordo com o quanto seus antepassados poluíam o meio ambiente. A nova consciência ecológica tem lá sua razão de ser, visto que a área verde do planeta foi reduzida a um quarto do que era no início do século XXI. Mas chegamos ao extremo: famílias pobres têm seus impostos aumentados por conta de chicletes cuspidos no passado. Como? Simples. Os fiscais raspam as manchinhas pretas nas calçadas (chicletes envelhecidos, nunca reparou?), analisam o DNA contido em resquícios de saliva, consultam o arquivo genético e descobrem quem cuspiu o chiclete na calçada. Os descendentes do cuspidor pagam a conta. Tudo por um chiclete.
Existiu produto mais simbólico da futilidade do que a goma de mascar? Colorido, descartável, não alimentava nem trazia benefícios (pelo contrário, facilitava a cárie e segundo a lenda, havia casos de grudar e dar “nó nas tripas”). Não servia para nada a não ser disfarçar, dependendo da marca e apenas por alguns minutos, um sintoma que um banal hábito de higiene evitaria. Ainda bem que foi abolido.
Esclarecido o contexto, vamos ao cerne e final rápido desta história: Cristiano Jackman, descendente de americanos que migraram para o Brasil em 2045, quando seu país perdeu a supremacia que outrora exercia no mundo (sim, os países ricos, anteriormente mencionados, não incluem os Estados Unidos), cansado do constante aumento de impostos, decidiu que não mais arcaria com as consequências de um parente inconsequente. Ele viaja até o maior complexo gerador de energia limpa da América, em Santa Vitória do Palmar, uma região outrora isolada geograficamente, mas que com a força dos ventos evoluiu criando instituições de pesquisa e tecnologia em áreas diversificadas, inclusive a clonagem, depois que o mundo se indagou, ao ver o número de atletas, estudantes e profissionais de destaque em âmbito internacional de lá oriundos, “qual o segredo genético do mergulhão?” Demoraram décadas e nunca descobriram que era graças aos efeitos da ingestão prolongada do butiá ao longo da vida: coquinho na infância, fruta pura na adolescência e da versão curtida em aguardente (com mel, por favor) na vida adulta. Mas já que tinham construído os institutos para a pesquisa, continuaram trabalhando lá.
Cristiano consegue ingressar secretamente no laboratório da multinacional P.A.T.O. (Pseudocientistas Associados no Trabalho pela Omnivida), graças a um amigo que lá trabalhava de vigia noturno, Tibinkovski, que se deixou subornar por itens de colecionador, inclusive um pôster de cinema autografado do antiquíssimo “Jogos Olímpicos Mortais XXXVII”, antepenúltimo da famosa série. Como Cristiano, Tibinkovski era um nerd incurável que possuía um museu em casa, imaginem que tinha revistas e filmes dos idos de 2050, da época em que ainda se usava o tal blu-ray e dos primórdios da antiga tecnologia 3D, mas você nem deve ter ouvido falar disso, a não ser nos arquivos holográficos nas aulas de história. Quanta velharia!
O inconsequente Jackman já tinha posse do material genético de sua tatatatataravó, cuja amostra é recebida junto à multa para que se confirme o parentesco num posto de identificação de ácido desoxirribonucleico, presente em qualquer esquina ou nas farmácias, com o popular kit “É Parente?”.Com a microscópica amostra da falecida, ele adentra, em plena madrugada o centro de controle de replicantes e aciona a máquina, colocando o material no compartimento indicado e carregando o vírus nos tanques de líquido amniótico e caldo primordial artificial e temperado com orégano.
Mas o inexperiente burlador de impostos confunde os processos de clonagem viral e tradicional, aciona os dois ao mesmo tempo e o aparelho fica pedindo um exemplar humanoide para inocular o vírus enquanto prepara uma gestação in vitro. Então o que faz? Ele telefona para Tibinkovski, que desce as escadas sem noção do que lhe aguardava. Ele tropeça nos últimos degraus e desmaia aos pés de Cristiano. A máquina pedia: “insira um exemplar humanoide”. Jackman reluta por cinco segundos até lembrar que vai recuperar seus itens e ainda economizar seu suado dinheiro (de uma pensão que recebe do governo).
Então, faz o segundo ato mais abominável de sua vida (o primeiro nem é bom comentar) e coloca o amigo na máquina. O vírus distorce e altera suas feições, enquanto a placenta sintética alimenta suas células e o faz crescer além do normal. E vira um monstro disforme.
Cristiano Jackman fica com medo e sai correndo quando, fora de controle, a criatura grotesca que deveria parecer com sua tatatatataravó (mas que mal sabia ele que era mais apresentável que a original) quebra o vidro e sai correndo atrás dele, cambaleando com seu tamanho anormal, numa cena típica de antigos filmes B sobre zumbis. Pra piorar, a velha sofria de alcoolismo e outras compulsões por líquidos e ao enxergar uma estante com produtos de laboratório, acaba bebendo uma cultura experimental de fungos mutagênicos canibais e também hormônios de crescimento, e em questão de minutos, seu tamanho e voracidade quadriplicam.
O infeliz tatatatataraneto corre como o diabo da cruz, e dirige-se para o topo do prédio, pois quis contrariar a lógica do cinema de terror adolescente de que era fã, onde as pessoas faziam coisas absurdas como fugir numa direção sem saída. Ele pensou: “Como não estou numa obra fictícia, não devo me apegar a essa lógica, devo fazer o contrário para garantir.” Mal sabia ele que era o personagem principal deste conto, pois o monstro que criou desenvolveu um olfato apurado em sua mutação, e o perseguiu como um mastim napolitano, o cão, não o sorvete, embora as roupas de Tibinkovski, agora retalhadas pelo crescimento, ficaram em listras rosas, marrons e amarelas.
No topo do prédio, agarrado à antena mais alta, Cristiano viu o monstro clonado, um amálgama de ex-amigo e antepassado se aproximar e então saltou.
Foi interceptado e mastigado repetidamente, mascado como um chiclete até que foi cuspido prédio abaixo. “Que gosto ruim”- pensou o monstro – “acho que exagerei no susto”.
E de Cristiano Jackman só sobraram manchinhas na calçada.