Dia da Saudade
Já vivi 375 anos. E viverei um único dia com 376, pois foi exatamente a data de meu nascimento deste ano que eu escolhi como sendo o meu Dia da Saudade. Na verdade, como decidi as 15h terrestres como hora de desligamento, e nasci às 3 da madrugada na Terra há 375 anos atrás, viverei apenas metade de um dia com 376 anos.
Lógico que não estou considerando neste cálculo os erros de aproximação decorrentes de um calendário ultrapassado, que necessita de constantes correções pelo simples fato da rotação terrestre não estar sincronizada, em valores inteiros, com sua translação. Nem vou mencionar o movimento de nutação para não complicar mais as coisas. Tentaram uns dois séculos atrás corrigir a rotação ou a translação do planeta para que seu dia e ano passassem a ter uma congruência perfeita de valores inteiros, mas levantes galácticos fervorosos fizeram com que os engenheiros planetários desistissem desta ideia. Por fim, os períodos de rotação e translação terrestres foram reconhecidos como patrimônios da humanidade, intocáveis, e todas aquelas regras malucas envolvendo anos bissextos precisou ser mantida. No fundo todos os mundos humanos utilizavam o calendário galáctico padronizado. Mas para contar suas idades, por exemplo, ainda se rendiam à tradição milenar e usavam o bom, velho e complicadíssimo calendário terrestre...
Muitos acharam loucura eu ter escolhido meu Dia da Saudade tão cedo! Na verdade não existe nenhuma regra quanto a isto, mas a média é escolher o Dia da Saudade para algo em torno de 500 ou 600 anos de idade. Arthur Matews-Além é uma exceção clássica, sempre citado para desencorajar os que se decidem em marcar seus Dias da Saudade tão cedo. Arthur teria chegado aos seus 1000 anos. Nascera um ou dois séculos depois da longevidade começar a se tornar comum entre os seres humanos. Provavelmente ele foi um dos últimos a presenciar pessoas morrendo de causas naturais. Um infarto, um derrame cerebral, um tropeção idiota num dia de sol... e tantas outras causas de morte comuns naquela era primitiva que atualmente ninguém nem mais faz ideia de como seria! Ou mesmo morrer de velhice. Ele deve ter presenciado vários amigos morrendo disto, do desgaste fatal dos telômeros cromossômicos comprometendo o funcionamento das células. Isto é um passado distante, de uma época em que terapias genéticas ainda não eram capazes de recompor telômeros novos em todas as células do corpo.
Francamente nem faço uma ideia muito clara do que deveria significar "ser velho" nesta época. Livros antigos de História Médica citam os pelos do corpo ficando brancos, perdendo melanina. A pele se enrugando, os ossos ficando porosos. Para mim isto não é nem um pouco diferente de uma doença degenerativa. E doenças, então? Não vou dizer que não existem: vez ou outras seres patológicos microcópicos resolvem aprontar das suas e vitimar alguns indivíduos. Mas, como se dizia antes (embora o significado disto me escape atualmente), toda panela tem sua tampa. Todo ser patológico, se estudado, pode ter seu antídoto desenvolvido. Isto durava microsegundos para os nano-anticorpos atuais, e por isso afirmo que atualmente não existem mais doenças.
Atualmente ninguém mais envelhece. Atualmente ninguém fica doente. Sofreu um acidente? Exceto se ele for grave o suficiente para pulverisar instantaneamente todas as células de seu corpo (uma explosão de anti-matérias, por exemplo), os danos sempre podem ser revertidos. Atualmente... ninguém mais morre! Porém, viver cansa!! Qualquer pessoa hoje poderia viver eternamente se quisesse, mas ninguém quer isto. Por isto existe o Dia da Saudade...
- Mas por que tão cedo, companheiro querido? - Ella tentava me fazer mudar de ideia.
- Já vi tudo que havia para ser visto, Ella. Não há mais nenhuma experiência nova que eu gostaria de presenciar.
- O Universo é infinito!
- Infinito sim, mas sempre igual, de uma forma que me aborrece. Já colonizamos quase todos os planetas habitáveis da via láctea, não é?
- Ainda existem planos para chegar até as estrelas de Andrômeda! Não gostaria de estar vivo para assistir a isto?
- E o que deve existir de diferente em Andrômeda, minha cara? Estrelas de vários tamanhos, com planetas girando ao redor delas, cometas, asteróides, buracos-negros... Ou seja, tudo aquilo que já vimos aqui na nossa própria galáxia!
Ela me olhou com tristeza.
- Está cansado de mim, não é?
- De forma alguma! De onde tirou isto? Esto cansado de... acho que de mim mesmo! É isso! 375 anos é tempo demais para eu continuar sendo eu mesmo.
- Você poderia tentar uma mudança de gênero! Eu te acompanharia...
- Do que você está falando?
- A mudança é a nível genético, célula por célula. Você se tornaria totalmente mulher, e eu totalmente homem, e poderíamos viver juntos esta experência nova. Dizem que os que mudam de gênero são capazes inclusive de conceber, se quiserem.
- E por que arriscaríamos combinações genéticas imperfeitas se sempre podemos pedir isto para os laboratórios de reprodução humana? Não, o problema não é tão simples assim...
- Os neurologistas podem reprogramar seu sistema límbico para experimentar relações homo-afetivas, se assim quiser.
- Não, Ella. O problema não é este. Homem, mulher, homossexual, heterosexual, bissexual... o fato é que, de qualquer forma, eu sempre seria Eu mesmo.
- Talvez reprogramação de personalidade!
- Não adianta, nunca conseguiria te explicar...
Eu estava inflexível. Meu Dia da Saudade já estava marcado, e eu não mudaria de ideia. Dezenas de séculos atrás certamente me achariam louco de tomar tal decisão. Como assim, tendo-se a possibilidade de viver para sempre, alguém pode ser capaz de se decidir por um dia para desligar seu organismo, cessar artificialmente todo o seu metabolismo? "Deus é quem deve decidir isto!", diria a maioria. Bom, que dizer? Eu já havia passado por todas as experiências místicas induzidas que a tecnologia era capaz de me proporcionar! Já havia visto o céu, o inferno, já havia atingido várias vezes o nirvana. Tive visões, interagi com outras pessoas em "planos astrais", observei meu próprio corpo, flutuando no teto de um quarto de laboratório. Não havia nenhuma destas ilusões clássicas pelas quais ainda não havia passado, nenhuma experiência mística que ainda não havia experimentado. Como acontece com todos! Algumas pessoas procuram mais cedo, outras mais tarde... mas todas acabam procurando! Ficam maravilhados um tempo, mas finalmente... se fartam delas. Sim, meus caros, a eternidade é tempo demais!
Meus velhos amigos se aproximavam do salão. Sentado naquela cadeira central, quase um trono, eu cumprimentava um a um. E ditribuia presentes. Sim, o homenageado é quem dava presentes nesta festa! Pois não iria mais precisar de nenhum deles.
- E se não for o fim, meu amigo?
- Como assim, Ella?
- E se... existir mesmo alguma coisa a mais depois que você partir?
- Nunca foi provado que existe.
- Nem que não existe...
Olhei no fundo dos olhos de minha companheira de décadas. Lhe presenteei com uma pequena fortuna que havia acumulado nos últimos 2 século de vida, dizendo:
- Espero sinceramente que não haja nada depois, minha cara. Porque... já estou cansado de continuar existindo! Ficaria muito desapontado mesmo se isto tudo não acabasse aqui, neste exato momento...
A visão foi ficando turva. Eram as nanomáquinas dissociando as hélices de DNA de minhas células, as instruções genéticas que me manteriam vivo indefinidamente se não fossem interrompidas. O tempo foi passando cada vez mais lento. Minha consciência parecia se aglutinar num ponto de singularidade máxima, até que... acabou! Não mais sentia o escorrer das areias do tempo. Não mais sentia as coisas todas ao redor. Havia recebido o maior presente que alguém daquela época, de seres imortais, poderia receber: havia morrido!
Sim, a humanidade desta época não era muito diferente daquela primitiva, de pouco mais de mil anos atrás. As pessoas ainda nasciam, cresciam, se reproduziam (com a inestimável ajuda de laboratórios genéticos, sem dúvida) e finalmente morriam. Mas havia uma vantagem que os antigos nunca tiveram: hoje em dia elas podiam escolher em que dia este fim iria acontecer!
* FIM????? *