Rumo à liberdade

RUMO À LIBERDADE



Miguel Carqueija


— O que você acha? — disse Habib, com a testa porejada de suor.
— Eu acho — respondeu Adilson, ofegante — que esse diacho de parede vai dar muito trabalho ainda.
— Não temos muito tempo. O Conselho Revolucionário pode mandar nos procurar a qualquer hora...
— Lembrem-se — disse Diolinda, interrompendo por um instante a ação de sua broca eletrônica — de que esta zona de Terranova está esquecida há décadas... afinal, a queda nas taxas de natalidade despovoou os planos superiores, mais distantes do calor interno...
— Somente expedições arqueológicas costumam vir até aqui, sabemos disso é claro — lembrou Habib. — E daí? A Polícia Ideológica pode perseguir os dissidentes onde quiser, se pensarem que estamos aqui, virão aqui.
— Mas nós conseguiremos — afirmou Dusek, os dentes rilhando com o esforço de picaretar a parede. — Esse magiplast é um nojo de resistência! Parece que foi reforçado com alguma mistura de aço...
— Mas pelos meus cálculos — observou Adilson — não pode ter mais do que dois metros e meio de espessura! Mais do que isso seria safadeza...
Habib, que dirigia o grupo de oito pessoas – cinco homens e três mulheres – que tentava abrir a passagem de fuga, recapitulou em sua memória todos aqueles anos perdidos de sua infância e juventude, passados debaixo do tacão de um governo ditatorial inflexível, que mantinha uma imensa população aprisionada dentro de gigantesca estrutura metropolitana, profundamente enraizada no solo, com dezenas de pisos subterrâneos, e outros tantos aéreos, tudo cercado por uma cúpula do extraordinário material conhecido como magiplast, ou plástico mágico, maleável e auto-obturante. As tentativas de fuga eram sempre frustradas por essa propriedade desconcertante, já que as brechas abertas na estrutura externa fechavam-se imediatamente. Entretanto, nos últimos anos o Dr. Pongo Quibir, notável químico, desenvolvera uma substância revolucionária, a “desagregante universal”, em cuja presença o magiplast perdia ou degenerava a sua capacidade auto-obturativa. Ele mantivera a sua descoberta em segrêdo durante anos, já que a tirania certamente não a veria com bons olhos. E ali estava ele, injetando a desagregante nos veios do magiplast, apostando tudo em como, uma vez aberta a brecha, ela não se fecharia automaticamente.
Não podiam, é claro, utilizar métodos ruidosos ou que, pelas vibrações, alertassem as autoridades ou as forças da repressão. Era preciso empregar métodos mais primitivos, como a picareta, o que demandava mais tempo porém garantia mais segurança ao grupo fugitivo. Habib planejara manter a abertura em segrêdo o tempo suficiente para que uma multidão de homens, mulheres e crianças pudesse transpor o caminho para a liberdade, na superfície do planeta, onde disporiam de espaço para se espalhar e resistir aos esbirros da ditadura, onde não faltariam bosques e cavernas, vales e despenhadeiros, esconderijos naturais enfim, como mostravam os velhos livros e filmes.
No fim, porém, com a camada de magiplast cada vez mais delgada, decidiram-se por um ataque conjunto com suas brocas, que faziam algum barulho. Habib não se preocupava muito: a civilização estava distante, centenas de metros abaixo, se ninguém viesse bisbilhotar nada seria percebido. Em poucos minutos a danificada parede capitulou, e com estrondo a última camada pulou para fora, revelando o mundo exterior.
Antes que os fugitivos, porém, conseguissem sequer pular pela abertura, sentiram uma terrível angústia e um súbito vento projetou a todos para fora, enquanto seus órgãos internos se rompiam em consequência da violenta despressurização. A saída do ar foi tão forte, por causa da grande diferença de pressão entre interior e exterior, que boa parte da cobertura de magiplast da cidadela explodiu, precipitando a morte de todos os seres humanos, oprimidos e opressores, que lá se encontravam, bem como todos os animais.
Terranova era o nome de uma antiga colônia terrestre no planeta Marte, perto de seu equador, e desde séculos, quando os contatos com a Terra se haviam interrompido em decorrência das catastróficas guerras no planeta-mãe, caíra sob o poder de uma oligarquia corrupta e arbitrária, que transformara a gigantesca cidade cupular num estado policial. Gerações haviam passado, e as populações com o tempo foram esquecendo que na verdade não estavam na Terra mas em Marte, um planeta exterior à órbita terrestre, de menor tamanho e atração gravitacional, de ano muito mais longo e atmosfera rarefeita, imprópria à sobrevivência humana. A gravidade e a atmosfera em Terranova eram artificiais, seguiam o padrão terrestre e por isso seus habitantes perderam aos poucos a noção de que, na verdade, moravam numa colônia extraterrestre. Para os rebeldes, a fuga da cidade fechada possibilitaria o contato com outros núcleos humanos, onde ainda prevalecessem os ideais democráticos. Não tinham idéia de que o solo ferruginoso não era terrestre, e que a atmosfera era reciclada por grandes máquinas profundamente enterradas e de funcionamento praticamente perpétuo. E assim, ironicamente, a corajosa incursão à superfície revelou-se uma armadilha mortal, vitimando a todos os habitantes da colônia...
Era lema do grupo rebelde: “Quem luta pela liberdade, deve estar pronto a morrer por ela”.



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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 24/06/2013
Reeditado em 16/03/2017
Código do texto: T4356406
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