Dia dos Pais

- Junior, pode diminuir um pouco a pressão sanguínea da prótese biônica? Preciso prender melhor esta carótida esquerda aqui do cérebro...

Ele olhava admirado a destreza com que seu velho manipulava aquele cérebro vivo de macaco, tentando fazê-lo sobreviver, em menos de cinco minutos, conectado àquela avançada prótese corporal biônica. Um misto de robô com tecidos orgânicos cultivados em laboratório.

- Pai, sempre penso em como seria bem mais simples fazer isto num corpo de verdade.

- Transplantar o cérebro de uma pessoa no corpo de outra? Que grande asneira, meu filho!

- Por que asneira? É só lembrarmos do trabalhão que tivemos (e ainda temos) para fazer a prótese corporal artificial imitar todos os mecanismos, da química e física de um corpo real...

- Junior, conhece algum doador de corpo?

- Como?

- Alguém altruísta o bastante para dispensar o próprio cérebro, ou a própria alma se você prefere chamar assim, e oferecer seu corpo para abrigar um cérebro de um desconhecido? Eu nunca conheci nenhum...

O professor Mikail Nicolelius, seu velho pai, sempre tinha razão. Quem doaria um corpo saudável para um transplante de cérebro? Não serviriam corpos de pessoas que morreram de morte natural, pois se o corpo não mais suportava o morador antigo, que sentido haveria em colocar no corpo velho e gasto um cérebro novo? Quanto tempo sobreviveria num corpo já gasto e deteriorado? Tinham as vítimas de acidentes também? Há tempos já existiam doadores de órgãos, pessoas que expressavam este desejo em vida, mas como poderiam ser doadores de corpos? Por se acidentarem estava claro que o corpo não era mais 100% saudável! Tanto que precisavam ser rápidos em retirar dele os órgãos ainda intactos! Para que colocar um novo cérebro nele? Para que mais alguém tivesse o desprazer de agonizar naqueles corpos danificados?

Não, os doadores de corpos precisavam ser voluntários, pessoas dispostas a fazê-lo ainda plenas de vitalidade. E quem faria isto? Permitir que outra "alma" tomasse o controle de um corpo no qual ainda poderiam viver muitos anos produtivos? Era por isso que precisavam aperfeiçoar aquelas próteses corporais biônicas, ou PCBs como eram chamadas carinhosamente pelos pesquisadores! Deixá-las o mais parecidas possíveis com corpos reais para poderem receber os protagonista da história toda: cérebros saudáveis e lúcidos!

As mãos do cientista tremiam. O bisturi danificando a ligação da artéria carótida biônica com o cérebro da cobaia... O peso dos anos vividos cobrando seu preço!

- Ah praga!! - lamentou o cientista. - Quanto tempo, Junior?

- Seis minutos desde que o cérebro foi tirado do tanque de animação suspensa, pai.

- Abortar! Já era, garoto! Seria crueldade transplantarmos uma cobaia danificada!

Ele desliga os aparelhos de monitoramento.

- Reaproveitamos o corpo, pai?

- Se possível sim, filho! Sabe como são caros! E a universidade já está questionando nossos gastos, sem resultados...

O velho professor de neurologia suspira. Ah, se ele não estivesse tão velho! Conseguiria provar para todos que era possível! Mas a idade pesava. Tinha esperanças de ter conseguido passar ao filho tudo que ainda pretendia fazer, pois sentia que ele próprio não conseguiria continuar...

...

- Por que as próteses têm sempre formas de macaco, pai?

- Ah, filho! Se imagine um macaco! Seu cérebro é retirado de seu corpo e transplantado para um robô! Gostaria de se ver como? Ferros, engrenagens e parafusos?

- Bom, o mais parecido com como eu era quanto possível!

- Eu também, filho! Mas pensando bem... - olhou com ternura o fiel assistente de experiências de transplante cerebral, o único em quem seria capaz de confiar! - Não me faria mal me ver mais novo! Já te disse que era bem parecido contigo quando mais novo?

- Já sim, pai! Várias vezes! E têm muitos arquivos de fotografias digitais antigas que comprovam isto!

- Sim, filho! Se alguma vez nossa experiência tiver sucesso, e eu puder voltar numa prótese biônica, me agradaria muito se ela fosse parecida comigo mais jovem. Ou contigo, o que dá na mesma.

- É um pedido, pai?

Mikail Nicolelius olhou para Mikail Nicolelius Junior com ternura.

- Ainda vai demorar até aparecerem resultados, filho! - pensou no corpo já fraco, músculos trêmulos e imprecisos que já limitavam suas experiências com cérebros de macaco - Não acredito que verei isto ainda em vida. Mas confio muito em você! Sei que vai continuar de onde eu parar!

- Pai, não fale assim!

- Me prometa, Junior! Você vai continuar isto! Com meu sonho! Com a maior chance que o ser humano já conheceu de se aproximar da imortalidade!

- Não sei se sou capaz, pai! O senhor é um gênio! Não sei se herdei isto de você...

- Você viu tudo desde o começo, Junior! Viu como eu faço, porque faço, como penso... Confie mais em você! Logico que vai saber continuar!

Abraçou o velho com ternura. Sempre o incentivando!!! Sabia que o filho não era tão inteligente como ele, mas nunca deixou de acreditar!

...

Mikail Nicolelius agonizava em seu leito. O cérebro do mundialmente famoso neurocirurgião continuava vivo e ativo. Mas infelizmente seu corpo não o acompanhava. Quantas vezes o filho o viu se impacientar ao não conseguir concluir suas experiências por limitações físicas, por suas hábeis mãos não mais conseguirem acompanhar os comandos precisos de seu cérebro...

- Junior, você sabe que me resta pouco tempo, não é?

- Pai, não diga isto!

- Somos adultos! E cientistas! Vamos encarar isto do lado racional, por favor!

Ah, se a pesquisa estivesse concluída! Se pudesse transplantar o cérebro de seu velho pai para uma prótese corporal nova em folha, viva, para continuar o que começou! Einstein morreu com o cérebro de um rapaz de 20 anos! Imaginem só se pudessem tirar o cérebro de Einstein na época, colocá-lo para mais anos produtivos num corpo novo! Quanta coisa ele teria desenvolvido a mais?

- Confio em você, Junior! O laboratório, as próteses corporais humanas, os dados da pesquisa, mesmo aqueles secretos que nunca te contei por saber que nunca aprovaria... São todos seus! Sei que saberá aproveitá-los da forma adequada! Que vai continuar o que comecei!

- Não me deixe, pai! Ainda não estou pronto para isto...

- Deixe de besteira, Junior! Você é brilhante! Te falta um pouco de confiança, mas... você tem meus genes, caramba!!

Mikail Nicolelius Junior viu preocupado os sinais vitais de seu velho sinalizando o fim.

- Pai, eu...

A linha contínua na tela do eletrocardiograma, simultânea ao monótono e agudo apito, mostrava que já era o fim. Ou... agora ele sabia! Era apenas o começo do fim! Restavam ainda 5 minutos antes do fim derradeiro. Poderia reverter se agisse rápido!

...

- Vai mesmo fazer isto? - o diretor do hospital, Hernest, nunca achou que o jovem levaria aquilo adiante!

- Rápido! Temos quatro minutos! Depois disso os danos cerebrais são irreversíveis...

- Teu pai nunca aprovaria isto.

Chegaram no quarto com aquele pequeno tanque de água, do tamanho de uma cabeça humana, fechada pela cúpula de vidro. E olhou com tristeza o corpo inerte deitado no leito do hospital.

- Infelizmente ele não está mais em condições de decidir isto, meu amigo. Isto agora só cabe a mim.

...

Mikail Nicolelius acordou com uma dor de cabeça insuportável! Aquele horrível gosto de cabo de guarda-chuva na garganta lhe mostrava que havia dormido por muito tempo!

- Bom dia, professor! Como se sente?

- Me sinto bem! - respondeu àquela enfermeira bonita. - Onde estou?

- Por hora, basta saber que está num hospital! O senhor dormiu por seis meses! Que sono, hein!!!

Se lembrava do filho, da última conversa, e enfim... de ter apagado. Ah, enfim não tinha ainda chegado sua hora! O mundo ainda precisaria suportá-lo mais um pouco!

- Posso me levantar? É seguro eu fazer isto?

A enfermeira bonita o olhou de cima a baixo. Ah velho safado! A tempos ele não sentia seus hormônios assim tão ativos!

- Me parece bem saudável, professor! Pra quem dormiu seis meses...

Sento-se na cama. Ergueu as mãos e olhou para elas. Como estavam... jovens! Para onde foram as rugas com as quais já se acostumara?

- Minhas mãos estão diferentes... Que aconteceu?

- Não sei de nada, professor. Mas vou chamar o diretor! Ele me avisou sobre isto quando o senhor acordasse...

- Enfermeira, eu gostaria... - mas a moça já havia saído do quarto.

Mikail Nicolelius tentou se levantar. Se sentiu tonto no começo, mas logo se adaptou. Queria ver como ficava o rosto de um velho depois de dormir por seis meses, mas... Onde estavam os espelhos? Simplesmente não havia nenhum nas paredes daquele quarto, nem no pequeno lavabo anexado a ele.

- Ah, Professor Nicolelius! - o diretor do hospital, que ele já conhecia de vista, entrou no quarto. - Fico feliz que tenha despertado!

- Que aconteceu aqui, meu caro? Apreciaria muito ter um espelho para ter certeza de que estou apresentável...

- Certamente está, professor. Mas seu filho nos avisou que isto, por enquanto, poderia não ser muito...

- Espelho, por favor!!!

O diretor lhe apresentou um pequeno. Pendurou na parede e olhou seu próprio rosto. Mas... estava jovem? No momento lembrou da conversa com o filho, do desejo de voltar numa prótese com sua aparência mais novo.

- Ele conseguiu, não é? Ah, mas que molecagem! Me colocar numa prótese corporal com minha própria aparência mais nova! Como ele resolveu o problema da reconexão neural?

O diretor permanecia mudo...

- Sabia que ele era capaz de fazê-lo! - olhou sua imagem no espelho, e por um instante imaginou ver lá o próprio filho. Ele sempre disse que, quando jovem, eram bem parecidos...

- Professor, preciso te contar algo que...

No espelho, ele olhou bem para os cabelos. Tão artificiais! Nos seus últimos dias de vida orgânica, se lembrava que era a única parte da prótese que ainda não conseguiam reproduzir perfeitamente. Mas quem se importaria com os cabelos, tendo uma chance de voltar à vida?

- Sempre acreditei que o Junior resolveria o problema! Garoto de ouro! Preciso ter uma conversa séria com ele, por ter usado o próprio pai como cobaia, mas...

- Professor, o senhor precisa mesmo saber de uma coisa!

Ergueu a franja artificial. Uma peruca? Sim, ao puxar para cima, percebeu que era mesmo uma peruca! Muito mal feita, por sinal!

- Logo depois que o senhor morreu, seu filho...

Mikail viu a careca reluzente de sua nova cabeça. Que pontos cirúrgicos eram aqueles descrevendo uma circunferência em torno de sua caixa craniana?

- Professor Nicolelius, preciso mesmo te contar algo!

Olhou com cuidado no espelho para sua testa, para aquela visível cicatriz que seu filho havia adquirido numa travessura inconsequente de criança. Não, ele não podia acreditar nisso!

- Hernest, cadê meu filho?

- Calma, professor! Tenha muita calma! O que vou te dizer é difícil.

- Mikail Nicolelius Junior!!! Por Deus, me diga onde está Mikail Nicolelius Junior!!

- Professor... - o diretor sentia um bolo intragável em sua garganta, impedindo-o de continuar a falar. - Legal e tecnicamente falando, você agora é ele!

- Como???

- Transplante cerebral, professor!!! Seu cérebro foi colocado no corpo de seu filho!

O mundo começou a se dissolver neste exato instante. O professor Mikail Nicolelius, no corpo de Mikail Nicolelius Junior, desabou desmaiado no chão.

...

Ele acordou mas ainda prestes a desfalecer de novo. Ele nunca teria permitido tal absurdo!

- Professor, sabe muito bem como seu filho é impetuoso! Já havia preparado tudo! Não tínhamos como questioná-lo! O senhor mesmo o colocou como detentor de todos os direitos após sua morte, capaz de decidir todas as experiências, poder de usar todos os aparelhos, e ele se aproveitou disto.

- Preciso ver o túmulo...

- Túmulo, professor? Quer mesmo ver onde foi enterrado o resto do seu corpo?

- Não estou falando de mim, homem! Quero ver onde está enterrado meu filho! Imagino que sepultaram dignamente seu cérebro depois que o separaram de seu corpo, não é?

O diretor engasgou de novo.

- Professor, eu diria que seu filho... tecnicamente não está morto!

- Que disparate está me dizendo? Ele é um cérebro vivo flutuando por aí?

- Professor, venha comigo...

...

Um cérebro vivo boiava num tanque de água salina mantida a 20 graus. Dois vasos levavam sangue às carótidas, e outros dois recolhiam sangue usado das jugulares.

- Ele está vivo? Consciente, quero dizer?

- Eu diria que está num coma induzido, professor.

- Sim, como os cérebros das cobaias. Ah, Junior, Junior...

- Ele estava confiante, professor! Achava que era a melhor decisão!

- Que loucura! Que loucura! Como ele pôde fazer isto?

- Repetia que não tinha capacidade de fazê-lo, mas que seu velho pai certamente conseguiria se tivesse mais tempo! E ele se sacrificou pra te dar este tempo!

- Ah, Junior! Que vida desperdiçada! Um cérebro boiando num frasco de vidro... - lágrimas corriam abundantes em sua face.

- Ele acreditava mesmo no senhor! Sabia que, se tivesse tempo, desenvolveria uma prótese corporal viável.

Olhou com carinho para o cérebro boiando dentro daquele tanque de vidro.

- Junior, Junior... sempre tão impetuoso! Como seu velho pai aqui poderia imaginar que, depois de adulto, você cometeria a maior das travessuras de sua vida?

Aproximou-se da cúpula de vidro daquele tanque de água salina a 20 graus de temperatura, beijando-o ternamente.

- E agora, professor?

- Agora? - lágrimas escorrendo abundantes pela sua face... Que presente de dia dos pais havia ganhado! - Que estamos esperando? Onde está aquele corpo biônico antropomorfo que estávamos aperfeiçoando? Ao trabalho, gente! Ao trabalho! Preciso trazer meu filho de volta pra este mundo!