INCIDENTE NO ASTEROIDE

Pomona, 30 de janeiro de 2014.

O diário do desastre.

Enquanto Aldo preparava um pré-informe para mandar ao seu irmão em Marte; no laboratório da nave, Isis instalara o aparelho de leitura trazido da Analgopakin. Ela, Boris e Regina esperavam conhecer o conteúdo do milenar diário de vôo da nave alien, acidentada antes que na Terra surgisse a primeira civilização conhecida...

–Vejam – disse Isis – a imagem holográfica começa a se formar.

–Fascinante! – disse Regina – Um holograma de mais de dez mil anos!

–Há uma certa dificuldade – disse a alienígena – o diário é velho demais.

–Está danificado? – perguntou Boris.

–Não, está em perfeitas condições, mas o leitor é novo demais para ele e o processador procura o código correto para a leitura.

Por fim materializou-se no ar do laboratório um rosto humano de pele branca, cabeça raspada e olhos azuis, com uma pedra vermelha na testa, que falou em raniano superior, uma variante da antiga língua raniana que falavam Nahuátl e Isis.

Tanto sua voz como sua expressão pareciam infinitamente tristes:

"Diário de guerra, Data Imperial 12001.27, registro final..."

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Antártida, Terra – 30 de janeiro de 2014.

Programa de notícias da rádio e TV Venceremos (RTVV); captada em Marte:

Cidade Antártica: HEROÍNA ESPACIAL FAZ DESAFIO AO GOVERNO MUNDIAL

Do palanque do estádio coberto do Centro Esportivo Blanes, onde se reuniram 200.000 membros do Partido Terceirista Antártico, entre os quais 52.000 jovens de ambos sexos das Juventudes Antárticas; a Primeira Dama da Antártida, Bárbara Blanes Santos advertiu, no discurso anual comemorativo ao Dia da Fundação da Nação Antártica, que a Nova Ordem Mundial poderá destruir Antártica, mas nunca conquistá-la.

O discurso foi transmitido ao vivo para a Terra, Lua e Marte por meio da estação transmissora da RTVV do Polo Norte Lunar...

(***)

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Ao mesmo tempo, a bordo da Hércules...

–Fascinante! – disse Regina – Um holograma anterior à civilização terrestre!

"Diário de guerra, Data Imperial 12001.27, registro final...

Engenheiro Huitziloc Pachaca relatando."

"A Quetzal-Viman está perdida. Quando este registro for encontrado estarei morto. É o que resta a fazer, depois de tudo o que aconteceu."

"Parece estranho que ainda faça este registro, mas não tenho nada mais para fazer e é de praxe na frota imperial que todos os eventos sejam registrados ainda que a situação da nave e da tripulação seja desesperada."

"Recém chegados ao Sistema; vindos de Milkar através da anomalia de Almach com carga de guerra; vimos que nosso mundo tinha sido destruído na guerra contra Alakros, e suas partes espalhadas na órbita, como um cinturão de asteroides..."

"Então fomos ao terceiro planeta, onde impactos dos restos de Ran mudaram seu eixo planetário. Soubemos que Mu estava sob ataque dos Xawareks; raça-cliente de Alakros. O planeta foi varrido por suas armas.

Os colonos refugiaram-se em galerias escavadas tempo atrás em previsão de situações como esta. Fomos instruídos a não descer."

"Havia radiação do bombardeio e patrulhas Xawareks no solo, sobreviventes de combate. Chovia torrencialmente e os terremotos provocados pela mudança do eixo planetário eram fortes. Parecia que o planeta explodiria."

"Milhões de seres morreram no primeiro momento e muitos morreram depois em enchentes, afundamentos, radiação e terremotos. As colônias de Mu, Atlantis e Lemúria desapareceram em maremotos. Colonos, nativos e raças-clientes, morreram aos milhões."

"Salvaram-se os que estavam em galerias subterrâneas das montanhas, longe do mar. Para não sermos alvejados pelo inimigo que também estava em dificuldades e reabastecer; fomos ao outro lado do sol, longe dos impactos diretos dos fragmentos de nosso mundo. Em Gopak e Vurón, tínhamos esperança de sobreviver."

"Em Gopak, a permissão para descer nos foi negada por causa da rebelião dos colonos. Não tinham naves de guerra nem artilharia pesada e não fomos atacados. Traçamos curso para Vurón, nos arrastando em força auxiliar. Em suas luas, havia bases de Milkar, raça amiga e aliada contra Alakros."

*******.

Enquanto isso, na engenharia, Greg e Benítez mostravam aos camaradas o objeto misterioso, que logo de aquecer-se ao calor ambiente, começou a latejar.

–Mas o que há com essa coisa? – disse Tom Cikutovitch, assustado.

–Isso está vivo! – gritou o astronauta de serviço Karl Wassermann.

O objeto começou a dilatar-se. Simon e Kowalsky deram um passo atrás.

–Tirem essa coisa daqui, idiotas irresponsáveis! – gritou o primeiro maquinista Basil Muslimov – abram o ejetor de lixo e joguem-na no espaço!

Nesse momento entrou o primeiro contramestre, Marnes.

–O quê está acontecendo aqui? – perguntou.

–Veja você mesmo – respondeu o astronauta Vladimir Chekov.

–Greg e Benítez trouxeram isso! – disse Bino Mendes – Agora está quente!

O objeto começou a dilatar-se e rachar, enquanto latejava com mais força...

*******.

No laboratório, Isis, Regina e Boris ouviam com atenção o relato do tripulante raniano na antiga gravação holográfica que devia ter mais de 10.400 anos:

"O espaço da antiga órbita de Ran estava ocupado por seus fragmentos, que se movimentavam desordenadamente, com o que a navegação era difícil... O capitão percebeu a presença de uma pequena belonave Xawarek, que por sua vez também nos percebera."

"Eles dispararam torpedos fotônicos que enfraqueceram nosso escudo, danificaram uma bobina de dobra e o gerador de campo. Nosso cargueiro só possuía um canhão de luz e o usamos com êxito, com o que os malditos Xawareks explodiram e foram a reunir-se com seus malditos antepassados no Erfos. Não entanto, nossos danos eram consideráveis."

"Ejetamos o núcleo antes que explodisse. O impulso e a manobra ficaram inoperantes. Ficamos à deriva num local cheio de restos planetários. O sistema de refrigeração do porão de carga ficou sem energia e o carregamento de armas biológicas ficou instável."

"Ao ver o gelo das caixas derreter-se, o capitão ordenou jogá-las ao espaço e destruí-las com o canhão que ainda tinha energia; mas não fomos suficientemente rápidos."

"A última caixa se abriu com a agitação do combate e dela emergiu uma das unidades que completou o ciclo sem que percebêssemos e foi matando os camaradas um a um. Quando vimos a unidade solta já era tarde, sumira pelos corredores."

"Eu estava na engenharia tentando consertar o impulso e pude me salvar, já que tranquei a eclusa a tempo; mas meu capacete ficou lá fora com o monstro biológico milkaro e fiquei preso aqui. Pouco depois a nave espatifou-se nesta rocha, partindo-se ao meio e o monstro morreu ao escapar o ar."

"Tudo isso é passado; não há esperança de me salvar e só me resta deixar este registro para os que encontrarem estes restos..."

"Lembro dos piores momentos com tristeza... O navegador tentou recolocar o ovo na caixa que estava flutuando porque a gravitação artificial tinha sido danificada, mas o ovo já estava instável e ao calor das suas mãos começou a dilatar-se e rachar..."

*******.

No solo, na bolha-laboratório, a doutora examinava os objetos.

–Estão frios; madame – disse o jovem Ives.

–Vamos aquecê-lo para ver a reação – acrescentou Adolphe, sempre curioso.

–Cuidado, camaradas; não sabemos com quê estamos lidando...

–Só um destes; madame – disse Adolphe – se fosse explosivo o pentacorder acusaria, mas só mostra silício...

–Faça, mas tenha cuidado. Tentarei cortar este outro.

Adolphe colocou-o junto ao terminal de ventilação. Lídia começou a cortar o outro com a serra de trepanação; firmemente seguro pelas mãos de Ives. A serra cortou a casca e saiu um repugnante líquido esverdeado que foi rapidamente recolhido numa travessa transparente.

–Limpe-se, camarada – disse a doutora desligando a serra por um momento.

–Essa gosma parece vômito, Tem um parfum bem desagradável, madame.

–Adolphe, por favor, a máscara cirúrgica.

–A senhora devia tê-lo pensado antes – comentou Adolphe, enquanto colocava a máscara no belo rosto da doutora russa, que respondeu:

–Camaradas, um segundo atrás eu não sabia que isto era um objeto orgânico...

Lídia cortou a casca ao redor até dividi-la em dois. Ives separou as partes e na travessa caiu um ser cinzento com seis membros roxos, e pele coberta de espinhos.

–Mon Dieu! – disseram os franceses, ainda com reflexos monoteístas.

–Mas o quê é isto...? – murmurou a doutora, hipnotizada pela descoberta.

–É um ser – disse Ives – e nós o abortamos!

–Está congelado – disse Lídia – mas o mais provável é que esteja morto.

–Deve ter morrido ao ser tirado do ovo, doutora.

–Sim. Não reage à temperatura ambiente.

–O pentacorder não detectou nada orgânico – disse Ives – não entendo isso...

–O sensor está regulado para carbono, camaradas; isto é uma forma de vida baseada em silício. Fizemos uma descoberta que fará pedaços a ciência da Terra.

–Três bien, madame! Mais uma descoberta. Adoro isso! – disse Adolphe.

–Não haverá suficientes Prêmios Nobel para a senhora – comentou Ives.

–Um prêmio da ditadura não me interessa, camarada.

O engendro tinha o corpo alongado coberto de espinhos, a cabeça em forma de fuso era um terço do comprimento de trinta centímetros. Na casca estava encolhido, tinha quatro extremidades anteriores e duas posteriores de três dedos longos e grossos com fortes unhas curvas.

Na boca tinha duas fileiras de dentes compridos e afiados como navalhas e lábios grossos como peixe de água doce. Os olhos fechados deveriam ser grandes e esbugalhados, uma vez abertos.

–Assustador, apesar de pequeno – disse Ives.

–Não gostaria de me encontrar com a mãe deles – disse Adolphe.

–Se é que existe uma mãe que coloca quarenta ovos numa caixa de metal, em perfeita ordem, como para viajar pelo universo, camarada...

–Não entendi – disse Ives.

–Elementar, camarada. São clones sintéticos.

Nesse momento ouviu-se um som de rachadura.

Os três viraram-se e viram...

–Sacre Bleu! – gritou Adolphe.

O outro ovo latejava violentamente e estava rachando-se...

*******.

O príncipe adormecido.

Desde a pirâmide truncada, o Professor von Kruger transmitia suas descobertas para o capitão por meio do cabo do improvisado telefone espacial.

–...Este é o túmulo de um raniano superior, mas não está morto, porém dormido. Os escritos dizem que ele voltará à vida após o fim do mundo, por isso foi colocado nesta pirâmide, para preservar seu corpo de todo mal.

–Os aparelhos continuam funcionando, ao que me consta, professor.

–Você estava certo, Herr Nahuátl confirmou. Embora nunca visse um legítimo raniano superior em pessoa, ele conhece a tecnologia de hibernação. Não vimos seu rosto porque tem um pano sob o cristal. Presumo que para isso a câmara deverá ser aberta, mas Herr Nahuátl disse que isso deve ser feito com o maior cuidado para não provocar a morte do sujeito. Não há ar aqui dentro.

–Entendo. Há algum indício da identidade do hibernado? Não que isso seja...

–Um tal de Angztlán Pachacuti; "Príncipe de Homens, Conquistador de Mundos, Cavaleiro do Cosmos e Guerreiro Invicto". Venha a vê-lo, Herr Kapitan!

–Chego em dois minutos. Aldo desliga.

*******.

Isis Ang continuava a tradução do holodiário de vôo da nave naufragada:

"...Instantes depois o objeto explodiu sujando o navegador com baba verde e viscosa, expulsando um ser que se prendeu da garganta dele e sugou os líquidos do seu corpo. Ele morreu e seu cadáver ressecou-se.

Os que tentaram desprende-lo não o conseguiram devido aos espinhos venenosos que queimaram suas mãos."

"O capitão estava de traje completo e tentou arrancá-lo sem êxito; as garras estavam cravadas firmemente no corpo do navegador. O segundo comandante bateu nele com uma ferramenta, mas não conseguiu matá-lo. Depois, ele escondeu-se para fazer a digestão e não o encontramos mais."

"Fui à engenharia para tentar consertar pelo menos o impulso e levei várias caixas de alimento ao ver que a situação estava fora de controle. No comunicador ouvi gritos dos camaradas morrendo, sem poder fazer nada para ajudar. Logo não se ouviram mais vozes."

"Eu não saí da engenharia porque o monstro estava agora do tamanho de um de nós. Andava solto por todo lado à procura de comida e percebera-me pelo visor da porta..."

"A nave sem governo bateu na rocha e se partiu. O ar escapou e o monstro morreu contorcendo-se. Fiquei preso aqui dentro porque esqueci meu capacete."

"Quem encontrar este registro tome cuidado com o conteúdo dessa caixa que ainda está lá fora, na qual ainda há 39 ovos de monstros sintéticos que trouxemos de Milkar para serem usados contra Alakros como arma biológica..."

–Maldição! – gritou Boris. De repente lembrara dos dois astronautas de serviço que subiram a bordo meia hora antes, carregando uma dessas coisas.

–Malditos sejam Greg e Benítez!

E saiu disparado pelo corredor.

*******.

O cozinheiro e o sobrecargo viram o comandante Boris deslocar-se como um possuído pelo corredor principal gritando maldições e foram atrás dele. Boris entrou na engenharia no momento em que o ovo explodia nas mãos de Bino Mendes, que tentava desesperadamente introduzi-lo no ejetor de lixo.

O monstro prendeu-se da garganta do brasileiro.

Benítez e Greg tentaram arrancá-lo, queimando-se as mãos com o veneno dos espinhos. Quando conseguiram, a traqueia de Bino estava nos dentes da besta. Bino caiu em câmara lenta na meia gravidade da nave numa chuva de sangue.

O monstro cuspiu a traqueia do morto e prendeu-se no pescoço de Benítez, chupando furioso com barulho arrepiante. Benítez, pálido pela perda de sangue gritava em desespero. Greg com as mãos queimadas, inchadas e roxas, chorava enquanto caía escorregando no sangue de Bino.

–Tom, o lança-chamas! – ordenou Boris.

Wassermann bateu furiosamente no monstro inchado de sangue com uma chave inglesa e este se desprendeu de Benítez, com uma pata quebrada e pulou ao quarto de ferramentas.

Chekov, dominando seu medo, pegou um maçarico de plasma e entrou no local. Brilharam os olhos do monstro e seus dentes vermelhos de sangue. Tinha aumentado de tamanho com a energia vital roubada das suas vítimas.

–Ele cresceu! – gritou Chekov.

O monstro arrotou asquerosamente.

–Mas quê demônios é isso? – disse Kowalsky, entrando por trás de Chekov com um pedaço de cano...

Wassermann bloqueou a porta, ainda com a chave inglesa na mão.

–Fogo nele, Chekov!

O monstro encurralado, com os dentes ensanguentados e a pata ferida; buscou uma saída. Os homens o atacaram ao uníssono. O maçarico de Chekov o fez fugir pela direita onde o esperava Kowalsky com um cano.

Aturdido pelo golpe do piloto russo, correu para a esquerda e Wassermann acertou-lhe com a chave inglesa. Então passou entre as pernas de Kowalsky, derrubando-o; pulou sobre Benítez, esbarrou em Greg e escorregou no sangue de Bino.

Simon acertou-lhe com uma lata de graxa, mas com resistência e rapidez incríveis, afirmou as cinco patas boas e pulou para a porta aberta do corredor principal por onde entrava Tom Cikutovitch com o fuzil lança-chamas.

–Dispara, Tom! – ordenou Boris.

Tom obedeceu. O monstro recuou com o corpo queimado; mas por todos lados perseguia-o o jato de fogo. Entrou no quarto de ferramentas, onde o esperava o maçarico de plasma de Chekov; mas com tanto azar para este; que se meteu na frente do lança-chamas de Tom e seu macacão de trabalho pegou fogo.

–Ah...! – gritou o infeliz astronauta russo.

–Perdão, Tovarich! – gritou desesperado Tom, apagando o lança-chamas; com o que o monstro pulou até a porta do corredor, e tivesse passado, se o cozinheiro não lhe fechasse a porta estanca no focinho.

Ocupados em banhar Chekov com extintores, não perceberam que o monstro aproveitara a confusão para prender-se do pescoço do indefeso Greg; cujos alaridos confundiam-se com os de Chekov. Greg tinha mãos e braços horrivelmente inchados e paralisados pelo veneno que pouco a pouco lhe fazia perder os sentidos.

O sobrecargo Martos com uma furadeira; interrompeu a sobremesa do monstro, batendo-lhe na cabeça. A fera desprendeu-se de Greg, já morto e correu, escorregando no sangue para o quarto de ferramentas de onde Chekov já tinha sido retirado. Simon correu atrás dele e fechou-lhe a porta.

–Fica aí, maldito!

Foi quando se abriu a porta da sala de torpedos de popa e entrou na engenharia o segundo artilheiro, Índio Báez, irritado:

–Quê barulheira é essa, idiotas? Quê escândalo! Quando vão aprender a...?

O que viu o deixou pasmado: uma chuva de sangue descendo lentamente ao chão; o cadáver de Bino com a garganta estraçalhada; Greg e Benítez ressequidos; Chekov ainda fumegante; Tom abraçado ao lança-chamas, chorando como uma criança; Simon e Kowalsky com canos e ferramentas nas mãos; Wassermann com uma chave inglesa; Martos e Basil com extintores; o contramestre cortando a roupa queimada de Chekov com sua faca padrão e o cozinheiro espionando através da janela redonda da porta do corredor com os olhos cheios de lágrimas.

Boris, com o rosto suado; largou o extintor e indicou o quarto das ferramentas:

–Há um monstro atrás dessa porta.

–O quê eu faço, comandante?

–Estes três estão mortos, mas Chekov talvez possa salvar-se. Vá ao rádio e chame à doutora.

–O quê aconteceu?

–A estupidez de Greg e Benítez custou-lhes a vida... Mas faça o que digo!

–Sim, senhor!

Báez foi a chamar à doutora Lídia Maximova Diakonova, que nesse preciso momento estava muito ocupada com o seu monstro...

*******.

–Não o toquem! – gritou Lídia – Coloquem luvas e capacetes!

–Está vindo em cima de mim! – disse Ives.

O monstro mostrou dentes amarelos esverdeados, afiados e virgens, recolhendo para trás seus lábios sedentos. Lídia percebeu o que o ser queria com o movimento de sua boca horrível e seu corpo recém nascido; as contrações de suas garras e unhas; seu olhar sedento às suas três primeiras vítimas e a tensão das patas preparadas para pular à garganta mais próxima.

–Parece uma espécie de vampiro, protejam as partes fracas dos trajes.

–Entendido – disse Adolphe, puxando a faca padrão.

Lídia pegou seu bisturi mais afiado, Ives esgrimiu a serra, como a arma mortal em que podia converter-se. O ruído desta irritou o recém nascido, que voou como um raio na quase gravidade zero de Pomona, direto à garganta de Ives.

Com um golpe de serra, Ives decepou uma pata traseira do monstro, que se prendeu do seu braço. Adolphe com a faca e a doutora com o bisturi; foram em cima da fera cujo sangue amarelo esverdeado espirrou ao chão na gravitação mínima, queimando o tapete de borracha sintética do laboratório.

–O sangue é ácido, camaradas! – disse a doutora.

O monstro tentou morder e chupar. Mas a armadura reforçada resistiu às unhas e os dentes. A fera desistiu, soltou-se de Ives e pulou para esconder-se num canto, sofrendo a dor da perda da pata traseira e das múltiplas facadas e golpes.

Mas um iglu não tem cantos e o que achou foi uma caixa padrão vazia de transporte de material de laboratório. Lídia, rápida como um raio, fechou a tampa.

–Daí não sai – disse Ives – essas caixas sempre emperram as fechaduras.

–Está ferido, Ives?

–Não. Quebrou os dentes. Devo estar com hematomas, e aqueles espinhos...

–Camaradas, não tirem os capacetes – disse Lídia.

–Báez para doutora Lídia. Precisamos da senhora aqui. Houve um desastre.

–O quê aconteceu?

–Três mortes. Chekov está mal, não temos médico, von Kruger não está.

–Explodiu alguma coisa?

–A senhora não vai acreditar. Temos um monstro a bordo.

–A caminho.

Quando saiu ao exterior, Lídia viu a caixa dos ovos junto da eclusa, na qual faltavam quatro ovos em vez de três, como seria o lógico.

–Mas o que fizeram estes dois loucos irresponsáveis...? Como puderam...?

Ao subir na espaço-moto, ela disse:

–Camaradas, não tirem os capacetes. Se ele sair da caixa, abram as válvulas de inundação, garanto que assim deve morrer.

*******.

Lídia Maximova era uma médica fria, mas não estava preparada para o espetáculo dos camaradas ressequidos como múmias. Enfiou a cabeça no ejetor de lixo da parede para não vomitar no corredor. Quando ficou boa; Boris aproximou-se.

–Está bem, doutora?

–Estou. Levem Chekov para a enfermaria! O capitão foi avisado?

–Não. O cabo da pirâmide partiu-se.

–Então que o consertem, Boris, ou que alguém vá lá embaixo.

–Wassermann! Busque o capitão e mande consertar o cabo.

–Diga a Adolphe e Ives que correm perigo mortal se deixarem fugir o monstro da caixa – acrescentou a doutora.

–Há outro? – apavorou-se o primeiro maquinista Basil Muslimov.

–Sim, camarada.

Pouco depois, Chekov dormia sob a ação da morfina.

–Há esperança? – perguntou o cozinheiro.

Ela tirou as luvas cirúrgicas com gesto mecânico, enquanto coçava seu ombro esquerdo na borda da porta do corredor.

–Não. Oitenta por cento do corpo queimado, pernas carbonizadas... Se ficasse vivo... Hipoteticamente, é claro; ficaria desfigurado, paralítico e sem órgãos sexuais.

–Madonna Santa! – exclamou o cozinheiro – Pobre amigo!

–Eu tive culpa – choramingou Tom Cikutovitch.

–Cale-se! Não é hora para isso! – disse Boris irritado – Os responsáveis foram Greg e Benítez...! E agora estão mortos!

–E o coitado do Bino...!

–Silêncio, idiota! Se te ouço chorar de novo, te meto no calabouço!

–Sim, senhor! Desculpe senhor!

–Simon! Kowalsky! Limpem o sangue da engenharia, ensaquem os cadáveres e coloquem-nos na sala de torpedos de popa! – Martos! Gatti! Ajudem-nos!

Nesse momento chegou o capitão. Sua armadura estava coberta de gelo, que se dissolvia rapidamente. Em seguida levantou o visor do capacete:

–O quê está acontecendo aqui, Boris?

Em poucas palavras Aldo foi posto a par da situação enquanto caminhavam pelo corredor central em direção à engenharia.

–Dizes que esse animal está no quarto de ferramentas?

–Sim, Ives e Adolphe estão com outro lá embaixo.

–Outro? Ordena-lhes que matem esse bicho imediatamente.

Aldo entrou, fechou a porta da engenharia e ordenou a Wassermann:

–Abra as válvulas de inundação.

Wassermann fechou seu capacete e abriu as válvulas.

–Vácuo total capitão!

Aldo abriu o quarto de ferramentas do qual saiu um furacão de ar e coisas, além do monstro, que se debateu, morrendo em seguida.

–Restaurem o ar da engenharia, limpem tudo e desinfetem a nave! Metam os corpos nos tubos lança-torpedos e lancem-nos ao espaço! Boris; vem comigo.

Após fumegar sua armadura na eclusa, Aldo levou Boris ao seu camarote:

–Como aconteceu, Boris?

–Vi aquilo e achei que você o mandara. Eles não disseram nada...

–Pagaram caro essa burrice – disse Aldo, ligando a rede de alto-falantes:

–Capitão para tripulação! Isto não é um cruzeiro de prazer! Quem trouxer a bordo qualquer coisa sem minha ordem, será lançado pelo tubo. Greg e Benítez morreram por estúpidos e causaram a morte de Bino. Chekov está agonizando. Isso poderia ter sido evitado se lembrassem que sou eu que mando aqui! Isso é tudo.

Aldo desligou o microfone no momento em que Lídia entrava no camarote.

–Capitão, o monstro lá de baixo morreu. Acho que de fome.

–Eu sei o que era – disse Boris – é um ser artificial, uma arma biológica. Nasce quando há temperatura para a vida e sempre há vida ao redor para seu sustento.

–Arma biológica? Devia imaginar, quando vi que era um clone – disse Lídia com olhos brilhantes – capitão, preciso voltar. Permite-me?

–Tenha cuidado. Não podemos perder mais gente.

–Quem cuidará de Chekov? – perguntou Boris.

–A conselheira Regina, comandante. Vai administrar-lhe heroína pura de três em três horas, assim que ele começar a gritar. Não sofrerá nem saberá o quê lhe acontece. É o que podemos fazer até que morra. Não há a bordo tecnologia que o mantenha vivo. Ainda que houvesse, ele nos odiaria. Você o viu, capitão?

–Vi, sim. Não tem rosto, aparecem os ossos carbonizados; só tem carvão entre as pernas... Quanto tempo lhe resta?

–No máximo doze horas. Lamento; capitão. Agora preciso ir.

–Lídia, espere! Irei com você lá embaixo. Tenho que falar com von Kruger.

*******.

A espaço-moto passou entre os corpos que flutuavam em direção ao asteroide, onde terminariam por cair. O monstro ao morrer já estava do tamanho de um humano.

–Antes de partir os enterraremos lá embaixo.

–Quero o corpo do monstro adulto para estudá-lo, capitão.

–Como queira, Lídia. Complete seu trabalho e destrua esses ovos.

–Tem certeza? Recuso-me a desistir de achar-lhes uma utilidade para nós.

–Para usá-los contra nossos possíveis inimigos? Tenha dó! Isso é...

–Permita-me ver se posso controlá-los de alguma maneira pelo menos...

Aldo ancorou o espaço-moto e desceram. Ele tentou ver os olhos cinzentos da doutora russa através do visor. Em cima, as estrelas brilhavam frias como aço.

–Como? Achando o manual dos monstros a bordo da nave alien? Francamente, doutora! Não vejo como esses bichos podem ser controlados.

–Gostaria de tentar descobrir.

–Não gosto disso, Lídia. Mas... Está bem, só até partirmos.

–Obrigada. O pouco que consiga será melhor que nada.

–Doutora... Já vi esse filme antes... Tenho uma sensação de Dèja vú...

*******.

–Herr Kapitan! O príncipe pode ser despertado. Herr Nahuátl sabe como...

–Será conveniente?

Von Kruger dirigiu ao capitão um olhar apenas comparável ao de um beato na frente de um blasfemo.

–Kapitan...! – sua voz tremia – É claro! É um nobre, um príncipe do Velho Império, um grande herói...! Sabe quanto podemos avançar com seu conhecimento?

Aldo levantou a mão para cortar aquela avalanche de palavras:

–Não discordo e entendo seus motivos. Sem dúvida ele tem muito a nos dizer.

–É isso mesmo!

–Agora imagine que ao ver o que sobrou do seu império, possa levar um choque, enlouquecer e tornar-se perigoso para nós...

–É claro! Sim...! Não pensei nisso... Bom, certo... Tomaremos as maiores precauções, Mein Kapitan. Herr Nahuátl saberá o que fazer quanto a isso.

–Resolva e depois me procure. Agora tenho mais o que fazer, professor, tivemos sérios problemas. Morreram três e há um ferido agonizante.

–Não diga!

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E chegou-se a este ponto.

A jornada interrompida num asteroide no qual a morte espreitava; três homens mortos; Chekov agonizando; ovos mortais de monstros sintéticos genocidas de outra galáxia; a Reverenda Sacerdotisa Ingeborg com seu braço quebrado; um príncipe adormecido do espaço esperando ser acordado; uma nave raniana capturada e dentro dela duas naves disco dos nefastos kholems, seres conhecidos na Terra como Alfas Cinzentos com suas tripulações prisioneiras.

E como se tudo isso fosse pouco, a milhões de kms dali, na Terra; estava preparando-se uma guerra contra os antárticos e contra tudo o que estes acreditavam.

O capitão Nahuátl Ang retornou do espaço profundo e se encontrou sem planeta, sem império e sem nada que o lembrasse, a não ser ruínas.

O adormecido, quando despertar, nada encontrará do seu passado.

E o que encontrarão os tripulantes da nave Hércules o dia ainda distante em que retornarem à Terra?

Se retornarem.

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Continua em: DEPOIS DO INCIDENTE

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O conto INCIDENTE NO ASTEROIDE forma parte integrante da saga inédita Mundos Paralelos ® – Fase 1, Volume 2, Capítulo 12, Páginas 35 a 44, cujo inicio pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados, sarracena.blogspot.com

O volume 1 da saga pode ser comprado em:

clubedeautores.com.br/book/127206--Mundos_Paralelos_volume_1

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 13/06/2013
Reeditado em 18/12/2016
Código do texto: T4340141
Classificação de conteúdo: seguro
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