SONHADORES

"Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só,

mas sonho que se sonha junto é Realidade!"

(Raul Seixas)

- Hoje sonhei com você!

O casal estava sentado de mãos dadas, tentando matar uma saudade que já durava anos.

- Que bonitinho, tentando me agradar!

- Não estou tentando te agradar! Se estivesse você saberia, e eu falaria qualquer outra coisa. Estou falando de algo que aconteceu mesmo, faz meia ou uma hora atrás: sonhei com você!

- É curioso você me dizer isto, viu? Pois lembro que eu também acabei de sonhar com você!

Os dois se olharam com surpresa.

- Dizem que quando duas pessoas sonham o mesmo sonho, provavelmente é porque estavam juntas de verdade, de alguma forma que ninguém entende direito ainda.

- Será? - ele disse. - Não sei não, meu sonho era meio maluco...

- Maluco como?

- Pra começar, não sabia ao certo se era você. Sentia que era, mas não conseguia ver seu rosto.

- E o que fazíamos?

- Algo estranho! Estávamos abraçados, e ficávamos girando sem parar. E seu sonho, como foi?

Ela o encarou com espanto.

- No meu sonho eu estava num Salão de Dança, e eu dançava agarrada a você, e girávamos sem parar. Que coincidência!

- Ah, então não era o mesmo sonho! Eu estava girando no meio da rua, não num salão. Era uma rua lá naquela cidade onde a gente se conheceu alguns anos atrás. E tinha um gato branco acompanhando a gente que...

- Um cachorro!

- Como?

- Era um cachorro branco! Não um gato!

Agora era ele quem devolvia o olhar de perplexidade.

- Era um gato, miava e tudo! Pelo menos no meu sonho... Girávamos tão rápido que, lembrando bem agora, parece óbvio que deveria ser um sonho! Ninguém gira tão rápido assim de verdade! O mais curioso foi quando apareceu um bico no gato, ele virou pato e começou a bicar meu tornozelo.

- Era o cachorro te mordendo! E... sim! Uma hora lembro da dança ter ficado meio... vertiginosa mesmo!

- Era o gato que virou pato!

- Querido, gatos não viram patos!

- Em sonhos eles podem... - parou o que começava a dizer, porque lembrou: no sonho, o bico do pato tinha dentes! - Então era um cachorro! Você se lembra bem disto?

- Com clareza, querido! Era um cachorro branco!

- E estávamos num Salão de Dança, e não no meio da rua?

- Bom, é assim que eu lembro do sonho!

- E este lance do cachorro me morder foi antes ou depois do disco voador pousar?

- Que disco voador? Ah! Você deve estar falando do lustre de cristal do meio do salão que despencou!

Aquilo era mesmo muito estranho! Sonhos tão parecidos, e ao mesmo tempo tão diferentes! Que charada seria esta?

- Eu tenho quase certeza de que estava com você no sonho, lindona! E você? Tem certeza de que era eu mesmo no seu sonho?

- Aposto o que você quiser nisto. Era você sim!

Eles pensaram naquilo tudo por um bom tempo. Tinha uma explicação, e só poderia ser aquela mesmo:

- Nós estivemos juntos em sonho, de verdade! Os sonhos são estranhos, né?

- Sim, é provável que saibamos que estávamos juntos. Sonhamos basicamente com a mesma coisa: estávamos dançando. Isto é fato!

- Porém não sonhamos igual em todos os detalhes, né? Cada um completa as partes que faltam no sonho de sua própria cabeça!

- Sim, estivemos junto! Sonhamos junto! Só que as coisas todas do sonho, o ambiente ao seu redor, cada um completou com coisas que se passavam pela sua própria cabeça!

- É, acho que é assim mesmo que os sonhos devem funcionar...

Se olharam mais ternamente diante desta revelação, quando ela começou:

- Foi muito bom a gente se encontrar de verdade pelo menos em sonho, né? Mesmo estando tão distantes um do outro...

- Sim, mesmo longe, podemos nos encontrar em sonho!

Ele contemplou a branca lua sentado com sua amada naquele banco de praça, e pensou. E teve medo de suas conclusões! E resolveu confirmar:

- Você disse que sonhamos estar juntos mesmo estando tão distantes um do outro, né?

- Sim, foi o que disse.

- Quanto tempo você sonhou isso? Uma hora, no máximo?

- Acho que sim... - ela também começou a tremer, imaginando onde é que ele queria chegar. Ele continuou, mesmo pressentindo a resposta:

- E estando tão longe um do outro, seria possível estarmos aqui agora, menos de uma hora depois, sentados neste banco de praça e contemplando esta lua cheia bonita?

- Que lua cheia, querido? E que praça, e que banco de praça?? Estamos na minha casa, sentados no sofá! E esta lua cheia é só uma bexiga branca que esqueci de tirar da parede. Lembra que uns dias atrás fiz uma festa de aniversário aqui?

- O que eu lembro é que não estava na sua festa!

- Sim, você estava longe! Da mesma forma que, agora... Ah não!!! Isto não é possível!

- Por que não, fofinha? Acho que está acontecendo de novo...

- Não pode ser! Estamos... sonhando outra vez?

- Acho que sim, viu!

Olharam ambos para a frente. Ele via um céu límpido com uma bela lua cheia. Ela via uma parede escura com uma branca bexiga de aniversário pendurada nela. Estariam ambos sonhando juntos mais uma vez, e cada um completando o ambiente ao redor de acordo com suas próprias cabeças ?

- Este banco até que é macio...

- É meu sofá, seu bobo!

- É, as coisas são mutáveis demais nestes nossos sonhos doidos... Mas de uma coisa eu posso ter certeza: você é você mesma! Isto eu sinto agora, e disso estou certo!

- Eu também sinto que você é você! Que está aqui mesmo, independente de todas as outras fantasias com as quais cada um completa em torno do sonho!

A revelação era bombástica! Ambos falaram, em uníssono:

- Estamos sonhando juntos de novo!

Ele tentou enxergar uma bexiga branca no céu onde via uma lua cheia. Ela também tentou ver uma lua onde via uma bexiga branca pendurada na parede. Algumas particularidades dos sonhos são individuais demais, quase impossível de se compartilhar. Mas era bom sentir que, apesar de tantas diferença, e mesmo de tanta distância, estavam juntos em algum plano de existência!

- É comum a gente se esquecer do que sonhamos durante a noite, né? Será que lembraremos deste?

- Vamos fazer assim: quem se lembrar do sonho, que se lembre de avisar o outro a se lembrar também, certo?

- É possível fazer algo que nos faça nos lembrar dos sonhos?

- Não sei! Poderíamos pesquisar sobre isto! Hoje em dia, esta internet nos dá respostas para tudo!

- Primeiro precisaríamos nos lembrar de lembrar disso, né?

- O que nada significaria se não nos lembrarmos deste sonho atual.

- Você poderia me lembrar de lembrar este sonho quando acordar, né?

- Farei isto sim! Se eu acordar me lembrando deste sonho... Ah, isto é tão confuso!!!! Tão injusto!!!

- Também acho! Não é justo nos esquecermos de uma coisa tão bonita como esta! Mas... que podemos fazer?

Se olharam. E fecharam aquele sonho com um beijo quente e apaixonado, digno dos melhores filmes de Hollywood:

- Bom final de sono, meu amor! Nos vemos daqui a pouco, depois de acordarmos!

- Pra você também! E não se esqueça de me lembrar sobre este sonho, caso você acorde se lembrando dele!

- Te peço o mesmo! Não me deixe esquecer esta nossa conversa! Isto tudo que sonhamos junto!

Separados por uma centena de quilômetros de distância, ambos saíram juntos dos estágios REM de seus sonhos, e dificilmente se lembrariam disto tudo que aconteceu. Já que normalmente só nos lembramos daqueles sonhos que são interrompidos, não dos completos...

* FIM *