Encanamentos flexíveis

ENCANAMENTOS FLEXÍVEIS



Miguel Carqueija




GLOSSÁRIO


AEROCARRO – automóvel voador, movido a energia solar.
ANTENA CUPULAR – antena ou conjunto de antenas parabólicas que formam o pináculo de uma
esferópolis.
CORRIMÃO ATARRACHANTE – corrimão perimetral interno – ou, em alguns casos, externo – que envolve em espiral as esferópolis.
ESFERÓPOLIS – cidade em forma de globo, podendo abrigar mais de um milhão de pessoas.
GLÓBULO VERTIGINOSO – veículo encapsulado que percorre a grande velocidade as vias arteriais da esferópolis. Também conhecido como PLAQUETA, por analogia com a circulação sanguínea.
JATO-ASCENSOR – elevador de alta velocidade.
MAGIPLAST – material de que são feitos os encanamentos flexíveis.
TORRE BÁSICA – torre central, pilar principal de sustentação das esferópolis.
TURBULÊNCIA PLÁSTICA – efeito da pressão da água sobre o magiplast.
VIA ARTERIAL – túnel para circulação de tráfego, no interior das esferópolis.
VULCANISMO HIDRÁULICO – fenômeno desastroso que ocorre quando surgem defeitos graves no sistema de encanamentos flexíveis.
ZOOFOBIA – terror aos animais (inclusive e principalmente os domésticos), doença comum a vários moradores das esferópolis.



I


Lavigne manobrou o aerocarro em direitura à pista de pouso de Riocentro. Sentia-se fisica e mentalmente exausto, intensionado, suspirando por um bom descanso no aconchego da família. Os encargos profissionais andavam muito cansativos ultimamente. Logo, porém, a esposa e os filhos, com o carinho e a segurança do lar doce lar, fá-lo-iam esquecer todas aquelas preocupações.


O robobola Memphis aproximou-se quando Lavigne terminou de ajustar o veículo na cápsula de estacionamento de sua propriedade.
— Bom dia, Sr. Lavigne. É uma satisfação tornar a vê-lo. Fez boa viagem?
— Muito boa, Memphis — mentiu Lavigne, que detestava as viagens aéreas. — Tem notícias de minha família?
O televídeo do carro de Lavigne estava no conserto e o celular descarregado, razão da pergunta.
— Bem, senhor, parece que está havendo um pequeno problema com a água em sua casa.
— Ah, sim? — Lavigne não se importou. — Bem, Memphis, dê uma boa lavada para mim, que estou louco para voltar ao sossego do lar.
— Pois não, senhor. Ah, sim, esquecia-me de lhe informar: o senhor tem uma nova vizinha: a Dona Getulínia.
— Parece o nome da mãe do diabo. É bom conhecer gente nova de vez em quando, sem dúvida. Até logo, Memphis.
Afastando-se do autômato, Lavigne parou um instante e respirou fundo, com o olhar erguido para a monumental antena cupular, algumas dezenas de metros acima. Atravessou a pista circular e encostou seu anel magnético na primeira comporta que encontrou. Esta abriu-se e Lavigne viu-se no corredor espiralado, com seu corrimão atarrachante, que da cúpula, junto à base da antena, rodeava o Riocentro até a torre básica. Pessoas iam e vinham, mas nenhuma que Lavigne conhecesse. Dirigiu-se pela travessa mais próxima até a estação capsular Alexis Carrel, para esperar a plaqueta descendente. Era agradável morar na ordem e na segurança da esferópolis, pensava Lavigne distraidamente. Já não saberia viver em outro tipo de lugar.
Passaram-se poucos minutos até que chegasse o confortável glóbulo vertiginoso. Àquela hora não havia muita gente; Lavigne facilmente encontrou lugar, junto da janela, e recostou-se. Mais alguns minutos, pensou; só mais alguns minutos para o lar doce lar, a família, o repouso enfim.
O glóbulo fechou suas portas e iniciou sua trajetória rapidíssima pela via arterial. Lavigne cerrou os olhos, relaxando.



II


O glóbulo desceu como uma bala pela espiral que circundava a esferópolis, a Grande Via Arterial Externa, paralela ao corredor atarrachante. Tendo digitado seu destino no braço da poltrona, Lavigne até cochilou um pouco, pois tinha a capacidade de dormir com rapidez. Logo o zumbido-vibração o acordou e ele saiu do glóbulo, mais bem disposto do que nunca. A estação Menotti Del Picchia parecia-lhe já a casa. Pegou uma esteira rolante e deixou-se levar. Depois, por uma viela de azulejos, entre rododendros e canhameiras, chegou à sua casa, de frente pintada de azul, tão singela como uma casa de campo.
Colocou uma chave magnética na abertura; os sensores da casa conheceram a freqüência do objeto e a porta correu para dentro da parede.
— Gente, cheguei! — gritou Lavigne, alegre.
Uma enorme massa peluda saltou em cima de Lavigne, derrubando-o e fazendo voar sua valise.
— Ei, que negócio é esse? Saia de cima de mim, seu mastodonte! Pare, já disse!
Em vez de parar, porém, o Balão pôs-se a lamber a cara do dono, com seus 50 quilos sobre peito e abdômen de Lavigne.
— Raios o partam! Será que só essa droga de cachorro está aqui para me receber?
Balão latiu e logo em seguida, distraído com alguma coisa (talvez uma borboleta) correu pela viela. Logo uma adolescente de short apareceu esbaforida:
— Papai, não deixe ele sair! Essa velha maluca aí do lado...
— Olhe, assim que eu conseguir me levantar...
Sem dar a mínima importância ao pai ela pulou por cima dele e se foi, correndo descalça atrás do cachorro.
Lavigne pegou a valise e entrou. Tina apareceu, gritou de surpresa e correu para beijá-lo.
LAVIGNE — Que bela recepção eu acabei de ter! O que é que a Julia quis dizer sobre a vizinha maluca?
— A tal Getulínia, que mudou para cá. Ela sofre de zoofobia e não pode ver o Balão. Dá ataque de histeria.
— Ora, que vá para o raio que a parta.
— Mas não ligue para isso, querido. Temos problemas mais sérios para resolver!
— Problemas? Mas antes deles eu quero tomar um bom banho!
— Esse é o problema, Telmo: a água!
— Ué! Mas que problema pode haver...
Não completou a frase. Perpassou-lhe pela memória o velho manual de instruções do Magiplast, lido há tantos anos, repleto de advertências sobre riscos que nunca haviam surgido.
— Bem, deixe eu mudar de roupa e vamos ver o que é!



III


Julia já trouxera o Balão de volta quando Lavigne terminou de trocar de roupa, colocando umas bermudas velhas. Só então ele se dirigiu ao banheiro principal da casa, para verificar o tal problema.
Tina dissera: — A torneira não está soltando água. Tem algum entupimento!
— Bem, vamos ver...
Lavigne abriu a torneira. Nada. Abriu a outra. Nada. Experimentou a da banheira. Escorreu um pouco e parou.
— Homem...
Não sabia o que pensar. Mas, claro, qualquer bombeiro daria um jeito. Não era nada comum faltar água!
Entretanto, lembrou-se Lavigne, existia uma central doméstica que ele poderia examinar pessoalmente. Dirigiu-se à algo misteriosa porta de aço inoxidável que dava para as entranhas da casa. Ficava no canto em diagonal em relação ao ângulo à direita de quem entrasse pelo corredor. Lavigne abriu a porta, que não possuía chave, enfiou a cabeça e recebeu duas flechadas na cara.
— Um cara-pálida! Atirar nele, depressa!
— Sumam já daqui, com a breca!
Lavigne arrancou as flechas com ponta de sucção, que tinham prendido na testa e no queixo, e jogou-as no meio do banheiro. Os dois “semínoles”, nus da cintura para cima e com pinturas de guerra pelo rosto e pela testa, saíram de má vontade.
— Puxa, pai! Estava tão divertido! – reclamou João.
— E o que é que índios têm que fazer no encanamento?
Voltou-se para a esposa:
— Onde é que está a nova babá? Ainda não a conheço direito... como é mesmo o nome dela?
Tina deu de ombros.
— A Petúnia? Não a vejo há um bocado de tempo.
Erasmo, de nove anos, foi quem deu a informação:
— Ih, ela ainda deve estar amarrada no nosso quarto.
— O que? — engasgou Lavigne.
— Então vão soltar logo a pobre moça, ora! Que idéia! — exclamou Tina, irritada.
Depois que os guerreiros se foram Lavigne sentou num dos bancos do lavabo e passou a mão na testa.
— Será que eu me enganei?
— Como disse, querido?
Lavigne recompôs-se, sem explicar o que lhe ia na cabeça.
— Bem, vamos tentar de novo.
Lavigne entrou, seguido de Tina. A luz já fora acesa pelos “índios”. No compartimento metálico e quadrangular destacava-se, no centro, o grande carretel de canos. Um painel, ao fundo, solidamente fixado, ocultava a continuação do sistema. Vários canos penetravam em largas aberturas na parece e certamente alguns iam terminar no banheiro, na cozinha, no jardim e no quarto da empregada.
Lavigne olhou, tocou, mediu, rodeou, coçou a cabeça, pensou, andou de um lado para o outro e ao fim não entendeu coisíssima alguma.
Afinal foi Tina quem deu uma idéia.
— E se nós puxássemos os canos para ver o que é?
— É uma boa idéia.
Julia entrou no cubículo.
— Ih, papai! Acho melhor nós chamarmos um especialista. O primo do meu namorado, o Godofredo Russo, é bombeiro hidráulico. Eu não posso ficar sem banho!
— Faremos isso se for necessário.
Lavigne desatarraxou uma torneira da pia e começou a puxar o cano, que foi depositado no chão. Puxou, puxou, enquanto Tina, na sala dos canos, observava os novos trechos que chegavam.
— Até aqui tudo bem — falou da porta.
— Ora, mãe! — contestou Julia. — Como é que você sabe? O entupimento é por dentro! Temos de apalpar o cano...
Lavigne objetou: — Como é que você sabe que é entupimento? Pode ser um problema de pressão.
Súbito o encanamento começou a tremer nas mãos de Lavigne.
— Ei! — gritou Tina, assustada.
A torneira pulou fora do magiplast e uma enxurrada apanhou Lavigne em cheio.
O homem fez um rápido e impublicável comentário e berrou;
— Desligue a água! Desligue a água!
TINA — Socorro! Os canos estão inchando!
JULIA — Pode deixar, mãe! Eu desligo isso!
A água cessou.
Sentindo que alguém entrara Lavigne voltou-se, pingando água. Era Petúnia, uma mocinha de dezessete anos, devidamente desamarrada.
— Ih, seu Lavigne, que é isso?
— Água, é claro! — Lavigne detestava perguntas cretinas.
Julia saiu do cubículo.
— E agora, papai?
— Chame o tal sujeito.



IV


Godofredo Russo tomou o jato-ascensor cantarolando alegra:

“Oh, eu vou para as alturas,
lá para as bandas de Marte,
lá onde não me conhecem
pra levar a minha Arte.”
Saltou no nível da casa de Lavigne e lá se foi, suscitando comentários maldosos entre as pessoas que ficaram no elevador.
— Ora ora! Que será que o velho Lavigne quer de mim, numa hora dessas?
— E eu é que sei? Que idéia!
A velha afastou-se dele, irritada. Godofredo coçou a cabeça, aborrecido.
— E quem disse que eu estava falando com ela? Ou será que não se pode mais falar sozinho nessa terra?
Chegando à casa dos Lavigne, Godofredo tocou a campainha e esperou. Logo a porta se abriu.
E o Balão pulou em cima dele.
Jogado ao chão, Godofredo gritou em desespero de causa:
— Ei, mais calma aí, camarada! Estou em dia com os impostos, juro!
Lavigne, Petúnia e Julia vieram em seu socorro. O dono da casa resmungou:
— Homessa... será que você não pode dar mais educação a esse seu tapete de pulgas?
— Deixe disso, papai! O Balão é uma maravilha de cachorro, muito simpático, muito afetuoso, e além do mais muito limpo. Não tem pulga nenhuma!
— Mas de qualquer forma não é possível que ele fique pulando em cada visita que chegue! Desse jeito ninguém mais vai querer vir aqui!
Godofredo, ainda no chão, gemeu: — Por favor, meus camaradinhas. Adiem essa discussão para depois de tirarem esse monstro lambedor de cima de mim, tá bem?
Julia removeu o Balão e Lavigne ajudou Godofredo a se levantar.
— Desculpe o ocorrido...
— Deixe estar. Podia ter sido pior. Podia ter sido um São Bernardo.
Entraram e Lavigne conduziu Russo ao banheiro. O bombeiro entrou, depositou sua bagagem no chão e fez um rápido exame da situação.
— Falta água há horas, hein? Um súbito cuspe de água, hein? O cano tremeu e inchou, hein?
Erasmo, muito admirado com o visitante, intrometeu-se:
— E o pessoal daqui está sem banho, hein?
João disse: — E daqui a pouco o cheiro não vai ser agradável, hein?
Tina ralhou: — Ora, acabem com isso! Que abuso! Vão embora e deixem o moço trabalhar!
Os dois pestinhas saíram, mas Erasmo cochichou ao irmão:
— Você está vendo? Querem deixar a gente fora disso!
— E deixar aquela figurinha difícil cuidar de tudo! Duvido que ele adiante!
Enquanto os dois conspiradores se afastavam, Lavigne chamou Godofredo para o cubículo e explicou-lhe tudo o mais que restava.
— E então, você acha que é o que?
— Tenho a impressão que se trata de uma ameaça de turbulência plástica.
— O que?
— Mas não se preocupe. Não é ainda um vulcanismo hidráulico.
— Ora, não me fale numa coisa dessas! Não haveria razão alguma para que tal ocorresse!
— Não haveria? Senhor Lavigne, o senhor leu o manual do magiplast?
— Há uns vinte anos atrás, sim. Mas nunca ouvi falar que ocorressem as coisas que lá aparecem...
— Olhe, quando inauguraram o Novo Riocentro, há 50 anos, já existiam outras esferópolis no Rio de Janeiro, e em duas delas haviam ocorrido esses fenômenos. Por isso tomaram excepcionais medidas de segurança por aqui. Em nossa esferópolis, de fato, nunca aconteceu.
— Mas nem está acontecendo agora. Escute, em vez de teorias alarmistas você não pode examinar o sistema?
— É claro, é claro! Mais rápido que o Super-Homem dizendo Shazam, vamos lá!
Godofredo se ajoelhou e pôs-se a apalpar os canos, sugestão anteriormente feita por Julia porém não efetivada. Os canos de magiplast, extremamente maleáveis, podiam ser apalpados como mangueiras. Depois de uns dez minutos (durante os quais Lavigne lutou contra a tentação de objetar que não era o Super-Homem, e sim o Capitão Marvel, quem falava Shazam) Godofredo deu por encerrada a apalpação e forneceu o seu diagnóstico:
— Estão todos ocos.
Lavigne fitou-o com ar meio aparvalhado.
— O que é que você quer dizer com isso/
— Ora, o que eu disse, apenas! Estão ocos! Não há água dentro deles!
— Mas é esse o problema! Não há água!
— E é esse o problema que vamos resolver! Vamos abrir a passagem!
Além do painel lavigne nunca fôra. Aliás, não dispunha de meios para abri-lo. Godofredo trouxe a sua valise e pôs-se a desaparafusar o painel com sua chave de fenda eletrônica.
Tina, que retornara, observou assustada:
— Nós nunca entramos aí! Não é perigoso?
Godofredo, que completara o desatarrachamento, voltou-se para responder:
— Nada disso, minha senhora! Não há perigo algum!
A porta se abriu violentamente, atingindo o Russo no traseiro e jogando-o sobre Tina.
Ao ajudá-los a se erguerem, Lavigne, que pouco a pouco ia perdendo a paciência, murmurou:
— Diga uma coisa, Godofredo: você tem experiência desses casos?
— É claro que não! Nunca falta água no Riocentro!
— Mas então...
— Parece que há trinta e sete anos atrás, quando eu não era nascido, faltou água na casa do motorista do prefeito...
— Não me interessa. Vá em frente.
Godofredo passou através da abertura, penetrando num corredor cujas luzes positrônicas iam pouco a pouco acendendo automaticamente. Lavigne voltou-se para Tina:
— Não sei onde eu estava com a cabeça quando chamei esse cara...
— AAAAAH!!!!!
O grito medonho assustou-os. Voltaram-se a tempo de ver Godofredo que, de volta à saleta, estava pálido como cera:
— O que é isso, homem? Viu algum monstro lá dentro? — perguntou Lavigne.
— Pior do que isso! Os meus piores temores estão para ser confirmados!
— Explique-se!
— Muito bem. O sismógrafo hidráulico instalado no início do sistema intercomunicante está no vermelho. Isso quer dizer vulcanismo hidráulico a caminho.
— E aí? O que é que ocorre nesse caso?
— Olhe, só Deus sabe. Eu nunca enfrentei semelhante coisa e não conheço ninguém que já tenha enfrentado. Aliás, se me dão licença eu já vou indo.
Tina sobressaltou-se:
— Já vai? Como assim?
— E o nosso serviço?
— Ah, não precisam pagar. Não ligo muito para dinheiro, mas tenho muito amor à minha pele. Até logo.
Lavigne não acreditava no que assistia.
— Mas afinal, onde é que você vai?
— Tomar um foguete, há tempos quero visitar a Transilvânia...
Passou por entre Lavigne e Tina, mas a porta de aço se abriu e uma Julia de face decidida apareceu, bloqueando a passagem, acompanhada pelo Balão.
— Você só vai sair daqui se passar por cima do cadáver dele — e apontou o cachorro.
— Mas... mas... mas... mas...
— Nada de “mas”. O Balão é muito manso, exceto quando eu mando atacar e morder. E é o que eu vou fazer, se você tentar sair sem resolver o problema. E eu também o morderei!
— Isso é um seqüestro! Estou sendo mantido em cárcere privado, ameaçado de dilaceramento e de lambidas sufocantes, e...
— Chega de histórias! Aqui está o manual! Leia e comece a agir ou a gente comunica a sua atitude ao sindicato!
— Oh, não! Tudo menos isso! Está bem, vou tentar, mas ainda acho que vocês fariam melhor se partissem para longas férias!


V


Godofredo estava sozinho diante do Desconhecido. Sentou-se num banquinho improvisado, abriu o embolorado manual e começou a ler:


VULCANISMO HIDRÁULICO


Em Geral, o fenômeno do vulcanismo hidráulico, embora terrível quando ocorre, na prática não é motivo para preocupações, visto que o Sistema Magiplast encontra-se tão aperfeiçoado que seus mecanismos de segurança normalmente anulam ou isolam o perigo.
Entretanto, se realmente ocorrer o vulcanismo hidráulico — fato que se deu, por exemplo, na Vila Nova de Paris, em 2098 — podem-se esperar os seguintes acontecimentos: arrombamento, pela força da água, das torneiras; inundação incontrolável dos prédios, até o esvaziamento da represa, se não forem tomadas medidas drásticas; estremecimento das paredes; por fim, rachaduras e rombos que ameaçam a própria estabilidade de uma esferópolis.
O vulcanismo hidráulico se origina no seio do sistema e por isso a sua explicação até hoje continua sendo um mistério. Por razões que os engenheiros hidráulicos até hoje discutem, o sistema começa a tremer e contorcer-se no interior das paredes isolantes, saindo de sua posição correta e originando sobrecarga de pressão em muitos pontos da cidade, interrompendo em outros o fornecimento do líquido. Sabe-se que um vírus de plástico, o MEGA-34, ataca o sistema prejudicando a sua estabilidade, mas não existem provas conclusivas de sua relação com os fenômenos de turbulência plástica e vulcanismo hidráulico. Existe a teoria de que o excesso de manipulação por parte dos usuários acaba perturbando o equilíbrio molecular do magiplast.
O grande risco do vulcanismo hidráulico está na invasão das vias arteriais das esferópolis pelas águas. Nas casas de campo e cidades convencionais o risco é imensamente menor, aliás, em casas isoladas nunca se ouviu falar de vulcanismo hidráulico ou mesmo de turbulência plástica.
A turbulência plástica, precedida pelo sinal da súbita falta d’água, é menos grave, podendo ser observada por tremores convulsos dos encanamentos em seus cubículos e corredores no seio das estruturas citadinas; mas quase sempre é um sintoma de iminente cataclismo sob a forma do vulcanismo hidráulico.
Se tal fenômeno começar a ocorrer, NÃO PERCA TEMPO lendo este manual ou pesquisando no interior do sistema. Vá direto ao Centro de Segurança da cidade, e dê o alarma.”


— Agora é que você me diz! — exclamou Godofredo, atirando o livro ao chão.


VI


Godofredo correu para a saída. Passou para a antecâmara que levava ao banheiro e ao tentar abri-la, encontrou-a trancada.
— Ei! — gritou.
— Tem gente! — respondeu uma voz infantil.
— Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece — lamentou-se o rapaz.
— Agora você vai ter que esperar, e por favor cale a boca. Não se perturba uma pessoa que está...
— Está bem, está bem, já entendi.
Pôs-se a andar em círculos, até que Erasmo abriu o trinco da porta.
— Pronto, homem. Mas você não pode sair! Eu soube que a Julia...
Godofredo mandou Julia às gemônias e correu para a porta:
— Tenho que ir ao Centro de Segurança descobrir porque esse defeito está acontecendo! A propósito, onde é o Centro de Segurança?
— Se você não sabe, eu é que vou saber?
Godofredo saiu correndo pela casa. Lavigne, avistando-o, chamou-o aos gritos:
— Volte aqui! Que há com você, afinal?
Godofredo colocou-o a par do que lera no livro. Lavigne tomou uma decisão:
— Então não entre em pânico, idiota. Eu vou junto com você ao Centro.
— O senhor sabe onde é?
— Sei.
— Bem, então vamos!
— Mais devagar. Não sei se você reparou que eu estou de pijama.
— Não, eu não reparei. Sabe como é, a moda muda tão depressa...
— E eu estou assim — concluiu Telmo Lavigne, ignorando a resposta — porque julguei que voltando para casa ia desfrutar de paz e tranqüilidade.


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Lavigne indicou o caminho:
— Iremos pelo jato-ascensor. É mais rápido.
— Então é longe?
— É no alto do pilar básico. Eu já trabalhei lá.
Foram caminhando rapidamente, pegaram uma esteira movediça e logo chegaram ao centro do pavimento, onde esperaram o jato-ascensor descendente. Àquela hora só se viam algumas crianças e robô-bolas circulando. Súbito uma lojinha se abriu e uma mulher histérica saiu de lá aos gritos: — Ai, que horror! Gatos! Me ACUUUDAM!!!
Godofredo cismou: — Às vezes eu penso: por que será que essa idiotice de zoofobia é tão comum nas esferópolis?
— Talvez porque as pessoas estão se desacostumando de criar bichinhos de estimação. E aí vão ficando com repugnância deles.
— É um fenômeno estranho...
— Abriu. Vamos!
Penetraram, como as outras pessoas e robôs. O enorme caixote, com paredes de acolchoamento acústico e poltronas semelhantes às do cinema, dava uma grande sensação de aconchego. Em telas de posição oblíqua, nos ângulos superiores, passavam vídeos de temas variados — como dança.
Lavigne digitou o seu destino e sentou-se.
Nas várias paradas o elevador demorava-se muito mais que no trajeto, pois era ultra-rápido. Sentado ao lado de Lavigne, Godofredo observou:
— Não é estranho como esse pessoal fica assistindo vídeo numa viagem tão curta?
— É. São os videomaníacos. Vamos!
O jato-ascensor, de enorme velocidade, já havia chegado ao destino. Era o último andar a que descia o elevador público, assim mesmo quase ninguém saltou. Era público e notório que a maioria viajava para assistir vídeos de graça.
Os corredores eram mais escuros e maltratados. Aquela era a área ocupada por serviços públicos. Chegaram a uma encardida e escangalhada porta encimada por um letreiro ex-luminoso que dizia: “Centro de Segurança”.
Pendurado na anacrônica maçaneta, um cartaz anunciava: Férias coletivas até 30 de abril.
Perplexos, Lavigne e Godofredo se entreolharam.
Afinal, ainda era primeiro de abril.


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No meu tempo não era assim — dizia Lavigne, enquanto perambulavam de repartição em repartição, tentando encontrar alguém que se responsabilizasse.
— Estou quase acreditando que essa prefeitura algum dia funcionou — disse Godofredo.
Visto que o sistema magiplast era tão importante, nem existia mais um Departamento de Águas e Esgotos. Quem cuidava disso era o Centro de Segurança. Lavigne procurou a Polícia, o Corpo de Bombeiros e finalmente a própria Prefeitura. No primeiro lugar disseram que o delegado de plantão não estava, e de qualquer forma não era atribuição policial consertar encanamentos; no segundo lugar disseram que só cuidavam de incêndios; no terceiro foram barrados porque só se podia obter audiência com hora marcada. Se quisessem, poderiam voltar dentro de quinze dias.
Lavigne conteve o que poderia ter respondido e foi embora. No jato-ascensor fitou o agora sorumbático Godofredo:
— E agora? Tem alguma idéia?
— Talvez uma procissão...
Pensamento de Lavigne: Não é possível que isso esteja acontecendo mesmo comigo.


VII
Ao chegarem à frente da casa, tiveram a maior surpresa de suas vidas.
Havia uma pequena multidão, a certa distância, e pingos de água atingiram os rostos de Lavigne e Godofredo.
— Chuva aqui? — o mecânico estava perplexo.
— Ei...
Qualquer coisa familiar passara esvoaçando, no campo de visão acima de ombros e cabeças que se interpunham. E ouviam-se gritos. Lavigne adiantou-se e viu, enfim, a cena.
Como uma serpente maluca, um cano de magiplast, vários metros extravasado de casa, pela porta aberta, corcoveava e dava cambalhotas, jorrando água e mais água pela torneira arrombada. O pior de tudo, porém, foi a visão de Tina, Julia e Petúnia, todas três agarradas em pontos diferentes do cano, apavoradas, cavalgando aquela estranha víbora plástica.
Lavigne perdeu as estribeiras.
— Tina! Julia! Que estão fazendo? Desçam dessa coisa!
— Descer como, seu idiota? Elas vão se arrebentar!
O desconhecido tinha razão, evidentemente. Aquilo era pior do que montar um búfalo selvagem. Em desespero, Lavigne dirigiu-se a Russo:
— Que faremos, Godofredo? Tem alguma idéia?
— Eu sugiro que alguém vá buscar uma filmadora. Isso é um espetáculo inesquecível.
Lavigne só não esmurrou Godofredo porque quatro pessoas o seguraram.
Então a Dona Getulínia — quem diria — deu uma sugestão razoável:
— Que tal colocarmos colchões e almofadas embaixo delas? Para quando elas descerem...
Felizmente havia bastante gente para ajudar, e enquanto as mulheres se esgoelavam os colchões e colchonetes foram sendo jogados. Era uma operação perigosa, e Telmo chegou a levar um tranco do magiplast, e já estava cada vez mais encharcado. Não cessavam os gritos de “Telmo, me salve!”, “Papai, socorro!”, “Me tirem daqui!” e por aí afora.
Súbito a jibóia de água paralisou os movimentos e por um instante permaneceu estática, em posição de bote.
E aí tudo desabou.
Ninguém se machucou, graças aos colchões, almofadões e colchonetes, mas mal Lavigne socorreu a esposa e as garotas e já vários vizinhos apresentavam-lhe as contas pelos prejuízos causados. A torneira arrombada quebrara janelas, lâmpadas externas e danificara o teto do pavimento, de modo que até a Prefeitura provavelmente acabaria por apresentar a sua fatura.
Mas Lavigne tinha uma preocupação mais imediata:
— Tina, pelo amor de Deus! Onde estão o João e o Erasmo?
— E não só eles não, papai! O Balão também sumiu! — lembrou Julia.
— Aquele cachorro? Finalmente uma boa notícia!
Julia pulou em cima de Godofredo, autor da frase, derrubou-o ao chão, montou-lhe em cima e pôs-se a lhe dar tapas.
— Ei, pare com isso! Socorro! Alguém segure essa garota!
Então ouviu-se um latido familiar, Dona Getulínia saiu correndo aos gritos de “Polícia!” e o Balão, certo de que se tratava de uma brincadeira divertida, saltou sobre Julia e Godofredo, embolando-se com eles.
— Querido, faça alguma coisa! Separe-os!
— Você está brincando? É melhor que a Julia bata nele, porque se eu me meter vai ser para remetê-lo ao hospital!
— Papai! Mamãe! O que está havendo?
Voltaram-se todos para ver Erasmo e João que, descalços, sem camisa e molhados, saíam agora da casa, passando por cima dos tranqüilizados encanamentos. Lavigne, espantado, dirigiu-se a eles:
— Onde vocês estavam? Não sofreram nada?
— É claro que não, papai — disse Erasmo.
João acrescentou orgulhosamente:
— Nós consertamos o encanamento.
— Consertaram? Como assim?
— É que o nosso Manual de Escoteiro ensina como fazer...
Lavigne e Tina se entreolharam.
— Agora acredito até nisso — disse Lavigne.
Outras pessoas, porém, não eram tão pouco exigentes e cobraram explicações. Eles não se fizeram de rogados. Foram falando revezadamente, a começar por João:
— Puxa, é tão simples! No Manual diz que esses defeitos acontecem por deformação das bobinas centrais do sistema...
— Aí é preciso que alguém entre lá e faça a medição para ver qual o grau de desvio das conecções...
— Então é preciso desatarraxar as porcas para diminuir a pressão e aí rebobinar tudo de maneira a restaurar a posição original...
— E, claro, sangrar um pouco o sistema, descarregando o excesso de água para tornar mais fácil a operação...
— Considerando que surgem bolsões de água parada que provocam verdadeiras embolias no sistema magiplast...
— Em suma, chega-se à conclusão...
— Em suma, chega-se à conclusão que nós somos todos umas bestas e vocês é que são os sabidos!
Esta última frase foi de Lavigne.


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No dia seguinte Tina avistou o marido com um livro, refastelado no sofá-cama.
— O que é que você está lendo hoje, querido?
— Eu? Que pergunta! O “Manual do Escoteiro Mirim”, é claro!


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Do mesmo autor:
"Farei meu destino" (Giz Editorial) - romance de fantasia mística sobre a "deusa da Lua" (Diana) na Terra do futuro
"O estigma do feiticeiro negro" (Editora Ornitorrinco) - romance de alta fantasia (co-autora Melanie Evarino) - a aventura de uma elfa guerreira num mundo alternativo




 
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 02/07/2013
Reeditado em 24/04/2017
Código do texto: T4368793
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