Ampulheta dos Sonhos
CAPÍTULO 1
Posso sentir perfeitamente o sabor do cigarro na minha boca, a ponta queimando quando inalo a fumaça para o meu pulmão, tão real quanto tudo ao meu redor. Antes que eu apague ela vai me dizer para parar, que isso um dia vai me matar.
— Você deveria parar. Um dia os cigarros irão te matar — a voz delicada e doce vinha da minha mulher.
Eu sempre prometi parar, sempre disse que faria isso por ela, mas eu nunca parei. Faria alguma diferença a minha resposta? Ele havia me dito algo sobre isso, não?
— Claro, claro, este é o último — eu respondi.
— Você sempre diz isso, espero não ter que morar com minha mãe quando ficar grávida — ela deve estar sorrindo, se eu me virar saberei, mas talvez eu só não queira me lembrar de mais nada. Será que ela está usando a blusinha de renda branca?
— Não se preocupe querida, não se preocupe.
Grávida, ela fala como se fosse possível, como se algum dia…
Eu posso sentir meus pelos se arrepiando quando ela começa a tocar o piano, aquela música. Meu coração está acelerando, minhas mãos tremendo descontroladamente, o cigarro escapa dos meu dedos e cai no chão. Eu ainda ouço todos os dias esse piano tocando, esse piano carregado de poeira e memórias, sua música é a única coisa que faz com que eu continue me levantando a cada dia, mas levantando para onde? Será que você sabe disso, será que algum dia eu disse o quanto suas composições eram incríveis?
— Suas músicas são incríveis, tenho certeza que elas fariam muito sucesso — eu estou mentindo? Não, elas poderiam ter feito mesmo sucesso.
— Porque poderiam? Eu desisti por acaso? — Ela respondeu com uma risada que me hipnotizou, existia alguma outra risada que podia acalmar meu coração como aquela? Um lábio macio e que emitisse um som de perfeito equilíbrio, com bochechas rosadas e macias ao toque da minha mão?
— Desculpa — por que dói tanto? Diabos, por que tenho de passar de novo por isso? Não é o suficiente? O que eu quero afinal?
— Não ligo para o sucesso — será que eu mereço outra chance? — Se você gosta de ouvir eu não ligo para mais nada.
Você liga, é claro que você liga, só não sabe ainda. Eu fui o único idiota que não percebeu.
Os grãos de areia começaram a cair do teto, a parede a minha frente está se desfazendo, escorrendo como as lágrimas que molham meu rosto, serão lágrimas de verdade ou apenas outra falsidade? Meu tempo está acabando, talvez mais alguns minutos e ela irá embora de novo. Se eu pedir, ela irá ficar?
— O que foi? Você está chorando? — ela sempre conseguiu me ler, mesmo sem ver meu rosto.
Já consigo ouvir o relógio.
— Eu… — eu me virei para encará-la, seu rosto rosado e cabelos loiros estão exatamente como eu me lembrava, cada detalhe está ali, inclusive aquele vestido rosado com flores desenhadas, acho que eu prefiro este ao branco. — Eu te amo.
Eu me levanto e a abraço, as lágrimas que eu segurei por tanto tempo estão saindo todas de uma vez.
— O que está acontecendo, amor? Está se sentindo bem? — tem uma música também, parece tão antiga, anos 60 eu acho.
— Você me promete uma coisa? — estou sendo egoísta novamente?
— O que? — diga-me para parar, por favor.
— Não me abandone, nunca — já consigo ouvir uma voz me chamando.
— Eu nunca vou te deixar, você sabe disso — eu sei?
Promessas são como grãos de areia, milhares jogados ao relento. São como as areias que estão escorrendo entre meus braços neste exato momento, como…
CAPÍTULO 2
A velha vitrola rodava uma música antiga, The Chordettes, uma das bandas favoritas de Nesto Globisk, que por acaso tinha sido a banda favorita de sua mãe. As músicas dos jovens de hoje em dia não o agradava, eram barulhentas de mais, preferia acordar seus clientes com algo mais calmo.
O cliente que estava acordando agora era Lawrence Salcedos, um político bem sucedido, dono de uma fortuna considerável, veio de uma família simples e saiu do México aos 12 anos, esse foi o resumo que havia chego a ele para o trabalho, nada mais sobre a história ou motivo do contato, a empresa tinha ótima fama de confidenciabilidade, somente ele saberia tudo sobre o cliente, e isso morreria com ele, como havia ficado bem claro quando o contrataram.
— Cécile? — o homem de cabelos escuros e rosto triste estava acordando, chamando por um pessoa que não estava ali.
— Sr. Salcedos, desculpe me por acordar-lo tão repentinamente, precisamos conversar para finalizar o contrato — Nesto disse, arrumando seus cabelos castanhos bagunçados que estavam começando a ficar grandes.
Lawrence sentou-se na cama, o homem parecia arrasado, seus olhos estavam inchados e vermelhos e seu olhar distante dali.
Nesto tirou os últimos fios que ainda estavam ligados ao capacete que o homem estava usando e, finalmente, a mangueira que levava o soro para o braço do homem. Toda aquela parafernalha de fio e cabos e o capacete anos 90 pareciam algo saído de um filme de ficção antigo, mas a verdade era que a empresa nunca se importara muito com a estética da coisa, os resultados é que eram importantes ali.
Ao terminar tudo o homem caminhou até o piano e tirou o globo transparente de cima, ele ainda irradiava raios avermelhados e azulados por dentro, os quais estavam quase desaparecendo.
— Se o senhor preferir, posso voltar em uma outra hora.
O cliente permaneceu calado, uma mensagem que não gostaria de ser incomodado naquele momento. Já estava acostumado com as reações depois da primeira viagem, a maioria das pesosas não gostava de conversar e deixava o contrato e esclarecimentos para outro dia, nos piores casos alguns chegavam a ficar histéricos e até agressivos, Lawrence havia pensado em parar depois do primeiro incidente, mas o dinheiro que estavam pagando era incrivelmente alto e estava cada vez mais estava interessado na coisa toda, aquilo tudo era magnífico e, de certa forma, ilegal.
— Vou deixar meu telefone em cima da mesa, me ligue quando estiver pronto para decidir.
— Explique de novo sobre como isso funciona — o cliente o olhava com um olhar sério, parecia bem decidido, um homem diferente daquele a um segundo atrás.
— Tem certeza que está bem para decidir, senhor Salcedo? Digo, o contrato envolve alguns milhões, talvez prefira pensar alguns dias antes de decidir.
— Me chame de Lawrence, por favor — o homem respondeu com um sorriso sem emoção, um reflexo da casca sem vida que ele parecia. — Estou mais do que decidido, doutor, só me explique melhor como tudo isso funciona, preciso dos mais detalhes para assinar o contrato.
— Não sou nenhum doutor, pode me chamar de Nesto, senhor Salc… Lawrence — disse Nesto, andando até a mesa e pegando uma pasta. — O senhor deve ter recebido o panfleto da Nopecni.
— Sim, algo cheio termos técnicos e cheios de promessas. Prefiro ouvir da sua boca como iremos proceder.
— Bem, todo objeto capta resquícios das memórias que acontecem ao seu redor, como se ele fosse uma pessoa vivenciando cada momento, calada, uma vida de dezenas ou centenas de anos. Quanto mais energética essa memória tem com o objeto, mais facilmente ele irá captá-la. Um anel de grande importância irá guardar mais facilmente esses resquícios do que um pote de margarina. Nós não conseguimos acessar nada disso, pelo menos não sem uma ajuda — o homem caminhou até a computador e pegou o globo que agora estava transparente, sem nenhum raio colorido. — Isso é o que chamamo de amplificador de memórias, quando colocamos ele em contato com algum objeto e mantemos uma certa quantidade de energia atravessando o globo, ele consegue amplificar toda memória do objeto, quanto mais fresca mais forte seu espectro, memórias mais antigas precisam de uma quantidade de energia consideravelmente maior para que o espectro seja possível de ser lido pelo computador.
O cliente se levantou e andou até a janela. Aquela era a cobertura de um dos apartamentos mais caros de Lille, uma vista única da cidade. Abriu janela para receber o vento do outono em seu rosto.
— Se importa que eu fume, doutor? — perguntou Lawrence, ainda que aquele fosse seu apartamento.
— Já disse que não sou um doutor, senhor. E a casa é sua, não ligue para mim, fume a vontade.
— Obrigado, pode continuar.
— Como eu dizia, esses espectros das memória são apenas números lidos pelo computador, uma infinidade deles, números que ainda não encontramos um sentido e nem uma maneira de usa-los.
— E como irá fazer o trabalho?
— É aí que a coisa fica interessante, os números sozinho não servem de nada, mas quando são enviados para seu cérebro, seu subconsciente os traduz de alguma maneira, podendo encontrar uma memória que você está procurando, alguma em que você tenha estado, alguma em que você esteja firmemente concentrado em se lembrar. O capacete irá enviar as ondas que ele capta dessa memória até o globo, voltando junto com o espectro do objeto — Nesto olhou para a enorme maleta aberta ao lado do computador, dentro dela uma espécie de fonte azulada estava desligada. — Quando as duas ondas da memória se encontram na fonte, ela liga e o envia para a lembrança durante alguns minutos.
— Como um sonho?
— Não — aquela explicação ele não saberia dar, na verdade ninguém tinha muito certeza do que acontecia dali em diante. O que sabiam era que era muito diferente de um sonho, pois toda atividade cerebral dos pacientes cessava durante a viagem, o paciente poderia ser declarado morto, ainda que todas as funções controladas pelo cérebro continuem ativas por alguns minutos, algo em torno de meia hora. Após isso, se a pessoa não voltasse da viagem o corpo cessava suas funções vitais, terminando com a sua vida. — Cada lembrança irá atuar de uma maneira diferente, algumas vezes você irá vivenciar um dia em apenas um minuto, ou às vezes apenas alguns segundos da memória irão esgotar os vinte minutos da sua viagem, as paredes se despedaçando em areia são um aviso que seu corpo está desligando, qualquer tempo acima disso pode ser arriscado demais, seu corpo pode morrer a qualquer momento, por isso não faça nenhuma besteira.
— Para voltar eu devo fazer a mesma coisa novamente?
— Sim, o computador faz com que seu cérebro crie um dispositivo de escape, algo diferente para cada pessoa e viagem, mas ele sempre estará no seu bolso esquerdo…
— E se eu não tiver bolsos?
— Não preocupe, você sempre terá. Tudo que precisa fazer é usar o objeto e se concentrar na volta, se começar a ouvir alguma música ou minha voz chamando significa que está fazendo a transição de volta.
— E se eu não ouvir?
— Então reze para que algum problema tenha impedido com que eu coloque a música ou que eu te chame, mas continue se concentrando, a volta irá ocorrer independente da música.
— Certo, e o que eu falo nesse sonho faz alguma diferença?
— Senhor Lawrence, é muito importante que tenha isso em mente. Esses resquícios de memória podem reagir de diferentes formas, eles têm as lembranças das pessoas que estavam junto aos objetos e podem falar e reagir diferentemente das situações originais. Perguntas diferentes irão ter respostas diferentes, como se você tivesse voltado aquele momento, porém não passam de memórias antigas, por isso, não importa o que você fale ou faça, quando voltar tudo será igual.
O homem suspirou com todo o peso de um vida, Nesto não sabia qual era a fortuna do homem, mas sabia que o preço daquele contrato custaria muito a homens muito poderosos no mundo, uma quantia para poucos assinarem de bom grado.
— Onde eu assino?