O Buraco Negro
A JJ SOUZA e GANTZ, dois grandes amigos e autores que vêm me acompanhando e dando forças desde o primeiro conto.
1 – O LOUCO E O RAPAZ
Se alguém olhasse de longe, digo, do espaço, poderia até dizer que aquela nave era melhor, mais bonita e eficiente que a Interprize. Mas certamente ninguém iria se lançar pelos ejetores para quilômetros de distância apenas pra ficar contemplando a beleza de uma espaçonave.
"Mas seria engraçado, não seria? É, seria hilário!" pensava o segundo comandante, capitão Renato, olhando para a imensidão das estrelas por uma janelinha. Ele havia sido afastado do painel de controle após um aceleramento brusco dos motores ter lhe causado loucura temporária. O cérebro humano não foi feito para viajar por outros lugares que não seja a Terra.
Colocaram-no numa cadeira de rodas extremamente moderna com uns cobertores sobre as pernas, feito um idoso, enquanto o resto da tripulação trabalhava incessantemente para manter a rota designada para a missão.
Missão essa cujo objetivo era averiguar o planeta Orpheu 812, o sétimo com grandes possibilidades de abrigar vida – os seis anteriores haviam sido sucessivos fracassos, mas sempre havia esperança. E uma vez que as politicagens humanas estavam destruindo o planeta exatamente como os escritores de ficção cientifica previam, encontrar um planeta em condições se tornava cada vez mais importante.
Renato desviou os olhos da janela por um instante porque um rapaz se aproximava.
– Está tudo bem, capitão? Precisa de alguma coisa?
– Sim – respondeu ele. – Preciso saber como vamos, corre tudo conforme o planejado?
O rapaz se aproximou mais, num silêncio tranqüilo. Ficou olhando também por aquela janela, eles estavam quase na órbita de um enorme planeta gasoso alaranjado que era lindo de ver.
– O capitão Nunes pediu para que eu não entrasse em detalhes da missão com o senhor, sabe, para não sobrecarregá-lo. Mas sim, vamos bem. Acho que ainda nessa semana chegaremos ao tal planeta...
Os dois ficaram calados por um instante.
– Como é seu nome, garoto? – perguntou o capitão, que pelo menos aparentava já estar restabelecendo a sua sanidade.
– Jeferson, capitão.
– Você não é muito novo para uma viagem espacial, Jeferson?
– Fiz uma boa faculdade na Terra. USP, São Paulo.
– Hum... Brasil, um bom país...
Novamente silêncio. A nave iria se afastar daquele sistema planetário em que estava agora e voltaria a ligar a alta propulsão a qualquer momento, o que queria dizer que o capitão Renato podia voltar ao estado de insanidade em poucos segundos, e com certeza era por isso que os superiores haviam mandado Jeferson ir até lá ficar com ele.
Uma quietude muito larga se esticou naquele corredor, esse era um dos pontos negativos das viagens espaciais: os momentos de silêncio se prolongam demais. O capitão continuou olhando para a paisagem sideral enquanto que o rapaz admirava a parede vazia.
E foi aí que a neve ultrapassou o planeta alaranjado e, para seu desespero, Renato conseguiu ver o que havia à frente, bem na rota que a espaçonave estava seguindo.
– Rapaz! Rapaz! Veja aquilo!
– Um buraco negro!
O capitão imediatamente tentou contatar o centro de controle sobre o problema, apertou o botão de comunicação na sua roupa, e quando uma mocinha o atendeu ele começou a gritar para que olhassem para frente, que todos precisavam ver o perigo do buraco negro logo à frente, mas a mocinha só dizia "Sim, sim, claro capitão, claro", deixando claro que não acreditava em sequer uma palavra do que ele estava dizendo. Afinal, aquele era o 'talkie' do capitão Renato, o que enlouquecera na viagem. Ela desligou.
– Jeferson, contate o primeiro-capitão! Ligue para o capitão Nunes já!
– Ele não está respondendo! Devem estar ocupados preparando os motores para a prop...
– Vá até lá! – bradou o homem na cadeira de rodas, interrompendo-o. – Você não entende o que acontecerá se ele não souber a tempo?! Vá logo!
Jeferson partiu dali correndo, tropeçou no quinto passo e caiu no chão, para então se levantar e continuar a correr. Sim, ele era ainda muito novo para uma viagem espacial.
No primeiro momento, Renato se perguntou como podia ser possível que os profissionais no centro de comando – que fica bem na dianteira da nave – pudessem não estar vendo um buraco grande daqueles. Mas a resposta era clara: de frente aquele buraco negro não emitia nem recebia luz, e portanto era invisível, porém ali na lateral da nave, a luz que a estrela daquele sistema refletia no planeta alaranjado refletia-se outra vez diagonalmente, deixando o buraco negro visível apenas daquele ângulo. Um enorme círculo negro girando em sentido horário com braços semelhantes aos braços das grandes galáxias vistas de cima.
Mas de nada adiantava saber de tudo aquilo. De qualquer forma o que restava ao capitão era apenas ficar olhando enquanto a nave seguia para o seu fim.
2 – OS PROPULSORES
Jeferson trombou num dos cientistas mais brilhantes da história da humanidade e nem se deu ao luxo de pedir desculpas, continuou correndo pelos setores e blocos da nave. Mesmo que alguns seguranças dissessem para ir mais devagar, o rapaz continuava correndo. E quando chegou à sala de comando ouviu a voz do computador anunciando que os motores 1, 3 e 6 já estavam prontos para a propulsão e os 2 e 4 estavam quase prontos.
– Capitão Nunes, o senhor precisa interromper as máquinas! – ele, um mero assistente, gritou em meio aos grandes cientistas, deixando aquela sala totalmente calada, todos olhando para a sua cara suada de tanto correr.
– Quem é você, garoto?
– O senhor falou comigo há menos de meia hora, disse para eu ficar com o capitão Renato. Mas quer saber, isso não importa! Há um buraco negro à frente, uns 100 minutos-luz à frente, o senhor precisa parar!
Todos olharam para o grande visor na frente da sala, e não havia nada ali além de espaço e mais espaço.
– Hum... o capitão Renato disse isso a você? Rapaz, ele sofreu problemas na última propulsão, não está ajuizado por ora.
– Mas eu vi também! Lá da janela eu vi!
– Você não teria como "ver" um buraco negro. O senhor também deve ter passado por problemas da última vez que aceleramos, deve estar tão louco quanto ele...
O computador avisou que os últimos dois propulsores estavam prontos.
– Ótimo – disse Nunes, voltando a se sentar na sua cadeira de piloto. – Ativar a propulsão máxima em cinco segundos. Eu quero uma velocidade próxima da luz para chegarmos logo nesse tal planeta.
Todos os setores da nave (inclusive o do desesperado Renato), foram avisados pelo computador que a propulsão estava em contagem regressiva para começar, e que era para todos porem seus cintos de segurança devido á turbulência.
Jeferson ainda gritou um estendido "Não!', mas sua voz desesperada foi encoberta pela voz mecânica do computador:
– Cinco segundos para a propulsão. Quatro segundos. Três. Dois. Um...
3 – A PERGUNTA CERTA
Não sei se por sorte, azar ou mero acaso, mas a questão é que aquela espaçonave em altíssima velocidade atravessou precisamente bem pelo olho do buraco, sem tocar nas suas extremidades, onde a força gravitacional faria com que cada átomo se separasse do outro. E dessa forma nenhum dos outros tripulantes percebeu que eles haviam entrado numa área fisicamente impossível de se desbravar. Apenas o capitão Renato sabia disso, e ninguém acreditaria nele, sequer o ouviriam, uma vez que todos ainda achavam que ele estava sob efeito da loucura temporária.
Então, quando os propulsores foram desligados, o capitão Nunes tratou de tranqüilizar o garoto, mostrando como o espaço sideral estava exatamente igual, e seguindo ainda as coordenadas mostradas na tela. Havia, ele não podia negar, uma estrela ou outra que simplesmente desaparecera do visor, mas isso talvez se devesse a algum erro nas equações cartográficas.
– Como eu disse, o capitão Renato ainda está sob efeito da viagem. Volte ao seu posto, rapaz.
Um pouco consternado, Jeferson obedeceu.
Até chegou a ficar com um pouco de raiva do seu segundo comandante, que o induzira a fazer papel de bobo na frente dos superiores, mas logo ele lembrou que não foi iludido apenas por palavras, ele também vira o buraco negro com os próprios olhos. Não entendia. Nada daquilo fazia o menor sentido.
Decidiu ir outra vez conversar com o capitão Renato e quando chegou lá o encontrou muito pensativo, olhando para fora pela mesma janela de antes.
– Nada aconteceu, capitão – o jovem Jeferson disse.
– Se engana. Algo aconteceu. Só não sabemos o quê.
– Mas o que o senhor supõe?
Ele ficou em silêncio por algum tempo. Depois soltou uma frase aparentemente sem nexo:
– Rapaz, você já ouviu falar de Atlantis Z-35?
E Jeferson temeu que o seu querido comandante estivesse realmente esse tempo todo fora de si, ainda assim decidiu manter a conversa:
– Só conheço por nome, é uma constelação, certo?
– Sim. Um conjunto de sete estrelas vermelhas, ou seja, estrelas muito antigas que já emitem luz vermelha – mais alguns segundos em silêncio, e com a voz meditativa ele complementou: – Atlantis Z-35, segundo os mapas, deveria estar visível deste ponto do espaço, bem ali.
Jeferson também olhou para o lugar pela janela, e não passava de espaço vazio, vácuo, escuridão. Renato continuou:
– Atlantis simplesmente desapareceu.
– E o que isso quer dizer?
– Não tenho certeza, talvez eu esteja realmente louco outra vez. Mas se a constelação Atlantis não está ali, aquelas estrelas tiveram fim, morreram, e como não há sequer poeira cósmica, posso concluir que isso já aconteceu há milhares de anos...
Jeferson, ainda que temeroso, insistiu:
– Senhor, onde estamos?
– Meu rapaz, lamento dizer que talvez a pergunta certa a se fazer seja: "Em que época estamos?".
4 – ORPHEU 812
Uma semana se passou em aparente normalidade, o capitão Renato voltou ao seu cargo e preferiu não tocar no assunto do buraco negro com o seu superior, o primeiro comandante capitão Nunes, até porque se o fizesse seria mandado outra vez para aquela cadeira de rodas dos loucos. Tratou ainda de tranqüilizar o jovem Jeferson, lhe explicando que agora nada poderia ser feito, e que era melhor o garoto se acalmar e aguardar o desfecho de tudo para tomar decisões. De tanto que os dois conversavam sobre o assunto, acabaram se tornando amigos.
E finalmente a tripulação daquela espaçonave chegou ao planeta Orpheu 812, mas para espanto de todos, nem foi preciso pousar na superfície do planeta para abordarem a missão: aquele mundo havia sido simplesmente dizimado, mesmo do espaço era possível que o planeta estava seco, amarelo, com uma atmosfera fina e destruída e com um imenso buraco de meteoro desenhado nele.
A maioria dos cientistas não compreendia como era possível que um meteoro estivesse na órbita daquele planeta e eles não terem calculado isso. Os números não batiam, não condiziam com a realidade que eles estavam vendo.
Só o capitão Renato e seu amigo tinham uma noção do que estava havendo.
– Bom pessoal, não foi dessa vez – disse o capitão Nunes no microfone da nave. – Estamos dando meia-volta, destino a Terra.
5 – DE VOLTA PARA A TERRA
Como já era de se supor, na volta o buraco negro não estava mais onde deveria. O capitão Renato chegou a pedir para que Jeferson olhasse pelas janelas laterais para ter certeza se não conseguiria encontra-lo, mas não havia nada. Na física teórica admite-se que do outro lado de um buraco negro ele simplesmente não existe. É um caminho sem volta.
E eles seguiram em direção ao planeta-mãe, que agora, assim como Orpheu 812, podia ter sido simplesmente dizimado, talvez nem existisse mais.
6 – A HISTÓRIA DOS HOMENS
Mas ao chegarem lá, encontraram a Terra ainda mais azul. Linda. A espaçonave procurou um local adequado para pousar, e o computador avisou que o único local em quer não havia mata fechada, ou seja, em que havia um lugar plano que serviria para campo de pouso, era no Pólo Sul, que não estava mais congelado.
E assim foi feito. Desceram lá e se depararam com um belíssimo continente verde, cheio de construções grandiosas que eram réplicas exatas das antigas construções humanas. Coliseu, Muralha da China, pirâmides egípcias e astecas, etc.
Porém, por mais que chamassem e vasculhassem, não encontravam sequer uma pessoa. O computador também não encontrava nenhum vestígio de aparelho eletrônico sendo utilizado no planeta.
– Onde foram parar todos? – perguntavam-se.
E foi só quando a tripulação encontrou uma réplica da Biblioteca de Alexandria e entraram nela que eles entenderam o que havia acontecido.
Depois de lerem um grande livro chamado A História dos Homens é que ficaram sabendo de o quão dramático foram os últimos dias da nossa espécie no planeta. Bombas atômicas dizimavam Oriente Médio e América do Norte numa terceira e derradeira Guerra Mundial que durou apenas duas semanas. Ao fim, todos os habitantes do hemisfério norte estavam mortos, e os do hemisfério sul sofriam as conseqüências químicas disso, câncer, mutações, degenerações.
Eles sabiam que a raça estava destinada a fenecer, com exceção de um pequeno grupo de astronautas que seguiram em busca de um lugar melhor e jamais voltaram.
(O capitão Renato lia tudo em voz alta e todos acompanhavam no mais profundo silêncio).
E a esses poucos sobreviventes do Hemisfério Sul coube a triste missão de deixar um legado ao planeta, aos seus possíveis futuros moradores, sejam de que espécie forem, e então eles uniram forças e desceram até o último continente ainda limpo do mundo. Antártida. Que devido ao calor das bombas na guerra, concluiu seu processo de degelo.
E lá eles fizeram uma reconstrução de todas as coisas boas que a espécie humana havia erguido, e que depois, destruíra com seus interesses torpes. Apenas uma lembrança do esplendor de uma raça estranha, boa e má em demasia e ao mesmo tempo.
Ao fim da construção, voltaram para suas casas temendo poluir aquele grande santuário no sul do planeta, e esperaram pela morte que, acredito, não tardou a chegar.
E foi depois da leitura e do longo silêncio que a sucedeu, que aqueles poucos cientistas, homens e mulheres, entenderam que agora eles eram o futuro, em suas mãos estava refazer a humanidade, de suas mentes sairiam todos os ensinamentos para as futuras gerações. E se entreolharam. E choraram. E depois sorriram com a esperança de que agora tudo seria diferente.
Eles ao menos fariam o máximo para que fosse.
fim.