Deuses De Pequenos Deuses.
Seres baseados em carbono sempre foram muito fáceis de serem replicados, inda mais com a popularização, pelos blocos eurasianos, dos rearranjadores moleculares e a disponibilização, via transnet dos mapas genômicos para experimentação curiosa de quem se interessasse pelo assunto!
Aqueles eram dias de liberalismo científico, e qualquer regulação ética era zombada como reacionária!
Por outro lado, era bem discutido se aquelas massas protéicas, que se erguiam dos tanques de solução, com aquele mesmo brilho de familiaridade que estampava o molde, ou lembrança, carregava consigo uma alma, ou era somente um emulador de vida plena, dessas que ainda conservamos artesanal e precariamente, por uns poucos dias!
A despeito desses burburinhos filosóficos, muitos desses “produtos” eram financiados pelo sistema federal de crédito, e chegavam e partiam, de acordo com as necessidades sentimentais de seus relativos aquisidores!
Mas a coisa ficou bem mais interessante quando foram liberadas algumas receitas de célebres, e o populacho começou à substituir a parentela falecida por figuras famosas!
É claro que o comércio padecia do requinte dos processos de oferta e procura, mas logo, com o barateamento que a pirataria biológica das fábricas de “bonecos” periféricas oferecia, cada qual dispunha de um famoso!
E as casas se tornaram meros aparatos acústicos para exibir seus cantores (estes eram muito populares, por sua portabilidade, o prazer óbvio de sua arte, e a ostensividade que proporcionavam!).
Elvis era dos mais requisitados, e era raro o quarteirão onde não se acotovelassem dois ou três exemplares rivais!
Haviam uns poucos Kurts Cobains (eles eram muito sensíveis, se “quebravam” muito facilmente), Michael Jacksons, Frank Sinatras, Bonos...
Por outro lado, profissionais das letras não eram lá bem vistos! Esbarrei em um Orwell, em um comício NeoSocialista, e um Saramago, em uma padaria dita original lusitana (mal-humoradíssimo, por sinal, disse não ter tinta para gravar meu guardanapo descuidadamente amanteigado, à despeito de eu oferecer minha esferográfica!).
Shakespeare foi modinha lá para as bandas do leste, por um pouco tempo, mas logo o populacho despedia forros os pobres artistas, e apagaram suas fórmulas dos neuro-HDs...
As más línguas comentavam que eles eram meio estranhos, mas ninguém dizia mais nada!
Também era certo que o contato com tais representações dos potenciais humanos, em escala industrial, levou inicialmente à inveja, mas depois o costume, proximidade e conhecimento daquilo que antes era passível de interpretações mais brilhantes e complexas que suas proto-idéias, limitaram à tridimensionalidade pessoal tais desafortunadas criaturas!
Não eram mais semideuses, e podiam ser inquiridos, quantificados e julgados, até em esferas quotidianas, e se ainda demonstravam superioridade eram ridicularizados por sua condição de sombras, e por seu débito com seu mantenedor, registrados por contrato unilateral, e amparado por lei!
Tornou-se também moda se vingar da insubordinação dos “bonecos”, desprezando qualquer gabarito!
“-Como os antigos negros trazidos às colônias, estes também não possuem alma! Que sirvam meu vinho, engraxem meus sapatos, alinhe as madeixas de minha senhora!”.
Salvaram-se ai somente os gênios; os quais eram patentes do Estado!
Diziam haver colônias com centenas de Newtons, Einsteins, Marconis, Von Brauns, Edisons...
Pouco se dizia à respeito deles, mas, esperavam que mudassem o mundo, mas eles nem eram como antes...
Donos de si!
Anderson Dias Cardoso.