Amor materno

AMOR MATERNO


Miguel Carqueija


“O amor é a força renovadora da vida.” (Frei Anselmo Fracasso OFM – Gotas de vida) (Ed. Vozes, Petrópolis, 1982)

“Gestos de ternura despertam sentimentos de alegria nos corações dominados pela tristeza.” (idem)



Num distante futuro, a humanidade busca aos poucos recuperar o que perdeu em séculos de guerras desastrosas, desastres ecológicos e perda gradual da água potável. Num mundo asseado e traumatizado, de população humana drasticamente reduzida, ainda existe uma força misteriosa que afasta as pessoas do desespero.
Helena Vercillo é uma mulher solitária e triste. Aos 35 anos é uma morena bonita, de elevada estatura, pele azeitonada, grandes olhos azuis e espessas sobrancelhas negras. Ela é professora de Português e Matemática e em sua cidade – uma das Novas Cidades, planejadas geometricamente – era uma moça de boa reputação e estimada pelos amigos.
Naquele sábado, 15 de maio, ela deixou seu carro azul-marinho no pátio de estacionamento do Colégio Santo Agostinho, onde se desenrola um baile. Ao saltar ela não tem a intenção de demorar. Veste um costume azul-escuro, com um discreto chapéu e sapatos pretos, uma tiracolo marrom-escuro, nada semelhante a um traje de festa.
Silenciosamente ela se dirige ao salão de festas, situado no andar térreo. Ao fazê-lo caminha por um pequeno bosque, um trecho escuro àquela hora. Então, junto a uma mangueira, ela enxerga um casal beijando-se e apertando-se com ardor. Normalmente não fica olhando essas cenas, mas qualquer coisa atrai o seu olhar...
- Vicente!
O casal se assusta e se separa. O rapaz, longilíneo e narigudo, contrasta com a ruiva esbelta e decotada, de salto alto.
- O que faz você aqui? – diz ele. – Não foi ao enterro?
- O que isso importa agora? Como você se atreve a beijar outra mulher?



- Olhe aqui, boneca. Já que você viu, não tem jeito. Mas você acha mesmo que eu ia me contentar com a sua caretice? Você não quer gozar a vida, quer é fisgar um marido!
- Você é um professor como eu – ela endureceu o olhar, sentindo a cólera aumentar. – Imaginei que tivesse nível...
A ruiva interrompeu:
- Pare! Não quero saber de escândalos. Você não serve para o Vicente, minha querida. Não está vendo que não tem classe para ele?
- Classe! Uma sirigaita como você falando em classe?
A mulher tentou avançar em Helena, mas Vicente a conteve.
- Espere, Gilda! Deixa comigo!
- Resolve logo isso!
- Sim, porque já estamos começando a chamar atenção. Quem mentiu para quem, Helena? Você faltou ao compromisso, com o pretexto do enterro da tia, e veio dar uma incerta?
- Tia Carmen morreu de repente em São Lourenço, eu tive que ir e deixei recado. Estou passando aqui não é para participar da festa, que eu estou de luto. Passei para dar uma satisfação às pessoas que me aguardavam, não estou nem vestida para a festa!
- Então, fim de papo. Vá fazer o que tem que fazer e não nos aborreça!
- Canalha! – desabafou ela.
Vicente deu-lhe uma bofetada.
Helena levou a mão à face, estupefata, enquanto a ruiva aplaudia.
- Agora suma! Mulher nenhuma me insulta!
- Deus o castigará – disse ela, e se afastou rapidamente. Sabia que algumas pessoas tinham visto a cena.
Chegou à varanda e penetrou no salão de baile, iluminado por aranhas que lembravam outras épocas mais românticas, épocas, pensou Helena, em que as pessoas tinham mais afeição natural umas pelas outras.
Aos poucos foi se acalmando, enquanto se dirigia a algumas pessoas e explicava que só estava de passagem.
Quando já se movia para ir embora, incomodada pelo ambiente feérico, que contrastava com o seu estado de espírito, e com a terrível decepção que sofrera, alguém subitamente tocou-lhe o braço. Ela se virou, deparando com uma amiga:
- Oi, Carla.
- Pensei que você não viria – e Carla beijou-a.
Helena explicou-lhe porque já estava de saída, omitindo porém o incidente do bosque.



- Mas eu trouxe uma coisa para te mostrar, Helena. Tá com muita pressa?
- Bem, não... se é importante, me mostra.
- Vamos lá no guarda-volumes.
Atravessaram algumas portas e, na recepção, Carla mostrou seu protocolo ao moço que estava de plantão. Este passou a bolsa de Carla. A jovem professora de Geografia puxou Helena pelo braço:
- Vamos lá na varanda mais próxima, sentar um pouco.
- Você está me deixando curiosa!
- Mas é algo que você vai achar interessante!
Sentaram num dos bancos de madeira envernizada e Carla abriu a bolsa, retirando uma apostila, que passou à amiga.
Helena pegou e leu na capa: Experiência inédita com menina gênio. E havia uma foto colorida, mostrando uma adolescente morena e simpática, com rosto de meia-lua, olhar doce e expressivo. Uma imagem que impressionou muito Helena.
Ela virou a página e pôs-se a ler a reportagem:
“Sheila Darin é uma garota atraente, de treze anos, morena de grandes olhos castanhos, natural de Organsim. Entretanto, há nela algo de extraordinário: órfã de pai e mãe, sem parentes vivos, preferiu morar sozinha a ir para um orfanato. Beneficiando-se do Estatuto dos Superdotados, que garante privilégios a estudantes de Q.I. elevado, Sheila, que há anos estuda em colégios especiais, requereu e obteve licença para realizar, como experimento científico, a aventura de morar sozinha numa casa de montanha, onde registrará tudo o que considerar importante para futuros estudos.”
Helena olhou para Carla:
- Por que está me mostrando isso? Eu não sou especialista em superdotados.
- Mas essa menina foi sua aluna!
- O que? Quando?
- Quando ela tinha oito anos... eu tive essa surpresa ao ler o relatório. Ela estudou por três meses na turma 112 desta escola, e você era regente na época! Veja que coisa interessante!
- Tão pouco tempo... eu não me lembro dela!
- Você tem boa memória. Se puxar por ela, haverá de lembrar.
- E porque ela ficou tão pouco tempo?
- Porque os pais obtiveram vaga num estabelecimento de alunos especiais em Espiral e ela se foi. Mas há um ano ela perdeu os pais, vítimas de doenças graves, em rápido intervalo, e se recusou a ir para um orfanato. Ela é um caso extraordinário, não acha?




Nesse momento qualquer coisa explodiu no mundo interior de Helena. Presa de súbita excitação, ela folheou rapidamente a apostila, observando as fotos, lendo alguns trechos rápidos, e recordando-se... vagamente, ainda.
A menina mais doce que ela já havia conhecido.
“Passou pela minha vida como um relâmpago... ou um raio de luz... e seguiu o seu caminho.”
- Helena, o que você tem? Parece estar em transe...
Ela se levantou.
- Carla, me empresta essa apostila!
- O que? Eu ainda nem li tudo!
- Onde você arranjou isso?
- Ora, no banco de dados, é claro! Quer que lhe arranje uma cópia semana que vem?
- Não, não! Eu quero essa! Ou a gente tira uma cópia agora mesmo! Vamos lá na biblioteca!
Carla fitou-a com espanto:
- É tão importante assim?
- Quem sabe?
E Helena sorriu tristemente.


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Em sua cama, ela lia e lia... cada página, cada vez mais fascinada.

“É uma menina muito simples, apesar do seu Q.I. de 250. Gosta de roupas simples, informais, de natureza e de bichos. Adora torta de banana, a sua sobremesa preferida.”

Helena procurou e achou o telefone de Marta Maciel, a autora da reportagem, estagiária do Departamento de Jornalismo do Colégio Santo Agostinho. Isso facilitava muito as coisas e no dia seguinte, cedinho, já conseguiu falar com ela pessoalmente, num apartamento do centro.
- Não entendo o seu interesse, Helena. Você lembra tão bem assim da Sheila?
- Lembro muito bem dela, sim – mentiu Helena. – Eu quero muito vê-la e incentivá-la. Estou muito orgulhosa dela.





- Está bem. Não é difícil chegar lá, embora seja longe. Acho que a menina vai gostar de rever sua ex-professora.
“Se ela soubesse o quanto estou blefando... mas como ela poderia compreender?”
- Você vai ter que subir a serra pela BR-120, e desvia para a direita numa estrada secundária, no km 46. Você vai subir bastante, ultrapassar uma granja de ovos, e numa esplanada, numa região linda, vai chegar numa casa cor-de-rosa que é o centro de pesquisas onde atualmente mora esta menina de ouro... e onde antes dela estiveram biólogos, astrônomos, e outros estudantes aproveitando suas bolsas.
Helena pediu algumas explicações, tomou anotações taquigráficas e, quando teve a certeza de haver compreendido plenamente, agradeceu à sua anfitriã e se despediu.
- Você me ajudou muito, muito mesmo... não sabe o quanto eu lhe sou grata.
- Ora, o que é isso, foi um prazer. Dê lembranças à Sheila.


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Helena ainda passou na missa matutina, tomou algumas providências em casa e fez um almoço frugal, sem entusiasmo, pois estava apressadíssima. Finalmente pegou seu Macedônia azul e partiu. No caminho passou em uma confeitaria de bom aspecto e dirigiu-se a um dos atendentes:
- Me vê uma torta de banana, por favor... bem bonita.


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Helena levou quase uma hora para chegar finalmente no local indicado, atravessando uma região paradisíaca, inundada de flores perfumadas, de açafrões, papoulas, orquídeas e jasmins, de árvores deslumbrantes. O coração de Helena batia forte quando estacionou o carro em frente à casa rosa. Não haviam outras construções à vista, nos últimos quilômetros. A casa era isolada mesmo, mas cercada por grades. Helena saltou e constatou admirada que o portão nas estava trancado e não havia campainha. Ela então abriu o portão e entrou com o automóvel, estacionando-o no pátio, espantando alguns pássaros. Aí ela saltou do carro e dirigiu-se à porta de entrada, protegida por um alpendre. A professora trajava calças azuis,




mocassins da mesma cor – ela apreciava o azul – e uma blusa quadriculada, sóbria, além de trazer sua mochila a tiracolo.
Tocou a campainha e aguardou, excitada. Mas após cinco minutos de repetidos toques, ninguém veio atender.
“O que estará havendo? Será possível que ela tenha se ausentado?”
Num impulso do coração ela moveu a maçaneta e constatou, espantada, que a porta estava aberta.
“O que faço?”
Ela entrou. Havia uma sala de estar, mobiliada com bom gosto, de onde Helena passou para outros aposentos: o escritório, os quartos (haviam três), a copa-cozinha. Depois de chegar aos fundos, onde havia uma varanda, ela retornou ao escritório, interessada nas coisas que vislumbrara por lá. Sobre a escrivaninha estavam livros, cadernos e uma espécie de álbum de capa dura. Ela sentou-se e abriu-o: e lá estava um texto em manuscrito, tipo bico-de-pena, sob o título: “Meu Diário do Paraíso – Sheila Darin”.
Cada vez mais fascinada Helena percebeu que era o relatório, em tom de séria pesquisa científica, do dia-a-dia de uma adolescente que vivia e se virava sozinha.
- Quem é você? O que quer aqui?
A voz era doce mas soara enérgica. Helena largou o álbum, ergueu-se e se voltou. Lá estava uma garota alta, morena, com rosto de pudim e covinhas adoráveis; uma menina graciosa, vestida com uma bermuda e uma camiseta claras. Sua chegada fôra silenciosa, pois estava de pés descalços.
Entretanto, parecia zangada. A Helena não passou despercebido que, apesar de sua brejeirice, graciosidade e conhecida doçura, Sheila era uma menina alta, de corpo desenvolvido para os seus treze anos, afeita aos esportes, inclusive judô, e à vida ao ar livre. Sem dúvida, uma menina que seria capaz de enfrentar uma mulher adulta.
Mas a última coisa que Helena desejava era uma desavença com a garota. Fôra flagrada em posição esquerda, como invasora. Tinha que consertar o êrro de qualquer maneira e ganhar a confiança da menina.
- Fale. Por que você entrou aqui e estava mexendo nas minhas coisas?
- Você é Sheila Darin – disse afinal Helena.
- Isso você leu no meu diário.
- Não, Sheila, eu já sabia quem era você. Eu sou Helena Vercillo, professora do Colégio Santo Agostinho. Me desculpe, me perdoe. Não queria invadir o seu lar, mas toquei a campainha, ninguém atendeu... e aí resolvi entrar e lhe esperar.
- E veio bisbilhotar em meu escritório. Isso não foi bonito de sua parte.
As fortes emoções das últimas horas começaram a cobrar o seu preço. Helena sentiu que tremia, fraquejava.



- Sheila, por favor... eu não estou me sentindo bem... me permite que eu sente um pouco?
- Ué, claro, sente-se – disse a menina, espantada.
Helena puxou a cadeira, sentou e pôs o rosto entre as mãos, o corpo tremendo. Começou a soluçar, e logo os soluços tornaram-se um chôro convulso. Estupefata, Sheila ajoelhou-se junto a ela, o corpo repousando sobre as pernas e o dorso dos pés, e tocou os seus joelhos.
- Mas o que tem? Por que chora?
Helena aos poucos se acalmou.
- Eu vou contar tudo a você.
E ela contou, resumiu a sua vida. Contou como tinha conhecido Sheila de passagem, cinco anos atrás. Sheila lembrou-se dela, vagamente, e continuou ouvindo. Helena falou como, cedo, perdeu os pais; como seus irmãos moravam longe e não ligavam para ela; e como nunca dera sorte com namorados, e não se casara. Como vários tinham se aproveitado dela, até tomando-lhe dinheiro. E como, meses atrás, se apaixonara por um colega do colégio, como ele a enchera de esperança por ser aparentemente do seu nível... e afinal a cena da festa, que a abalara tanto...
Sheila, que se sentara no chão com os braços envolvendo os joelhos, tinha lágrimas nos olhos:
- Helena... eu acredito em você. Creia, eu tenho um dom... eu percebo quando alguém sofre, e o teu sofrimento é autêntico. Então, como se não bastasse te trair, o miserável ainda ousou te esbofetear? Não se importa que eu o chame assim, não é? Você ainda tem amor por ele?
- Todo o meu amor se transformou em desprezo.
- Não pense mais nele. Ele não te merece. Mas tem uma coisa que eu ainda não entendi. O que te trouxe aqui, Helena? Você foi minha professora um dia, mas nós quase não nos conhecemos. Como você me localizou, e o que espera de mim?
Helena contou o resto da história: a apostila que Carla lhe trouxera, e que a fizera lembrar-se de Sheila.
- Então você soube da minha experiência... mas por que veio, Helena? Alguma coisa te interessou tanto, nas minhas pesquisas?
A moça se levantou, caminhou um pouco pelo aposento e mirou Sheila, que também se havia levantado. Helena então falou aquilo que realmente premeditara:
- Sheila... eu sou uma mulher sozinha e triste. Não tenho mais os meus pais e nem família. Não tenho filhos, não posso tê-los, mas o meu instinto maternal é forte. Tenho várias amigas que fizeram essa experiência de “produção independente”. Acredite, não é uma boa
gerar um bebê, criá-lo, deixar uma criança crescer sem pai. É precário e injusto, e eu jamais faria isso. Então me encontro agora, aos 35 anos, solitária e sem uma perspectiva de melhora, o amor de um homem parece ter-se tornado coisa inacessível
e o meu destino se afigura como o lento envelhecimento na solidão. A vida tudo me negou e, para completar, recebi ontem um golpe terrível. Eu sou sensível, coisas assim me deixam arrasada.
“Descobri que você existe, descobri sua história. E tenho diante de mim uma menina, uma adolescente dona de grandes predicados, super-inteligente, corajosa e empreendedora, amiga da natureza, simples e bondosa como eu sei que você é; mas uma garota solitária, que deve ter uma grande tristeza íntima pela perda dos seus pais, mas que não obstante resolveu enfrentar a vida com os seus próprios meios, afirmar-se num mundo hostil e frio e impiedoso como é a nossa atual civilização. Eu te admiro, Sheila, te admiro muito.
“E nisso tudo eu vim aqui com a decidida intenção de te fazer uma proposta. Sheila, eu preciso ter alguém na minha vida e não haveria ninguém melhor do que você. Eu quero ser a tua mãe, a tua nova mãe. Eu quero que você seja a minha nova filha. Eu tenho para te oferecer o meu amor, todo o amor que eu sou capaz de dar como mãe; o meu apoio entusiasmado a teus empreendimentos; e a minha proteção. Sheila, você me aceita? Quer ser a minha filha?
Helena calou-se. Falara muito e falara tudo; e tinha medo de dizer mais alguma coisa. Agora tudo dependia de Sheila. Por quase um minuto elas ficaram silenciosas, olhando-se mutuamente. Helena mirava com a expressão triste e humilde; Sheila, boquiaberta, parecia não saber o que dizer.
Finalmente Sheila quebrou o silêncio:
- Fala sério?
- É claro que é sério – observou Helena, pela primeira vez sorrindo. – Eu até te trouxe um presente!
Sheila então também sorriu pela primeira vez:
- Um... um presente, você disse?
- Sim, está no meu carro. Você quer ver?
- Mas claro! Vem, vamos até lá pegar esse presente!
Ela deu um pulinho, segurou o braço de Helena e a foi conduzindo para fora. Caminharam de braço dado até o Macedônia azul; Helena abriu a porta de trás e puxou o volume embalado em papel de presente da confeitaria.
- Hum! É coisa de comer! – disse a menina, animada.
Helena fechou o carro e Sheila seguiu na frente, carregando o volume, mas parou para que a professora abrisse a porta da casa. Sheila esfregou os pés no capacho, entrou e dirigiu-se a passo rápido para a copa-cozinha, onde depositou o objeto sobre uma mesa enfeitada por uma linda toalha com magnólias e rododendros.
- Posso abrir? – perguntou, olhando a outra com olhos espectantes.
- Pode, é seu presente!
Sheila desatou os laços, descolou as fitas adesivas e desembrulhou o papel. E dentro da forma e dos suportes de papelão, lá estava...
- Uma torta de banana, e linda! Você é um anjo! Como sabia que eu gosto de torta de banana?
- Está na apostila... que eu ainda nem te mostrei.
- Deveras?
- Se eu puder te fazer feliz, esta será a minha felicidade. A razão de ser da minha vida...
- Está bem, querida Helena. Então vamos ser felizes juntas: vamos sentar e comer um pouco da torta. A gente lava as mãos, e eu preparo um refresco para acompanhar. Gosta de uva?
- Adoro – respondeu Helena, sorrindo.
- Então vamos comer torta de banana e tomar refresco de uva!



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Conversaram animadamente enquanto comiam. Sheila explicou como conseguia sobreviver naquele isolamento:
- Sou abastecida pela granja. Além disso tenho um telefone que você deve ter visto. Numa emergência eu posso me comunicar com a Alcina, minha coordenadora. Ela me liga muito pouco, pois foi o combinado: eu estou aqui por minha conta e risco.
- E quanto tempo você vai permanecer aqui?
- Mais dois meses, quase. Depois volto para o meu apartamento. Me diga, Helena, você gosta de cachorros?
- Gosto muito – respondeu Helena, espantada com a mudança de assunto. – Mas não tenho nenhum, sou sozinha e acho que não cuidaria bem dele.
- É por isso que eu também não tenho nenhum. Mas eu alimento os pássaros que vivem por aqui e até os esquilos.
- Você é muito singela.
- Obrigada – disse Sheila, sorrindo um sorriso lindo.
Elas terminaram o lanche, lavaram juntas a louça e Sheila guardou o resto da torta na geladeira. Então, não agüentando mais, Helena chamou-a:
- Sheila...
- Sim?
Estavam uma em frente à outra, ainda na copa.
- Sheila, você ainda não me deu uma resposta clara à pergunta que eu fiz. Você aceita ser minha filha?
A menina abriu um largo sorriso e mostrou um olhar luminoso; e se atirou nos braços da jovem professora.
- Mamãe! – murmurou, apertando Helena.
- Minha filha!
Por vários segundos elas se estreitaram fortemente. Aí a garota ergueu o olhar radiante para Helena e falou entusiasmada:
- Vamos combinar uma coisa. Eu vou te chamar de mãe, de mamãe e de maezinha. Mas você vai ser minha nova mãe, mas também uma grande amiga, uma irmã. Não sendo minha mãe biológica, você será a minha mãe pelo coração. Por isso eu te chamarei de Helena. Te chamarei pelo nome, muitas, muitas vezes, mas também te chamarei de mãe de vez em quando. Tá bom assim?
A fisionomia de Helena também estava radiante:
- Querida, eu acho ótimo. Faz assim. Me chama de Helena e quando te der na veneta, me chama de mãe. Eu vou adorar tudo.
- Sim. E mamãe, e maezinha...
A pequena afastou o rosto, que comprimira no seio de Helena, e prosseguiu:
- Tem uma coisa, mamãe. Agora que estamos juntas lembra que os homens são maravilhosos, mas alguns são perigosos e aproveitadores. Tem cuidado com eles. E esse Vicente... não sei onde estou que não o procuro para devolver a bofetada que ele te deu.
- Meu amor, a nossa religião é a do perdão. Eu já perdoei o Vicente, esquece isso. Eu até devo voltar a falar com ele de vez em quando, por razões de serviço... já que trabalhamos no mesmo colégio. Mas só isso, eu não quero mais nada com ele.
- Tá bem. Eu relevo o passado, mas daqui para a frente, se ele voltar a te incomodar, vai se haver comigo.
Helena riu.
- Eu tenho mais um motivo para não me importar com o que me fizeram no passado, mesmo que tenha sido ontem: é que a minha vida está recomeçando agora, do zero. Graças a você.
- Maezinha, quantos dias pode ficar aqui comigo?
- Você pode me hospedar? Não vai prejudicar o seu trabalho?
- Ah, não. Eu enquadro você. Minha monografia é para demonstrar a possibilidade de uma menina da minha idade ser auto-suficiente, e isso inclui receber uma hóspede por conta própria.
- Então eu posso ficar aqui até quinta-feira... meus dias de luto... depois tenho que voltar ao ritmo da minha vida.
- E você vai me adotar legalmente?
- A primeira coisa que eu vou fazer quando chegar em casa vai ser ligar para o meu advogado e começar com a tramitação do processo de adoção. Vou te perfilhar, ou não me chamo mais Helena.
Sheila tornou a abraçá-la e a beijá-la:
- Venha, Helena. Vamos descarregar as tuas coisas e eu vou preparar o teu quarto.


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Nos dias que se seguiram elas se divertiram à grande, dentro e fora de casa, principalmente ao ar livre. Contagiada pela informalidade de Sheila, Helena passava os dias de short e descalça. As duas jogavam bola, brincavam de pique e de esconde-esconde, tomavam banho de cachoeira, corriam na chuva. Sheila chegou a amarrar Helena numa árvore para fazer ao seu redor uma dança guerreira, de índia pele-vermelha, com direito a gritinhos. Helena achou que nunca havia se divertido tanto na vida.
Mas a estudante não se esquecia de estar realizando um trabalho científico. Havia horas em que precisava de privacidade em seu gabinete, para escrever, digitar, falar ao ditafone, cotejar suas experiências. Com ajuda de Helena subiu ao telhado e consertou goteiras; e esse dado foi lançado no relatório.
Quando Sheila se fechava no escritório a hóspede aproveitava por sua vez para ler os livros que trouxera, como um volume das “Memórias de um médico” de Alexandre Dumas, Pai. Ou redigia o seu diário, ou via alguma coisa na televisão que, por sinal, não pegava bem naquela serra.
Na véspera da partida de Helena, numa tarde ensolarada, deitaram-se as duas na grama, numa área de sombra, para conversar.
- Vai ser uma boa vida – comentou a menina-gênio – morar com uma mãe jovem, bonita e legal como você.
- E para mim vai ser maravilhoso ter uma filha meiga, inteligente e encantadora como você.
- Bem, em vez de ficar rasgando seda, maezinha, vamos pensar no nosso cachorro. Vamos ter um, não vamos?
- Sem dúvida que vamos – disse Helena, alisando a grama com os dedos dos pés. – Que raça você prefere?
- Uma dessas bem amáveis... collie, dálmata, basset...
- Vamos escolher um bem especial. Ou uma fêmea...
- Vai combinar com a gente – e Sheila, sorrindo, ajeitou os longos cabelos. – Daqui a pouco vai aparecer a Lua, Helena... é Lua cheia...
- A Lua cheia aqui deve ser linda...
- É, sim, é linda. Mas sabe em que eu estou pensando? Na base lunar, nos seres humanos que estão por lá, na ocupação permanente do satélite...
- Eu admiro os nossos colonizadores. A Lua não tem verdadeira atmosfera e a sua gravidade é um sexto da terrestre. Por isso é tão difícil viver nela.
- Eu fico imaginando os riscos que correm esses homens e essas mulheres. Para terramorfizar um planeta como a Lua, não tem dinheiro que chegue. A Base Carl Sagan tem que ser protegida por uma cúpula hermética. Isso é só uma parte do problema, pois é preciso evitar que o calor e o ar se escapem pelo solo... até pelos alicerces da cúpula...
- Helena, eu quero um dia ser uma lunauta...
- Você, Sheila?
- Eu quero, sim... sempre quis... depois que eu entrasse na universidade... que eu vou entrar precocemente, ano que vem...
- Você?
- Sim, Helena. O Estatuto dos Superdotados e esta monografia vão me ajudar. Com quatorze anos estarei na faculdade...
- Isso é deslumbrante.
- Aí a minha idéia é passar uma temporada na Lua, participar das expedições selenográficas... eu quero muito explorar crateras como Lineu...
- Eu me orgulharia muito.
- Mas agora a situação mudou. Eu não quero me separar de você, só iria se você fosse.
- Não sei se eu teria coragem... mas se é para o seu futuro, poderíamos nos separar alguns meses...
- Bom, é cedo para pensar nisso. É só uma idéia, sabe, não me decidi ainda.
- Já tem cinco mil pessoas morando na Lua...
- Helena, quando estudo História fico admirada... como se explorava o universo nos séculos XX e XXI... e como agora nos limitamos à Lua, num esforço de todas as nações... antigamente mandavam sondas para os confins do Sistema Solar... e até além...
- Gastaram-se muitos recursos, mas não se colonizou a Lua. Foi uma coisa decepcionante...
- E tudo se perdeu...
- Quando veio o degelo, e quando os litorais começaram a ser destruídos... a partir do maremoto de dezembro de 2014... e quando começaram as Guerras da Água... foi a Regressão. Por isso agora o consenso é penetrar no espaço... passo a passo. Por isso o esforço para estabelecer uma civilização na Lua, que vai ser o nosso degrau para as estrelas.
- O mundo mudou tanto...
- Por um lado melhoramos. Há dois séculos seria uma loucura uma mocinha como você morar sozinha num local ermo como esse. Havia tarados e criminosos em grande número, a sociedade era dominada pelo crime organizado.
- Mas agora, mamãe, a humanidade ficou esquisita...
- A humanidade atual sofre de afilia, a perda da afeição natural. Entre pais e filhos, irmãos, esposos...
- Nós somos um caso raro.
- Somos, sim. Falta amor. As pessoas tornaram-se frias em sua maioria e até têm vergonha de mostrar carinho e afeição umas pelas outras. Os filhos são entregues à televisão e os casais se suportam... é assustador.
- Mas ainda existe amor...
- Existe, sim. Sempre haverá quem ame. E nós, graças a Deus, estamos nesse número.


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No dia seguinte, depois de um telefonema da coordenadora, as duas começaram os preparativos para a despedida. Ainda almoçaram juntas e depois, no quarto de Helena, tiveram uma última conversa importante, como era de seu hábito, uma em frente à outra, segurando-se mutuamente pelos braços.
- Quando você terminar o período eu venho te buscar, não esquece, Sheila.
- Eu sei. Vou ter que ficar no meu apartamento, eu te falei... até fazer a mudança. Você vai ter que ir lá... calcular quais os meus móveis que caberão na tua casa...
- Já resolveu sobre o apartamento/
- Pensei em vendê-lo...
- Eu não faria isso. Se eu fosse você não abriria mão do patrimônio que os teus pais te deixaram. Você aluga e o dinheiro vai para uma conta em seu nome. É um dinheiro que será seu, Sheila.
- Você me orienta e a gente faz isso.
- Eu irei te visitar.
- Vem sim, Helena, vou sentir muito a tua falta. Me liga todo dia!
- E quem sabe um dia... estaremos juntas na Lua?
- Maezinha, eu quero falar com você uma coisa muito delicada.
- Ah, sim? Pois fale sem receio.
- Você e eu vamos querer namorar um dia. Você já namorou várias vezes, eu nunca. Na verdade eu nem penso nisso ainda... sou muito jovem, muita garota da minha idade namora, mas eu estou empenhada numa experiência científica e nos meus estudos... Sei de outras garotas até mais velhas que renunciam temporariamente à vida sentimental porque necessitam dedicar-se inteiramente a estudos ou treinos. É o caso das ginastas, por exemplo.
“Mas um dia eu irei namorar, quero casar e ter filhos. E você, poderá estar namorando mais depressa ainda.
“E aí eu penso, minha mãe: e quando isso começar a acontecer. Poderá um homem nos separar? Vamos continuar tão unidas como somos agora? Eu agora tenho medo... que um dia a nossa felicidade seja perturbada.
- Meu amor... compreenda, uma família não é só duas pessoas. A família cresce como uma planta, e deve ser bem adubada... uma família bem ajustada é um ninho de felicidade e amor.
- Sim, e se dermos azar? Se surgir um homem na sua vida... ou um garoto na minha... que venha trazer a cizânia e nos separar?
- Meu amor, não podemos deixar de viver por temor... temos de confiar em nosso discernimento e aguardar os acontecimentos. Você tem muito amor no coração? Quer dizer, amor para dedicar a um rapaz?
- Nem queira saber, Helena. Eu sou super-romântica. Já li tantos livros de amor, já vi tantos filmes... eu sonho com um garoto meigo... nem precisa ser muito forte, eu até quero protegê-lo... mas eu quero amar um dia.
- Então não pense que os homens, quando aportarem em nossas vidas, venham para nos dividir... seja otimista. E mesmo que problemas venham a acontecer... pense bem, meu anjo: por que pensar nisso hoje? Por que pensar nisso agora?
E elas tornaram a se estreitar num forte amplexo.


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E Helena partiu. Cumpriu porém integralmente a sua promessa. Mesmo discutindo com seu advogado, que não queria entender a iniciativa, ela foi avante. Visitou Sheila quase todo o fim-de-semana e quando a menina enfim terminou o período ela a buscou, e a primeira audiência já estava marcada. O juiz achou a situação tão satisfatória que autorizou, em caráter provisório, que Sheila se mudasse para a casa de Helena.
Em 16 de agosto, uma segunda-feira, exatamente três meses após se reencontrarem, a mudança foi feita e elas passaram a morar juntas. E acolheram uma cadela dálmata, a Pintada.
A adoção foi legalizada em 15 de setembro.
A história de Helena e Sheila não acaba aqui. Para elas, o mundo e a vida agora são uma grande aventura que está apenas começando...

(imagem do google)


"Farei meu destino", de Miguel Carqueija (Giz Editorial) é uma fantasia mística contando a história da "deusa da Lua" (Diana) da mitologia greco-romana.
"Nas garras do futuro", do mesmo autor (Agbook), é uma coletânea de contos de ficção científica de "mundo decadente".























 
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 04/06/2013
Reeditado em 31/12/2013
Código do texto: T4324788
Classificação de conteúdo: seguro
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