Uma noite de inverno - Capítulo 4

Selly, pela primeira vez naquela noite fria, mergulhou em suas memórias. Afinal, ela não tinha mais nada para fazer – Bruce ficara calado e ela não queria mais perturbá-lo com perguntas inconvenientes.

A mulher lembrou-se da primeira aparição do Guardião Negro. Era uma quente noite de terça-feira e Selly, naquela época, trabalhava como babá. Segurando a criança no colo e vidrada no noticiário, ela sabia que aquele momento seria inesquecível, não só para ela, mas para o mundo inteiro.

- O hospital Saint Peace ainda está envolto em chamas. Dezenas de crianças já foram encontradas mortas e feridas. - Falava o repórter ofegante em frente ao hospital. O céu estava escuro e cinzento e o fogo intenso cuspia violentamente uma fumaça densa e agonizante. - Entretanto a situação poderia ter se tornado muito pior se não fosse por uma figura voadora. Isso mesmo, algo ou alguém que voa está retirando as pessoas de dentro do hospital. A criatura se locomove a uma incrível velocidade e por esse motivo as imagens que conseguimos capturar não são convincentes. Espere... – O repórter se virou, ficando de costas para os telespectadores. – Olhem, lá vem ele! E pelo que parece está carregando duas pessoas. – O câmera se moveu rapidamente tentando filmar o herói e para o delírio das milhares de pessoas que estavam assistindo televisão, o Guardião Negro, que naquela época nem assim era chamado, pousou não muito longe de onde a equipe jornalística estava. Três ambulâncias haviam chegado ao local. O Guardião colocou com cuidado uma mulher e uma pessoa de meia idade no chão perto de uma das ambulâncias e voou novamente para o hospital em chamas enquanto enfermeiros e médicos corriam apressados para recolher as pessoas que foram deixadas no chão.

- Engraçado você ainda não ter me perguntando por que resolvi sair por aí e começar a salvar pessoas. - Disse Bruce virando-se e fazendo Selly voltar ao presente.

- Tenho tantas perguntas, Bruce... mas eu percebi que você não queria falar mais nada; não em relação ao seu velho amigo.

- Entendo. Porém vou ter que falar do Stanley uma hora ou outra.

Selly, depois de escutar o que Bruce disse não pensou duas vezes antes de fazer a próxima pergunta:

- Então me diga: o que te fez resolver ser um super herói?

Bruce sentou-se no sofá e acendeu mais um dos cigarros de Selly.

- Lembro-me quando saí do orfanato e comecei a conhecer o mundo. Stanley e eu saímos juntos e começamos a trabalhar no mesmo local. Era um supermercado. Stanley trabalhava em um dos caixas enquanto eu empacotava as mercadorias. Geralmente voltávamos juntos para casa, já que morávamos no mesmo condomínio. Porém, houve uma noite em que ele ficou no supermercado para fazer horas extras, ou seja, mandaram-no limpar o local: varrer, passar pano, coisas assim. Voltei sozinho naquela noite. Não havia ninguém nas ruas. Em um momento quando passei pela frente de um beco escuro e mal cheiroso escutei vozes e um grito de mulher. Parei para ver o que estava acontecendo. - Bruce fez uma pausa e Selly pôde ver sua expressão de dor. – É impossível esquecer as coisas horríveis que vi naquela noite.

- Havia cinco homens e uma pobre adolescente. - Continuou Bruce - Não posso te dizer a quanto tempo ela estava sendo abusada sexualmente por eles, mas desde a hora em que cheguei e comecei a ver aquilo, demorou vinte minutos para eles irem embora. Selly, eu não fiz nada. Mesmo sabendo que eu podia. Eu já conhecia bem os meus poderes. – Bruce olhou para a mulher com os olhos cheios de lágrimas; sua angústia era visível e crescente. – Eu não fiz nada!!!

O homem ficou de pé e colocou suas mãos em sua cabeça como se ela estivesse prestes a explodir.

- Nada!!! – Vociferou ele antes de se jogar no sofá enquanto suas lágrimas faziam caminhos sinuosos em seu rosto. Depois de alguns longos segundos, Bruce se acalmou e concluiu: - nunca irei me perdoar por isso.

Selly não conseguiu falar nada. Ela não tinha a mínima idéia de como lidar com aquela situação. Enquanto os minutos passavam a mulher percebia que tudo em relação a Bruce Dennis e o Guardião Negro era mais complexo do que ela imaginava. Apesar de os dois serem a mesma pessoa, um era a contradição do outro. O Guardião Negro era um símbolo de grandiosidade e força enquanto Bruce era um homem sentimentalmente vulnerável, solitário e problemático. Para Selly, a diferença entre os dois era monumental.

Ela sabia muito bem que, até aquele momento, tudo que Bruce havia dito era apenas a ponta do iceberg.