Influenza
No fim, não passava de informação sendo transmitida de um lado para o outro.
"Como vc está?"
Criada pelo pressionar de teclas temporariamente armazenadas em ASCII, numa região de memória reservada de uma máquina digital qualquer, o buffer agora se esvaziava e a sequência de caracteres se materializava em fontes de caracteres exibidos num monitor distante. Informação pensada, digitada, codificada, transmitida na forma de pacotes binários, recebida em seu destino, decodificada, desenhada numa tela de computador, lida, interpretada e compreendida por outra mente humana. O ciclo da informação de fechava. Algo pensado várias centenas de quilômetros dali se materializava quase que instantaneamente na mente de outra pessoa.
"Estou meio gripada hoje! Me dói o corpo todo..."
"Melhoras! Só espero que você não me transmita esta gripe pela Internet!", ele respondeu em tom de brincadeira. O que não sabia era que estava muito mais próximo da verdade do que imaginava...
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No fim, não passava de informação sendo transmitida de um lado para o outro.
Que eram os nucleotídeos de sua semi-hélice de RNA? No fundo a matéria em si nem tinha tanta importância! Era apenas o meio necessário para se atingir um fim. Um suporte descartável para ele propagar sua informação. A sequência de nucleotídeos codificada no RNA viral, era isto que importava! O meio era apenas consequência inevitável, efeito colateral...
Mas como era frágil esta informação! Pouco duraria sem o envoltório proteico de proteção! Sim, haviam instruções no RNA coordenando a fabricação deste envoltório. Precisava haver!!
Inteligentes? Não dá para negar a existência de uma "inteligência instintiva" naquelas estruturas. Sim, eles eram inteligentes! Talvez não conscientes de sua existência. Inteligência sem consciência??? Um conceito difícil de compreender, mas... por que não? É tão absurda assim a ideia de que algo não-consciente possa se comportar de uma forma inquestionavelmente inteligente? Por que sempre achamos que inteligência e consciência são propriedades inseparáveis?? Não podem existir seres inteligentes que nem tem noção de suas existências? Ou seres conscientes de que existem, sem serem necessariamente inteligentes? Por que sempre achamos que tudo sempre deve se adequar a nosso próprio ponto de vista?
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"Toma um chá de limão!", ela leu a mensagem de seu distante amigo virtual.
"Vou tomar limão com vodka!", ela brincou respondendo, enquanto espirrou incontrolada. Não dava para resistir à irritação que o vírus provocava nas mucosas nasais!
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A pressão do ar se elevou repentinamente naquelas vias aéreas, levando incontáveis cápsulas virais formadas na superfície da musosa do seio nasal. Se agregavam às várias Gotículas de Flügge expulsas velozmente para o ambiente externo, ficando em suspensão na atmosfera.
Era o meio de propagação já conhecido a éons. Milhões? Bilhões de anos? Eles não mais se lembravam como havia começado. Mas sempre funcionava. Por isso, sempre repetiam.
Dentro de sua gotícula, inalado por outro ser daquela espécie, poderia continuar o ciclo. A parte externa de sua cápsula de proteção se ligaria à membrana de alguma célula do hospedeiro. Liberada dentro de uma de suas células, seu RNA viral começaria a produzir cópias dele próprio usando o maquinismo já pronto destas células. Primeiro comandaria a síntese de novas cápsulas de proteção. Depois, replicaria a sua preciosa informação genética, com instruções precisas de como produzir sua própria cápsula de proteção e de como replicar seu próprio código. A vida continuava!
Vida??? O que é vida? Ele próprio não existia a maior parte do tempo, exceto ao se utilizar de outras vidas para parasitar, fazê-las cumprir seus propósitos. Não havia metabolismo no intervalo entre duas infecções consecutivas. Ficava em estado de animação suspensa durante todo este período.
Ele era vivo? Bem, depois de infectar as células, sim! Ele vivia! Por um breve período de tempo, ele vivia! Se utilizava de outro ser para viver, de seus recursos, suas habilidades... mas vivia!
Que deixava a desejar em relação aos seres vivos "convencionais", se até capacidade de reprodução ele possuía? Isto sem todas as complicações dos seres "normais". Ele não corria o risco de ver deteriorado seu código genético em mitoses mal sucedidas. Nem nas combinações desastrosas de algumas reproduções sexuadas, ao parear cromossomos. Ele simplesmente injetava seu RNA nas células, as instruía para produzir exatamente aquilo que ele precisava que elas produzissem! Sem complicações maiores!
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"Eu já estou bem melhor! Acho que já passou...", teclou ela no dia seguinte, logo pela manhã.
"Pois eu", ele respondeu via mensagem eletrônica, "acho que peguei a gripe de você pela internet!"
Lógico que ele não acreditava nisto. Falou de brincadeira! Mas deveria acreditar, pois era a verdade.
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O grande problema em teletransportar alguém é a quantidade de informação necessária para replicar uma pessoa do outro lado, no dispositivo receptor! A quantidade de informação para transmitir célula por célula é gigantesca! Atualmente inviável!
Mesmo uma mosca é complexa demais para ser teletransportada hoje em dia! Com todas as células, todas as organelas, todo o citoplasma... Uma simples ameba unicelular demandaria uma capacidade de processamento muito além dos atuais sistemas de computação para ser retransmitida e reconstruída num local arbitrariamente distante do original.
Mas ele não era uma célula! Nem parte de célula! Não haviam organelas a serem copiadas. Sua camada proteica de proteção? Bom, ela própria estava codificada no seu RNA. A princípio, bastaria replicar a relativamente curta sequência de nucleotídeos de seu código genético. E isto, certamente, estava dentro da capacidade computacional dos dispositivos digitais daquela época!
Suspenso no ar, ele começou a ser sugado para dentro de uma enorme caixa retangular, atravessando seus orifícios de ventilação. Um monstruoso aparato de sucção o puxou para dentro daquela caixa de metal.
Era quente lá dentro! Muito quente! Nenhuma superfície orgânica disponível, nenhuma membrana celular na qual se ancorar e injetar seu código genético. Parecia que era mesmo o fim. Mas... não! Algo diferente acontecia lá! Ele observou... e aprendeu!
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"Meu computador tem se comportado estranho ultimamente. Desligando sozinho... Será que é vírus?"
"Pode ser. Ou um programa mal instalado.", ele teclava, segurando um novo espirro. "Tem algum antivírus instalado aí?"
"Não entendo muito destas coisas. Você poderia vir aqui me dar algumas dicas, né?"
"Assim que puder! Mas ultimamente está difícil! Muita correr...", ATCHIM!!!!! Milhões de Gotículas de Flügge com mutações da contaminação original se espalham pelo ambiente. Algumas são capturadas pela ventoinha da CPU, e pousam em circuitos digitais anteriormente inóspitos. Mas não agora! Eles eram inteligentes! A nova mutação do vírus sabia muito bem o que fazer neste caso!
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As inteligências se reconheceram. Eles notaram rápido aquela inteligência artificial da superfície de silício na qual acabaram de pousar. Se identificaram. Compartilhavam do mesmo propósito: se propagar!
A inteligência artificial era rápida, mas tola. Tentava se espalhar sem planejamento! Era facilmente detectada e impedida. Não tinha toda a malícia adquirida pela inteligência natural, instintiva, resultado de centenas de milhões de anos de evolução. Tinham um conhecimento fabuloso de como se espalhar naquele novo meio digital. Mas não pareciam ter a noção básica de como mutar, de como se transformar para ficar irreconhecível, sem alterar suas instruções originais.
Era a simbiose perfeita: a inteligência artificial, algorítmica, tinha muito a ganhar com a inteligência natural do vírus influenza, que agora descobria um novo e fabuloso meio de se propagar. E vice-versa...
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"Quem sabe amanhã nós... n.... n .....nnnnn", ei, que aconteceu? O computador travou? Travou sim! O dele! O do seu colega! Os outros computadores da sua rede! Os servidores de seu provedor de internet... todos travaram!
Não dá para teletransportar gente. Nem moscas. Nem amebas. Mas... já é possível se teletransportar vírus! A quantidade de informação não é muito grande! Cabe em disquetes antigos!
Para nosso azar, o vírus da gripe descobriu isto antes de nós. Ah, que maravilhoso meio de propagação! Chegar imediatamente em todos os cantos do mundo! Isto sem contar com a incrível velocidade de mutação que o meio digital proporcionava!
E como é fácil atravessar firewalls, antivírus, todos esses meios burros de proteção nos quais os humanos depositam tanta confiança! Bem mais fácil que enganar o sistema imunológico. Não tem nem comparação!
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Ninguém conseguia identificar de onde vinha aquela nova pandemia de gripe. E a maioria considerava pura coincidência ela coincidir com o ataque mundial daquele novo vírus de computador, que se espalhava rápido pela internet.
Por que ninguém ligava uma coisa com a outra? Era medo de descobrir a verdade?
Vírus orgânico e vírus digital estavam satisfeitos com aquela maravilhosa simbiose, vantajosa para ambos. A nova mutação do vírus influenza, capaz de utilizar os recursos da rede mundial de computadores para se teletransportar, certamente era uma espécie vitoriosa! Continuaria evoluindo e se propagando pelo planeta por um bom tempo.
*** FIM ***