FANTASMA DO PASSADO

Fantasma do passado.

De novo à vontade no espaço, como um peixe devolvido ao mar, Alan Claude suspirou aliviado após estabelecer o rumo e desligar os propulsores para navegar por inércia. No silêncio da nave ouvia-se apenas o abafado murmúrio do purificador de ar e o borbulhar do purificador de água. Ao abandonar Ceres, sentiu um grande alívio mental e compaixão pelos que ficaram naquele ambiente pesado.

Tremia ao pensar no que teria acontecido de ter caído na armadilha de Zvar. Agora estaria morto e o maléfico ser estaria sentado no seu lugar nos controles da nave.

–Será que ainda voltarei aquele lugar de horror?– disse para si mesmo.

Os dias sucederam-se com calma. Alan comia, bebia, dormia, tomava banho, exercitava-se esticando cabos de aço e dobrando barras de ferro no porão das bombas.

Desmontava suas armas, limpava, engraxava, testava os canhões da nave, revisava os motores, cuidava de tudo com zelo semelhante ao de um cavaleiro pelo seu cavalo.

–Será que ainda há cavalos na Terra?

*******.

Atravessando a órbita de Marte em 18 de abril; o alarme de proximidade o acordou no período de descanso. Levantou-se, calçou luvas e capacete e pulou na cabine. O radar acusava uma nave á frente, que o sistema identificou como a mercante Patagônia, gêmea da Arachânia, de triste memória. Rapidamente, ligou os sistemas de alerta e abriu o canal de saudação e ouviu:

–S.O.S. Patagônia!

–Patagônia...! Que ocorre?

Por resposta escutou estática. Alan insistiu na chamada até que por fim:

–Estamos sendo atacados por piratas nas coordenadas 78-56-45/1956-A...!

–Ouvi, Patagônia!

Acelerando ao máximo, o coronel chegou a tempo de ver os caças piratas voando ao redor do luxuoso navio como abelhas, enquanto uma belonave da classe Skywar-U encostava ao lado um tubo sanfona de abordagem e começava a perfurar a eclusa para dar passo ao bando de piratas.

–Piratas terrestres...! Os caças parecem M-2020...! Troianos?

Como um aríete a AR-l atravessou a barragem de inimigos, destroçando-os com o escudo e freando junto da nave maior. Uma rajada de laser destruiu o tubo sanfona de abordagem, matando quantos aí estavam. Recuou e concentrou o fogo na ponte da Skywar-U até destruí-la. Sem controle, esta se afastou da Patagônia, á deriva. Alan deu atenção aos caças. Alguns recuaram a socorrer a Skywar-U, enquanto outros enfrentavam a AR-l. O gladiador do espaço não se fez de rogar.

*******.

Os caças M-2020 fabricados em Germânia-III não eram rivais para a patrulheira. Em meio minuto desaparecia o último inimigo num clarão. Alan acelerou e alcançou a Skywar-U. Alguns caças tentavam desesperados transbordar sobreviventes. Alan pôs o dedo no gatilho dos torpedos e o retirou. O xawarek dentro dele dizia que não era honrado atirar neles. Mas esses piratas não mereciam viver. Por fim a razão e o treinamento venceram...

Apertou o gatilho.

*******.

A eclusa fechou-se atrás da patrulheira AR-1. Zuniram válvulas, assobiaram extratores e a atmosfera se fez. O painel abriu-se e entrou o capitão com alguns oficiais e passageiros, que esperaram até o providencial salvador pisar o chão.

No meio de aplausos, Alan desembarcou com seu capacete embaixo do braço e aproximou-se deles, tirando as luvas. As damas foram cativadas por seu porte e o balanço das pistolas.

–Permissão para subir a bordo, capitão.

–Permissão concedida. Bem-vindo a bordo, coronel Sarrazin – disse o capitão civil Lino Duarte, da Lua, estendendo a mão – Só podia ser você!

–Obrigado capitão. Sua nave é muito bonita... E grande.

–E o seguirá sendo graças á você, coronel.

Apertaram-se as mãos. Alan foi rodeado pelos passageiros, que queriam tocar o herói, abraçá-lo, algumas mulheres queriam beijá-lo...

–Obrigado!...– gritavam algumas mais exaltadas.

–Calma, senhoras...! – disse o capitão – o coronel merece uma festa!

–Não, não estou para festas... – disse o gladiador do espaço.

–Ele merece, sim...! – foi o coro geral.

–Por quê estava fora da rota? – perguntou – Marte é mais a esquerda!

–Nos perseguiram – disse o capitão – A Patagônia é veloz, mas não mais do que os torpedos de aviso. Para segurança dos passageiros resolvi me render. Eles só queriam a carga de máquinas e mantimentos para Marte...

–E depois disso matariam todos vocês. A nave é grande y valiosa. A Skywar-U deve ter sobrado da guerra. Talvez ex-combatentes. E deve haver mais por aí.

–Seria bom que você nos escoltasse até Marte.

–Estava indo para lá. Preciso repor munição.

*******.

Até o mais valente guerreiro rende-se perante carne legítima de gado.

–Da granja da Lua, coronel. Iguarias que uma nave de luxo pode oferecer.

–Faz seis anos que só como carne de wok, capitão.

–O que é isso? – perguntou uma passageira.

–Um ruminante que pasta em Marte, Ganímedes, Calisto e Titã – disse o coronel – parecido com o almiscareiro asiático, só que grande como um elefante.

Os passageiros queriam saber mais e Alan não se fez de rogar; falou da carne de wok, do pão de trigo de mim-dar, das omeletes de ovos de hod-do, das saladas de folhas de xil, do chá de akok, dos crustáceos khajs, dos peixes taonianos...

A conversa derivou para roupas e Alan citou a lã de wok, as botas de couro de wok, a seda milkara, as finas peles da raposa das neves das Terras Frias de Titã...

Falou dos velozes asgoths, do ancião Imperador Tao, o Impiedoso, da princesa herdeira Alana, batizada assim na sua homenagem, como supremo patrono da força espacial taoniana, falou do criminoso Suer Dut, da sua captura e execução...

A festa estava animada. As damas; solteiras ou não; competiam para dançar com Alan Claude; agora vestido a rigor, com uniforme de coronel.

Uma bela passageira aproximou-se dele. E ele a reconheceu.

–Norah...! – disse ele num murmúrio.

–Ah...Vocês se conhecem?– disse o capitão.

*******.

Um pouco mais velha; com marcas de sofrimento no bonito rosto, Norah, viúva de Guzmán, ainda despertava segredos torturantes no coração do herói. Seus olhos se encontraram e tudo ao redor perdeu a cor. Voltaram lembranças de felizes momentos quase esquecidos. Alan sentiu um aperto no coração.

Ao ver que sua presença era desnecessária, o capitão Duarte convidou uma dama para dançar. A orquestra atacava “Jó trew uio; a uio gop-des” (Já falta pouco; minha pequena amiga) de Ron Der Vurt, o compositor marciano de moda.

Alheios a todo; o homem e a mulher se falaram sussurrantes:

–Doutora Norah Fernández da Antares...! Estou surpreso!

–Também estou surpresa em lhe ver, Alan. Após tantos anos finalmente viemos nos encontrar de novo. Obrigada por nos salvar.

–Esqueça disso. O que você vai fazer em Marte? Está em missão?

–Não. Deixei a Frota. Estou emigrando. Vou me estabelecer em Nova Chile.

–Deixou a Frota? Mas... Você estava casada. Ou não?

–Meu marido morreu. Você não soube?

–Estou retornando do espaço profundo. Não sei nada do que se passou do lado de cá do cinturão de asteróides nos últimos cinco anos.

–Meu marido era capitão da Arachânia, que foi atacada pelo inimigo, o que colocou Marte na guerra... Estavam perdendo e precisavam...

–Seu marido morreu no ataque?

–Na Prisão Lunar. Foi o bode expiatório. Paguei um advogado caro, vendi a casa de Port Armstrong... A revisão do processo inocentou o Héctor e consegui um mandado de liberdade. Mas quando a ordem chegou às Montanhas Malditas; Héctor já havia morrido num acidente na mina de urânio, onde era trabalhador forçado...

–Lamento. De veras.

–Antártica pagou uma indenização e resolvi emigrar para Marte com os meus filhos. Quero recomeçar. E você? O que fez da sua vida?

–Mais ou menos o que você viu – disse ele, sardônico – Luto, mato e destruo até aparecer alguém mais esperto, mais afortunado ou mais forte do que eu.

–Estava em Júpiter?

–Em Saturno. Aldo e eu lutamos contra os xawareks, os derrotamos, fizemos uma aliança com eles e o Imperador Tao; promovemos a paz; ocupamos todas as luas menores; construímos a Cidadela em Rhea... Enfim; fizemos coisas.

–Está casado? Oportunidade não deve ter faltado. Deve haver mulheres lá...

–Nunca olhei para outra mulher humana, depois que você e eu...

–Entendi... Não são humanas!

–Humanas e humanóides. Amei uma siriana, mas viajou em missão...

–Uma siriana? Como ela é?

–Os sirianos xawareks são felinos humanóides, parecidos com tigres...

–E como você se apaixonou por uma tigresa?

–É uma longa historia, fui treinado pelos tigres; luta com armas e luta corporal.

–E onde ela entra nessa história?

–A fêmea era minha parceira, amiga, colega; e me envolvi com ela porque a derrotei em um combate, de acordo com um milenar código de honra deles...

–Mas ela partiu e você não sabe se ela vai voltar.

–Ela deverá voltar, mas não sei quando.

–Você ainda me ama?

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24 de abril de 2019.

A viagem chegava ao fim. Faltava uma hora para atracar na doca orbital e os passageiros já faziam as malas para desembarcar. No camarote de Norah Fernandes, Alan, ainda na cama, respondeu por fim á aquela pergunta:

–Ainda amo você.

–Aquele dia, na festa, você não respondeu.

–Tive receio de perder a compostura. Não ficaria bem num herói.

–Por quê não fica comigo em Marte?

–Estou em missão.

–E depois?

–Sempre há o que fazer – disse ele levantando-se da cama.

–Esperarei você.

–Não me espere. Não me vejo na mesa do desjejum, de pijama e chinelos, lendo o jornal pelas manhãs. Não sirvo para isso.

–Você disse que ainda me ama...

–Mas você não.

–Mas o que fizemos...

–Sexo não é amor. Está satisfeita, não está?

Norah não respondeu. Alan começou a vestir suas roupas.

–Por quê me rejeita?

–Eu lhe amo á minha maneira, mas somos diferentes. Não sou bom para você. Precisei todos estes anos para entender.

–Podemos recomeçar tudo... Esquecer o que aconteceu há anos...

–Você é bonita, inteligente... Guzmán não merecia morrer. Coitado infeliz!

–A siriana...! Aquela alienígena! Você a ama!

–Sim, mas renunciei. Você não merece sofrer de novo, minha vida é curta.

–Alan, eu preciso de você!

–Sei que precisa, mas eu não sou quem você procura. Busque alguém que lhe dê uma vida tranqüila; eu sei que é isso que quer.

Dito isto; o coronel saiu porta afora pelo corredor.

Havia exorcizado um fantasma.

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Continua em: A VOLTA PARA CASA

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O conto FANTASMA DO PASSADO forma parte integrante da saga inédita Mundos Paralelos ® – Fase 2 - Volume IV, Capítulo 29 Páginas 25 a 28; e cujo inicio pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados, sarracena.blogspot.com

O volume 1 da saga pode ser comprado em:

clubedeautores.com.br/book/127206--Mundos_Paralelos_volume_1

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 02/06/2013
Reeditado em 11/09/2016
Código do texto: T4321708
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