O Padre (O Fim e Reinício do Mundo)
O padre Ernesto aparava as folhas das arvorezinhas em frente a sua pequena capela, em uma ruazinha perdida em uma periferia. Era sua rotina diária, praticada dia a dia desde que chegara àquela cidade, há alguns poucos anos. Uma folha murcha ali, outra amarelada aqui, e passava a pacata manhã do pacato pregador. Gostava da brisa que soprava quando o sol ainda não estava alto no céu, dos passarinhos voando e piando livres, sem medo dos transeuntes que mais tarde passariam barulhentos por ali. Não que passasse muita gente por ali. Era uma rua meio solitária, com metade das casas portando cartazes de “aluga-se” e comércio local reduzido a um boteco de esquina que parecia nunca ter clientes. Padre Ernesto gostava daquela rua, apesar de vazia. E dedicava-se a fazer uma boa missa, apesar da igreja vazia. Acostumara-se a sermões dedicados a meia dúzia de pessoas. Era normal nos dias de hoje, lamentava. As pessoas tornaram-se mais apressadas, com coisas a fazer todo o tempo. Dizia a si mesmo que Deus ainda era amado, mesmo que seus fiéis não tivessem oportunidade de vir sempre à missa.
Até que um dia, aparando suas arvorezinhas, ele subitamente parou. Nada de inusitado ocorrera naquele dia; mas naquele momento, sem motivo algum, algo o abateu. Com a mão apoiada no fino tronco, olhou para o chão. Olhou para as formigas no chão, sem realmente vê-las. Ficou lá por alguns minutos. Voltou para dentro. Foi caminhando por entre os pequenos bancos de sua pequena igreja e sentou-se em um dos degraus que levava ao altar. Massageou levemente a testa. Podia ser pressão baixa, mas sentia que era algo interior, algo como uma tristeza. Olhou em volta.
Antigos bancos de mogno resistiam ao tempo, ainda que lascados e manchados, com um cheiro forte de verniz obtido após tantos anos de recauchutagem após recauchutagem. O piso de taco formava padrões no chão, suas cores disformes transformavam o piso num grande mosaico que não formava imagem alguma. No ponto em que as paredes amareladas pelo tempo encontravam o gesso rachado do teto, havia uma teia de aranha. Sua moradora escondia-se pacientemente em uma extremidade, a espera de alguma mosca incauta. A igreja não estava em tão mal estado assim, mas hoje, nesse momento, aquele lugar, junto a seu sacerdote, parecia abandonado. O humilde padre sentia-se inferior. Sentia-se esquecido. Sentia que neste mundo não havia mais espaço para um deus ou um velho padre. Passou a mão pelos ralos cabelos e foi se deitar. Não se sentia bem.
Levantou-se ao anoitecer. Sentia-se um pouco melhor. Saiu da pequena edícula aos fundos da igreja, onde dormia. Tinha vontade de rezar. Em frente aos mirrados portões de sua santa casa, olhou pra trás e viu que todas as luzes estavam apagadas, algo raro ultimamente. Olhou para a lua e as estrelas. Brilhavam mais do que nunca. Sentiu como se Deus estivesse olhando. Pacificado, adentrou.
Naquela noite a reza se seguiu por toda a sua duração. Padre Ernesto rezou como nunca rezara antes, com uma fé que nunca tivera antes. Pedia por respostas. Pedia por um sinal de que Deus não o abandonara. Pedia uma intervenção divina, pois o rebanho se dispersava.
Seguiu-se uma manhã como outra qualquer. À tarde, viu algumas crianças brincando na rua, algo inusitado para essa geração. Viu crianças magricelas chutando bolas impecáveis, provavelmente nunca antes usadas, com suas perninhas finas, sem quaisquer cicatrizes causadas por brincadeiras mais físicas ou alguma queda no asfalto. Também viu crianças rechonchudas coradas e ofegantes correndo poucos metros antes de se esbaforir, mas ainda assim se divertindo. A visão acalmou o pobre padre.
Na manhã seguinte, assistiu-lhes brincar enquanto varria a solitária calçada em frente à igreja, e a tarde ensinou às crianças algumas brincadeiras de sua época. Padre Ernesto não conseguia nem mesmo lembrar a última vez que se dirigiu a crianças, e nunca pensou que o conhecimento de suas brincadeiras de infância interessaria aquele bando de crianças a sua frente, tão diferentes das de sua juventude. Ao anoitecer, meio cansado da incomum agitação deste dia, reparou novamente nas luzes apagadas por toda parte. Foi dormir sorrindo, pensando neste feliz dia incomum. Mais um dia e mais crianças brincando. E assim se seguiu até o fim de semana.
O sábado foi um dia de expressões zangadas. Pessoas passavam pra lá e pra cá com caras fechadas. O padre achou inusitado vendo tanta gente passando pra lá e pra cá, sendo que mesmo durante os fins de semana aquela era uma rua quase deserta, e então percebeu algo. Há dias não via um carro passando. Sim, aquela era uma rua calma, mas ainda assim, uma quantidade mínima de veículos trafegava por lá, mas nestes últimos dias não passou carro algum, nem moto, nem caminhão. Nada. Pensou em perguntar a algum transeunte se algo havia acontecido, mas as caras fechadas que traziam o faziam perder a vontade. Demorou a dormir na noite escura com a qual se acostumara. Ficou pensado no que poderia ter acontecido com os carros enquanto olhava a lâmpada queimada no teto de sua pequena edícula. Estava queimada a mais de dois meses, mas a escuridão nunca incomodou o padre, que postergou a compra de uma lâmpada nova de novo e de novo, até chegar ao ponto de até hoje não tê-la trocado. Por fim, depois de pensar em tantas amenidades, dormiu.
Domingo, dia de missa. Padre Ernesto selecionou para este dia o salmo de Davi. Preparou com esmero seu sermão, mesmo não havendo motivo. As missas naquela igrejinha eram quase vazias, suas únicas ouvintes eram um punhado de velhas senhorinhas que, ele tinha certeza, já sabiam todo o conteúdo da bíblia de cor, até melhor que ele. Saiu de sua edícula com a bíblia embaixo do braço. Sua batina de estimação, surrada, velha e de grande estima deslizava gentilmente enquanto caminhava. Retirou uma última folha amarelada dependurada em uma de suas arvorezinhas e entrou. Surpreendeu-se.
Tinha gente dentro da igreja. Não estava lotada, mas… tinha gente lá dentro. Não o pequeno punhado de sempre, e sim um grande punhado. Não o suficiente para abarrotar um local, mas era mais do que o esperado, muito mais. Havia gente que padre Ernesto nunca viu, mas que deviam morar por lá. Parou por um instante encostado à porta. Era inacreditável. Acreditava em milagres, mas mal podia acreditar neste.
Passou por aquela gente a passos tímidos. Olhava as pessoas num misto de incredulidade e fascinação, e seus olhares eram retribuídos da mesma forma. Seguia rumo ao altar, que parecia longínquo sob esses olhares. Não havia muita gente no local, e nem caberia muita gente no local de qualquer forma, mas ali, naquele corredor, passando pelo meio daquela “multidão”, parecia que aquela igrejinha esquecida por todos erguera-se maior que uma capela. Por fim chegou ao altar.
A missa correu razoavelmente satisfatória. O padre acabara se esquecendo, em meio ao marasmo, como era falar em público. Mas após alguns poucos gaguejos e maneirismos, conduziu a missa de forma a doutrinar todas aquelas pessoas que, ainda que não percebessem, se afastaram da palavra de Deus. Ao fim da missa, observou orgulhoso àquele rebanho. Sabia que somente alguns realmente teriam sido tocados por suas palavras, mas hoje, ali, naquele altar, sentiu-se novamente um servo de Deus. Observou as pessoas partindo, pouco a pouco, pelos pequeninos portões de sua igreja. Sorrindo, ajeitou sua batina, fechou sua bíblia empoeirada, marcando a página amarelada com um marca-página com marcas de dobra e dirigiu-se à saída com ela embaixo do braço. Do lado de fora ainda havia meia dúzia de pessoas, conversando amenidades, descobrindo àqueles desconhecidos que há tempos eram seus vizinhos.
E então lhe contaram. Não havia energia elétrica há dias. Ninguém sabia o que aconteceu, mas não havia energia em lugar algum. Além disso, todo e qualquer dispositivo eletrônico, ou com alguma parte eletrônica, parou de funcionar. Do nada. Simples assim. Havia ainda alguns carros, dos mais antigos, funcionando. Como pra pouco dependiam de suas partes elétricas, foram postas de volta em funcionamento, ao menos no que tangem à parte mecânica do assunto, com uma boa dose de engenhosidade. Eletrônicos, entretanto, pareciam um caso perdido.
E então as crianças na rua fizeram sentido. E as noites escuras. E as pessoas passando. E a rua sem carros. Pensando agora, ele mesmo inconscientemente abdicara de qualquer eletrônico, visto que não achava nenhum deles tão mágico quanto como as pessoas faziam parecer. E então o milagre não parecia mais milagre. Padre Ernesto não era o guia. Era o entretenimento em uma época sem televisão. Sentia-se horrível, mas com um sorriso no rosto, continuou cortês com aquelas pessoas. Pouco a pouco voltaram todos para suas casas. Caminhando sorridentes pela calçada. E Padre Ernesto voltou para sua edícula.
Sentado em sua cama, pensou em quão pouco conquistara hoje. Achou que havia tocado as pessoas, que a espiritualidade retornara às crianças de Deus. Mas ele era entretenimento. Um passatempo nesses dias sem televisão. Devia ter suspeitado. Devia ter percebido. Deitou-se, sem sono, e sem dormir fitou o teto descascado, refletindo em quão pouco conquistara e como Deus como um todo era pouco a pouco abandonado. Tão logo voltassem os aparelhos, sua igreja seria novamente esquecida. Seja lá o que causou esse efeito foi só uma feliz coincidência.
Ou teria sido a vontade de Deus?
O padre levantou-se. E se fora a providência a responsável pelo fim dos eletrônicos? O sofisma da tecnologia afastou o homem da palavra de Deus, então… Claro, Deus dera seu castigo, eliminando toda a maquinaria de que as pessoas nunca precisaram, e assim libertou-as das prisões em que elas sem saber estavam presas. Sim. E agora que a palavra fora dita e a vontade foi feita, cabia a líderes como Ernesto arrebanhar e guiar o povo rumo à salvação.
Um novo dia nasceu. Padre Ernesto calmamente saiu e começou a cuidar de suas preciosas arvorezinhas. Ouviu um pássaro cantar de algum lugar, sua música abafada pelos gritos das crianças, entretidas por suas brincadeiras. Descendo a rua, um homem fumava sentado à entrada do bar, que não abriria tão cedo. Sentiu a fria brisa em seus poucos cabelos.
Hoje seria um bom dia.