Tem feito frio
Naquela manhã de verão, cedinho pelas seis horas, saí do meu abrigo todo encapotado como de hábito, com o vapor de minha boca quase congelando à minha frente. Abrindo caminho por entre os montículos de neve, olhei em volta buscando enxergar seres humanos nas proximidades. Eram sempre muito raros nesses últimos anos.
Enxerguei uns vultos magros à distância, lutando contra o vento gélido.
Fui caminhando penosamente, com meus sapatos de neve, escorregando, apoiando-me nas velhas paredes, quase todas em ruínas. Fazia o meu trajeto diário, numa sina de Prometeu. Sempre a mesma coisa: tentar, tentar, avançar aos poucos, aproximando-me ano após ano sem nunca alcançar o meu objetivo. Tempo houve, é claro, em que uma situação como essa jamais me passaria pela cabeça. Apesar de todos os sinais que se avolumavam década após década, a verdade é que o cidadão normal sempre duvidou que o mundo pudesse perder a sua estabilidade.
Mas a ironia de tudo é que as coisas aconteceram quando já estava tudo pronto para a minha vitória. Durante anos, como uma Scarlet O’Hara rediviva, eu roubei, menti, matei e traí, buscando completar o meu objetivo. Conspirando dentro do Centro de Ciências, sem escrúpulos ou remorso, eu me apossei de descobertas alheias, joguei uns contra os outros, corrompi e chantageei e, afinal, reuni o equipamento de manipulação do microcosmo que, se convenientemente usado, me daria a glória, a riqueza, a fama e, quem sabe até, o poder sobre o mundo inteiro. Guardei tudo num esconderijo secreto, só do meu conhecimento, e já me preparava para uma comunicação ao mundo. Eu seria um dos benfeitores da humanidade.
Estavam as coisas nesse pé quando o clima mudou repentinamente e uma monstruosa glaciação avançou sobre os continentes.
Dizem alguns cientistas que uma nuvem de matéria cósmica interpôs-se entre o Sol e a Terra, dificultando a passagem dos raios caloríficos. Como quer que seja, quando dei por mim o Rio de Janeiro estava amortalhado por espessa camada de gelo e o meu tesouro, na Ilha do Fundão, completamente soterrado. E a barreira de gelo foi aumentando cada vez mais.
Procuramos sobreviver, é claro. Formou-se um fundo de crédito para as pessoas terem como se alimentar, vestir e morar; a sociedade, por esse imenso mundo, passou e vem passando por drásticas transformações. Que porém pouco me importam, ainda que eu, um cientista e professor conceituado, tenha tido que aceitar serviços humilhantes para garantir meu quinhão no fundo. O que realmente me importa é abrir caminho através da montanha de gelo e retirar lá de dentro o meu segredo, a invenção. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, nas minhas horas vagas eu vou até o local com as minhas ferramentas – picaretas, machado, brocas, tudo o que eu consegui – e luto para remover mais alguns centímetros, cavando pouco a pouco um túnel cujo fim não consigo avistar. Já fazem quinze anos que eu tento, escavo, cavuco, e não chego até lá. Não disponho de explosivos, não é fácil obtê-los hoje em dia.
O pessoal comenta: “Lá vai aquele biruta, o Professor Daniel.” Ou então: “Coitado, é um grande gênio, mas a sua invenção perdeu-se no gelo.” Pensam que é minha, e alguns me tomam por um homem admirável, um herói, por causa de minha abnegação e meu sacrifício. Mal sabem os meus reais motivos. Mas não me restam muitas esperanças: pelos meus cálculos, ainda restam cinqüenta anos de trabalho para chegar ao ponto exato em que deixei o material. Se não descobrir um método de degelo mais eficiente, as perspectivas são negras.
Quando eu era criança, mamãe sempre me dizia que há no Céu um Deus que premia os bons e castiga os maus. Depois que cresci nunca mais acreditei em tal coisa; principalmente depois que pratiquei amplamente o mal, quase sempre com sucesso. Agora, porém, confesso que a minha opinião começou a mudar novamente...
Livros de Miguel Carqueija
"O estigma do feiticeiro negro" - romance de alta fantasia de Miguel Carqueija e Melanie Evarino (Editora Ornitorrinco) - a saga da elfa nobre Gislaine Pétala e seu dragão Morte, num mundo alternativo.
"Farei meu destino" (Giz Editorial) - romance de fantasia mística: a história da "deusa da Lua" (Diana) no passado e no futuro da Terra.
"Horizonte sombrio" - novela de História Alternativa passada num Brasil paralelo dos anos 1930. Um grande invento modifica a civilização, mas pode também trazer uma grande ameaça. Participação na história (como personagem) do grande inventor brasileiro Padre Roberto Landell de Moura. Disponível ne livraria-editora virtual Agbook.
Naquela manhã de verão, cedinho pelas seis horas, saí do meu abrigo todo encapotado como de hábito, com o vapor de minha boca quase congelando à minha frente. Abrindo caminho por entre os montículos de neve, olhei em volta buscando enxergar seres humanos nas proximidades. Eram sempre muito raros nesses últimos anos.
Enxerguei uns vultos magros à distância, lutando contra o vento gélido.
Fui caminhando penosamente, com meus sapatos de neve, escorregando, apoiando-me nas velhas paredes, quase todas em ruínas. Fazia o meu trajeto diário, numa sina de Prometeu. Sempre a mesma coisa: tentar, tentar, avançar aos poucos, aproximando-me ano após ano sem nunca alcançar o meu objetivo. Tempo houve, é claro, em que uma situação como essa jamais me passaria pela cabeça. Apesar de todos os sinais que se avolumavam década após década, a verdade é que o cidadão normal sempre duvidou que o mundo pudesse perder a sua estabilidade.
Mas a ironia de tudo é que as coisas aconteceram quando já estava tudo pronto para a minha vitória. Durante anos, como uma Scarlet O’Hara rediviva, eu roubei, menti, matei e traí, buscando completar o meu objetivo. Conspirando dentro do Centro de Ciências, sem escrúpulos ou remorso, eu me apossei de descobertas alheias, joguei uns contra os outros, corrompi e chantageei e, afinal, reuni o equipamento de manipulação do microcosmo que, se convenientemente usado, me daria a glória, a riqueza, a fama e, quem sabe até, o poder sobre o mundo inteiro. Guardei tudo num esconderijo secreto, só do meu conhecimento, e já me preparava para uma comunicação ao mundo. Eu seria um dos benfeitores da humanidade.
Estavam as coisas nesse pé quando o clima mudou repentinamente e uma monstruosa glaciação avançou sobre os continentes.
Dizem alguns cientistas que uma nuvem de matéria cósmica interpôs-se entre o Sol e a Terra, dificultando a passagem dos raios caloríficos. Como quer que seja, quando dei por mim o Rio de Janeiro estava amortalhado por espessa camada de gelo e o meu tesouro, na Ilha do Fundão, completamente soterrado. E a barreira de gelo foi aumentando cada vez mais.
Procuramos sobreviver, é claro. Formou-se um fundo de crédito para as pessoas terem como se alimentar, vestir e morar; a sociedade, por esse imenso mundo, passou e vem passando por drásticas transformações. Que porém pouco me importam, ainda que eu, um cientista e professor conceituado, tenha tido que aceitar serviços humilhantes para garantir meu quinhão no fundo. O que realmente me importa é abrir caminho através da montanha de gelo e retirar lá de dentro o meu segredo, a invenção. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, nas minhas horas vagas eu vou até o local com as minhas ferramentas – picaretas, machado, brocas, tudo o que eu consegui – e luto para remover mais alguns centímetros, cavando pouco a pouco um túnel cujo fim não consigo avistar. Já fazem quinze anos que eu tento, escavo, cavuco, e não chego até lá. Não disponho de explosivos, não é fácil obtê-los hoje em dia.
O pessoal comenta: “Lá vai aquele biruta, o Professor Daniel.” Ou então: “Coitado, é um grande gênio, mas a sua invenção perdeu-se no gelo.” Pensam que é minha, e alguns me tomam por um homem admirável, um herói, por causa de minha abnegação e meu sacrifício. Mal sabem os meus reais motivos. Mas não me restam muitas esperanças: pelos meus cálculos, ainda restam cinqüenta anos de trabalho para chegar ao ponto exato em que deixei o material. Se não descobrir um método de degelo mais eficiente, as perspectivas são negras.
Quando eu era criança, mamãe sempre me dizia que há no Céu um Deus que premia os bons e castiga os maus. Depois que cresci nunca mais acreditei em tal coisa; principalmente depois que pratiquei amplamente o mal, quase sempre com sucesso. Agora, porém, confesso que a minha opinião começou a mudar novamente...
Livros de Miguel Carqueija
"O estigma do feiticeiro negro" - romance de alta fantasia de Miguel Carqueija e Melanie Evarino (Editora Ornitorrinco) - a saga da elfa nobre Gislaine Pétala e seu dragão Morte, num mundo alternativo.
"Farei meu destino" (Giz Editorial) - romance de fantasia mística: a história da "deusa da Lua" (Diana) no passado e no futuro da Terra.
"Horizonte sombrio" - novela de História Alternativa passada num Brasil paralelo dos anos 1930. Um grande invento modifica a civilização, mas pode também trazer uma grande ameaça. Participação na história (como personagem) do grande inventor brasileiro Padre Roberto Landell de Moura. Disponível ne livraria-editora virtual Agbook.