O moinho e o tempo




“Às vezes, parecia não tanto que eu estivesse caindo, mas que o universo ou as eras estivessem passando por mim.”
H.P. LOVECRAFT, “O rastejante caos”


INTRODUÇÃO


O ENCONTRO


A cápsula seguia vertiginosamente através do tubo pneumático, trezentos metros acima do solo; e em seu interior quase lotado um dos lugares do meio era ocupado por um homem ainda jovem e de aspecto taciturno, de barba rala e negra e cabelos curtos escuros; um homem vestido de maneira sóbria e portando uma pasta de magiplast, que se ocupava com a leitura de um livro de bolso.
Ao seu lado ia uma jovem de cabelos avermelhados como fogo, ela também ocupada com uma leitura. Usava um rabo-de-cavalo e uma blusa quadriculada, de “faroeste”.
Mas eles não estavam juntos. O homem ao sentar pedira licença à jovem que já lá se encontrava, ela dissera “pois não” e era tudo.
Para Elmo Medeiros entabular conversa com a jovem seria uma boa idéia; mas o seu caráter reservado representava um bloqueio total a iniciativas desse gênero ao menos, partidas do nada. Ele se limitava a pensar nela enquanto tentava ler “O falcão maltês”, de Dashiell Hammett; e se incomodava por não conseguir se concentrar na leitura.
A certa altura a cápsula diminuiu de velocidade, aproximando-se da Estação Landell de Moura; quando as portas se abriram um homem de terno escuro e feições orientais entrou e acercou-se do banco onde Elmo se encontrava. Os acontecimentos a partir desse ponto se tornaram vertiginosos: incrédulo, Elmo notou que o recém-chegado, praticamente sem disfarces, ia sacando uma arma; antes porém de completar seu gesto apareceu um esgar de dor e surpresa em sua fisionomia; e em meio ao pânico entre os passageiros o sujeito caiu no chão. Elmo se voltou; a moça disparara uma arma semelhante a uma lapiseira.
Ela se ergueu e forçou caminho, deslocando o rapaz, que caiu fora do banco; o atacante estava presa de convulsões; ao tentar escapar a moça deixou cair livro e bolsa, e desta escapou um bloco de desenhos; e num relance Elmo enxergou a figura de um moinho dentro de uma ampulheta.
Um moinho e uma ampulheta.
Ela pegou tudo rapidamente e chispou.
- Você! Espere! – exclamou Elmo, subitamente motivado.
Ela correu para fora do veículo e Elmo foi atrás, em meio aos encontrões e empurrões de uma pequena multidão em pânico. Viu que ela embarcava num táxi aéreo e, num impulso, pulou dentro do aparelho antes que a porta do mesmo se fechasse.
- Central Bancária, por favor! – exclamou ela. O robô-motorista disse “OK” e partiu em grande velocidade, enquanto a jovem apontava a arma para Elmo.
- Não faça isso! – apressou-se ele em dizer. – O moinho e a ampulheta! O que significa isso?
- Como assim? Quem é você?
- Eu venho sonhando insistentemente com um moinho e uma ampulheta.
Ela acionou a arma e uma agulha anestésica atingiu o pulso do rapaz.



CAPITULO 1


SEQUESTRO


Elmo aos poucos emergiu do entorpecimento, com uma sensação de umidade na testa. Só aos poucos teve a certeza de que alguém lhe passava um pano molhado. Quando as impressões tácteis se definiram melhor, ele também acordou de todo. Tentou se erguer e a moça retornou-o delicadamente à posição anterior.
- Calma, evite movimentos bruscos.
Afinal ele se encontrava numa cama linda, coberta por uma colcha colorida de linho, com motivos da natureza; e toda ela ostentava frisos dourados na estrutura. O quarto era simpático e decorado com grande bom gosto, não faltando estatuetas de mármore negro na escrivaninha, figuras de faunos, unicórnios e curupiras.
Ele tentou novamente se recostar na cama e somente então percebeu que o seu pulso direito encontrava-se algemado no espaldar do leito.
- O que é isso?
- Uma medida de precaução – explicou ela.
- Ora, pare com isso! Afinal eu tenho mais o que fazer!
- Não posso ficar sozinha com um homem estranho sem tomar minhas precauções. Preciso que você me explique tudo.
- Explicar o que?
- Como assim? Não foi você mesmo que me seguiu?
- Sim, mas... foi um impulso... tentaram matá-la, eu vi aquele desenho...
- O moinho e a ampulheta. Você falou que sonha com essas coisas.
- Todas as noites, sim... o que significam, afinal?
- Eu também estou sonhando com esses objetos e por isso os desenhei.
- São exatamente iguais, nos meus sonhos... ou assim me parece... por isso eu tomei um choque quando dei com os olhos na gravura.
- Bem, Elmo...
- Como é que você sabe o meu nome?
- Olhei os seus documentos...
- Com que direito você fez isso? Aliás, como é que você tem uma arma dessas e algemas? Eu tenho que ir trabalhar...
- É melhor a gente se entender. Não está vendo que o assunto é muito sério? Se até tentaram me matar...
- Como assim? Você está querendo me dizer que aquele indivíduo quis te matar só porque você está sonhando com moinhos e ampulhetas?
- Provavelmente sim, mas eu acredito que nós temos de ir até lá.
- Ir até aonde?
- Ora, até o moinho, é claro!
- Ué, mas ele existe?
- Tem que existir.
- Mas é um sonho!
- Duas pessoas não sonham com a mesma coisa exatamente. Me conte o que é que você sonha, de que jeito.
- Mas não vai me soltar? Eu tenho que trabalhar!
- Relaxe, porque isso é muito mais importante do que você supõe. Agora você é meu prisioneiro, portanto colabore por favor. Eu até tirei os seus sapatos, já que você está na minha cama. Eu sei que estou me arriscando muito, mantendo um homem em cárcere privado, mas isso é por pouco tempo. Agora esqueça o seu trabalho e me conte como são os seus sonhos!
- Mas espere...
- Detalhe: somente os sonhos com o moinho e a ampulheta.



CAPITULO 2

SONHOS



Vendo por fim que ela falava a sério, Elmo recostou-se de novo na almofada e fechou um pouco os olhos, buscando a recordação:
- Deixa eu ver... tem quase um mês que eu sonho com essas coisas, isso está me deixando louco porque eu não consigo ver qual é a relação...
- Conte o sonho, por favor.
- Eu me vejo seguindo por uma estrada esquisita, às vezes parece xadrezada, outras vezes parece mármore de Carrara, dá muitas voltas, atravessa charcos, e acaba chegando num moinho enorme, e o moinho parece que está dentro, ou enquadrado numa ampulheta. Eu vejo a areia, vejo as pás do moinho se movendo...
- Não tem outras pessoas?
- Ah, sim, há outras pessoas que vão comigo mas eu não sei quem são, é como se não passassem de silhuetas...
- É isso mesmo. Acontece comigo. E uma voz sussurrante diz “Estamos esperando a todos vocês; apressem-se por favor”.
- É muito estranho! Eu também escuto isso... uma voz que murmura, que parece vir do moinho...
Ela sorriu:
- Está bem, Elmo. Eu vou soltá-lo. Já que você e eu estamos sendo convocados para alguma missão, vamos precisar de confiança mútua.
Ato contínuo ela puxou do bolso uma bolsinha de couro, dessas que se utilizam para guardar moedas ou chaveiros, e pegou uma chave com a qual abriu as algemas. Preocupado com a hora, Elmo buscou rapidamente os sapatos.
- Você não pode ir tão depressa! – apressou-se em dizer a moça. – Tem que anotar o meu nome, as minhas direções, tem que me informar as suas...
- É mesmo, você nem me disse o seu nome...
- É Lidiane, sei que você tem pressa, vamos trocar logo as informações.
Trocaram tudo o que era possível: correio na rede, fax, holotelefone... Elmo agia mecanicamente, pois tinha muita pressa e não poderia dizer no escritório que se atrasara porque uma garota o acorrentara na cama. Ao se despedirem ele ainda indagou:
- Você vai estar bem? Um homem tentou te matar.
- Mas não sei quem foi, e nem...
- Não vai pedir proteção?
- Eu sei me defender e não estou com vontade de falar com a polícia. Por que é que a gente não se encontra hoje à noite?
- Onde?
- Em frente ao Salão dos Mangás, está bem?
- Que horas?
- Nove da noite está bom?
- Por mim está, agora eu...
- Sei, você tem que ir.
Beijaram-se num impulso e se despediram.



CAPITULO 3


ENCONTROS


No escritório de processamento o dia seguiu monótono e um pensamento monomaníaco não parava de martelar:
- Afinal por que a matariam por causa de um sonho? É crime sonhar? E como é que saberiam disso?
Elmo nunca se vira tão angustiado em sua vida, pois não sabia se ele próprio estaria de alguma forma assinalado, marcado; e nem se aquele indivíduo, que permanecera livre, saberia o endereço da Lidiane. Elmo não estava acostumado a lidar com problemas de segurança pessoal e não enxergava como poderia contar o assunto à polícia; e tinha a impressão de que isto de nada serviria.
Realmente, um busílis...
Pelas quatro da tarde houve uma chamada invisível para o seu ramal. Ele atendeu, incomodado pela tela holográfica opaca, e não liberou a sua própria imagem. Mas a voz que se manifestou era bonita e conhecida:
- Oi, Elmo, é você mesmo?
- Sim, sou eu. O que houve?
- Só para te lembrar do nosso encontro.
- Ah, sim, eu vou estar lá.
- Tá bem. Eu te encontro lá. Beijos.
Ela desligou e Elmo ficou um pouco estático, perdido em pensamentos. Mas logo deu uma ligeira sacudida na cabeça e retornou à pesquisa no multicomp.


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Ao tomar o fuso voador com destino à Avenida Nipônica, Elmo sentia-se assaz preocupado. Nunca se metera em aventuras imprevisíveis e as incógnitas que enxergava em seu trajeto eram assustadoras e perturbadoras. Por mais que refletisse sobre o assunto, nenhuma idéia luminosa transparecia. Elmo suava frio e se sentia meio fraco, efeito da tensão nervosa. O motorista desta vez era humano e as poucas pessoas ali presentes pareciam suspeitíssimas ao rapaz. A idéia de estar fazendo algo clandestino e obscuro deixava-o apavorado: cada vez que alguém o olhava casualmente Elmo sentia-se acuado, apontado.
E assim decorreram nove minutos.
O esvoaçador aterrissou na prancha de desembarque e Elmo saltou esbaforido, procurando lembrar aonde, afinal, é que ficava o combinado local de encontro. Não tinha estado lá mais do que duas vezes em toda a vida.
Teve a surpresa de encontrar Lidiane portando uma bagagem levitante volumosa, com um pulôver vermelho e um gorro que parecia de Papai Noel. Ela o beijou afetuosamente, como se já o conhecesse há anos.
- Para que tudo isso? – ele perguntou, embasbacado.
- Não me diga que você não trouxe a sua bagagem!
- Para que? Eu não vou viajar!
- Ah, não? E como é que você garante?
- Amanhã eu tenho que trabalhar!
- Ainda bem que eu estou em férias.
- Ué, mas eu não estou.
- Ah, esquece. Você parece que não distingue o que são casos de vida ou morte ou próximos disso. A coisa toda é muito mais séria do que você julga!
- Escute... nós não podemos primeiro passar na cafeteria?
- Até podemos, se você estiver com fome!
Procuraram uma mesa vazia mas, ao se assentarem, apareceu uma mulher velha, de longos cabelos brancos e rosto fino, que se dirigiu a eles:
- Com licença. Tenho certeza de que preciso falar com vocês.
- Sobre... – balbuciou Elmo.
- Sobre um moinho e uma ampulheta.
- Sente-se – convidou a garota. – Você não me é estranha.
Ela sentou e se apresentou:
- O meu nome é Lídia Mantovani Badredding, sou artista plástica.
- Já ouvi falar de você – disse Lidiane.
- Bem, isso aqui diz alguma coisa a vocês dois?
E retirou da sua sacola de plástico uma sacola que representava... um moinho e uma ampulheta.
- O tempo... o que o tempo tem a ver com isso, afinal? – filosofou a garota. E acrescentou: - Como você soube da gente?
- Cansei de falar com vocês dois nos sonhos... acho que algum ser está nos guiando.
- E se for uma armadilha?
- Somos seres humanos e temos recursos – lembrou Lídia. – Eu não tenho medo.
- Mas como é que nós vamos chegar lá? Nem sabemos o endereço.
- Será possível que vocês dois nunca memorizam o trajeto em seus sonhos? Eu acho que sei chegar até lá.
- Não diga! – Lidiane estava excitada. – Você viu o trajeto em seus sonhos?
- Indo de carro, acho que consigo. Vocês me acompanham?
A garçonete veio fazer os pedidos. Elmo, que apreciava forrar o estômago, pediu um café expresso e um pão de queijo. E como fosse também um sujeito metódico, acrescentou:
- Não haverá outras pessoas sendo chamadas?
- Tenho certeza que sim. Existe um rapaz engraçado, mas eu não vi onde ele está.
- Engraçado?
- Pelo menos me pareceu assim nos sonhos.
- Devemos esperá-lo – observou Lidiane.
Elmo colocou o pires sobre a comanda de seu pedido e refletiu introspectivamente, enquanto os outros continuavam falando. Localizar uma pessoa somente entrevista em sonhos? Era preciso admitir o milagre.
- E não existirá mais gente ainda? – arriscou ele finalmente.
- Tem mais um – disse Lidiane. – Acho que somos cinco. Há um homem velho, de longa cabeleira...
- E tem os inimigos – lembrou Lídia. – Eu tive clara consciência deles.
Para Elmo, ele próprio estaria se envolvendo numa autêntica loucura. Ir com desconhecidos sem saber para onde nem para que, enfrentar inimigos misteriosos e sem motivação identificada...
Prudentemente, ele observou:
- Como é que nós vamos encontrar esses sujeitos?
- Nós temos que ir agora – disse Lídia, terminando a sua geléia. – Eles terão de aparecer.
Lá se foram os três até a Joaninha da artista. Era um modelo bem recente, desses pintados com todas as cores do arco-íris. Lidiane foi para o banco de trás e convidou Elmo a fazer o mesmo. Lídia concordou:
- Se eu avistar o quarto membro da expedição, chamo-o para o banco da frente; é melhor assim.
- Será – disse ainda o rapaz e mais prudentemente ainda – que ninguém tem retaguardas para deixar?
- O que é que você quer dizer? – perguntou a garota, espantada.
- Crianças... um bichinho de estimação... famílias... coisas que não podem ser deixadas para trás.
Lidiane abanou negativamente a cabeça e Lídia opinou:
- Pode ser que todos nós sejamos sozinhos... pode ser a condição sine qua non para a chamada...



CAPITULO 4


O GRUPO COMPLETO


Sair rodando àquela hora da noite rumo a um destino ignorado – eis o que Elmo jamais sonharia fazer. E agora... mas a cálida presença de Lidiane, tão próxima a ele, confundia os seus pensamentos. Naquela escuridão, os olhos brilhantes da moça não deixavam de fitá-lo intensamente.
Foi nesse momento, quando Lídia acionava a partida do carro, que ele avistou, ainda à distância, algo alarmante. O sujeito oriental lá estava, sob a luz de um lampião de metagônio. E com ele mais dois sujeitos, ambos negros. Todos portavam armas pesadas, como se isto fosse normal em plena via pública. Eles correram na direção do veículo mas este era do tipo aéreo e subiu rapidamente, pondo-se fora do alcance; e bem a tempo, pois já atiravam. Algumas lascas do aerocarro voaram longe.
- Estou com vontade de reagir! – exclamou Lidiane, indignada. – Precisamos arranjar armas!
- Por que não avisamos a polícia? – sugeriu Elmo humildemente.
- Não aconselho a fazer isso – disse Lídia. – Como é que nós explicaríamos estarem querendo nos matar?
- Mas o que...? Será que é crime ser alvo de um atentado?
- É suspeito, querido. Pense bem: como é que nós iríamos nos explicar à polícia? É melhor não fazer nada.
Para Elmo era uma lógica estranhíssima. Ele nunca havia raciocinado por esse aspecto: a culpa de ser vítima.
E Lídia... como poderia conhecer o caminho?
Onde é que ainda existiam moinhos?
Ele não tinha mais vontade de falar. Acompanhava as manobras de Lídia através das teias aéreas de vias expressas, e aos poucos iam-se afastando do aglomerado urbano:
“Tenho que trabalhar amanhã... isso tem que acabar logo.”
Silenciosamente a mãozinha direita de Lidiane achegou-se da sua e segurou-a. Ele não ousou olhar para ela; prosseguiu olhando a paisagem noturna.
Minutos depois a joaninha pousou numa torre de abastecimento e quando Lídia saltou para dar instruções à frentista, Lidiane cutucou Elmo e observou, ela própria incrédula:
- Lá estão eles!
O “rapaz engraçado” – um tipo angolano – e o velho de longa barba branca – quase um Papai Noel – aproximaram-se rapidamente, vindos da loja de conveniência.
- Eu não acredito... coisas assim não acontecem... – Elmo estava estupefato.
- Já sei quem vocês são – falou Lídia, diante da surpresa frentista. – Podem embarcar.
- Tudo vai se encaixando – falou o velho com voz de baixo. – Não te falei que tudo está se encaixando?
- É, você falou umas trinta vezes – respondeu o rapaz.
- Vamos lá! – e foi entrando, afastando Elmo e Lidiane mais para dentro do veículo.
- Eu sou Jeremias Abelardo Clouzot, aposentado há vinte e três anos – foi logo dizendo. – Vocês quem são?
Eles se apresentaram e o rapaz angolano declarou ser Jonathan Gomes, corretor de seguros. Ele ocupou o lugar ao lado do banco da motorista. Esta anunciou:
- Vou pisar no acelerador, assim que resolvermos tudo aqui. Não podemos perder tempo!
Quando a joaninha se ergueu, um panquecóptero veio se aproximando a toda e já disparando. Lídia acelerou com tanta rapidez que o radicalismo da ascensão imobilizou a todos com prováveis 3G nos estofados.
- Você está querendo matar a gente? – berrou Jonathan esganiçadamente.
- Vamos para a Floresta de Névoa! – exclamou a motorista.
A joaninha escapuliu-se a mais de duzentos quilômetros por hora sofrendo a perseguição do misterioso panquecóptero, até chegar a uma imensa parede de nebulosidade que se erguia a grande altitude. A escuridão tornou-se, de repente, de sala de cinema; comprimido contra a porta esquerda do veículo, que voava meio inclinado naquela direção, Elmo sentiu que braços cálidos o envolviam com decisão e, sem praticamente enxergar nada, foi sufocado por um rosto colado ao seu, lábios sobre lábios. Atarantado pelo incômodo da posição, Elmo sentiu ao mesmo tempo o quanto aquilo era agradável. Dedos calorosos buscaram os seus cabelos e os alisaram; ele pensou que, de algum modo, devia corresponder àqueles carinhos. Quando moveu suas próprias mãos pelas costas da garota, o carro mudou a inclinação bruscamente.
- Safa! Saiam de cima! – berrou Jeremias.
Outro sacolejão e os dois tornaram à posição anterior, sem que Lidiane descolasse os lábios dos dele.
Então uma lanterna foi acesa, desvelando a cena.
- Acho que não é hora para pensar nisso – disse Jeremias, sisudo.



CAPITULO 5


O MOINHO ENTRE AS NÉVOAS


Passaram-se mais de vinte minutos. A ansiedade crescia a bordo da joaninha e Elmo cada vez mais desejava ficar a sós com Lidiane. Mas nem podia pensar nisso agora. O velhote estava impaciente e buscava açodar a piloto, porém Lídia começava a se mostrar zangada:
- Estamos em vôo cego, vovô. Por favor, tenha um pouco de paciência.
- Mas nós vamos acabar batendo em alguma coisa!
- Bater em que? Isso aqui é a Floresta da Neblina, não tem montanha nenhuma por aqui...
Elmo não estava realmente com esperanças de chegar a algum lugar concreto, mas a certa altura o nevoeiro espesso como uma sopa de ervilhas deu algum sinal de se dissipar. Foram surgindo pequenas aberturas na cortina de “smog” e, espantosamente, o que se via através dessas aberturas era claridade intensa. De súbito o aerocarro viu-se em céu aberto, atravessando a muralha nebulosa, e sobrevoando uma terra estranha coberta por floresta tropical.
- Não há verdadeiras florestas em centenas de quilômetros – observou Jonathan, admirado. – E a névoa não vai tão longe!
- Não importa – respondeu Lídia, imperturbável. – Sem a menor dúvida, estamos chegando ao nosso destino!
Lidiane e Elmo já se mantinham com as mãos dadas, escondidas entre os seus corpos encostados. A sua ligação amorosa achava-se na prática iniciada de forma tácita. Elmo principiava a achar toda aquela aventura uma coisa bela, agradável e excitante.


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Alguns minutos depois avistaram o moinho.
Ele se encontrava em meio a uma estranha clareira circular, cultivada com tulipas. O vento soprava com muita força e fazia moverem-se as pás no sentido anti-horário. Não chegava a ser uma construção muito alta, e sua cor era caramelo – uma pintura sobre blocos graníticos.
- Eu não posso acreditar... – balbuciou Elmo, esforçando-se para apreender os detalhes. – O moinho existe mesmo!
- Mas e a ampulheta? – quis saber Jeremias.
- A ampulheta é simbólica – explicou Lídia, meio impaciente. – Ela representa o tempo, ou quem sabe a eternidade. Agora por favor não perturbem, estou manobrando para descer.
- Será que não há perigo? – indagou Lidiane.
- Temos que arriscar. Alguma razão existe para estarmos aqui.
O corretor consultou seu relógio de pulso e constatou que o mesmo estava parado.
- Hum... Lídia, você diz que a ampulheta dos nossos sonhos simboliza o tempo ou a eternidade? Será que viemos para fora do nosso tempo? O meu relógio parou.
- O meu também – disse Jeremias.
Nenhum relógio do grupo estava funcionando.
Lídia pousou o veículo bem diante do moinho.


CAPITULO 6


CONTO DE FADAS


Quando saltaram Elmo circunvagou o olhar, preocupado com a segurança de sua garota; mas esta mesma já se punha à frente do grupo, numa liderança natural:
- Temos de entrar no moinho.
- Tem certeza disso? – questionou Jonathan.
- Do lado de fora não iremos descobrir nada. Vamos logo, gente!
Encaminharam-se para uma porta alta e nodosa, feita de alguma madeira de boa qualidade mas que parecia haver agüentado séculos de intempéries. Lídia pôs a mão na maçaneta de aço e moveu-a com facilidade.
- Está aberta. Vamos entrar.
Adentraram os cinco e Lidiane olhou em volta, e a sua quase-xará observou:
- Está tudo tão novo por aqui...
- Tudo o que? Só tem parede! – comentou Jeremias.
- Mas como é que está tão claro? – quis saber Jonathan Gomes, arrumando o cabelo encarapinhado. – Afinal, é noite!
- Estamos em outra dimensão – declarou Elmo, espantando a si mesmo. De ordinário ele não era muito imaginoso.
- Não estou entendendo “chongas” – acrescentou o angolano.
Lídia deu de ombros.
- Não ganhamos nada permanecendo aqui parados. Vamos explorar esse moinho! Tem de haver alguma coisa por aqui!
Assim dizendo, a artista dirigiu-se à escadaria de pedra que seguia em caracol. O grupo seguiu-a relutantemente; afinal estava-se em pleno desconhecido.
- Que lugar primitivo – observou o chalaceiro Jonathan. – Nem televisão holográfica, nem magiplast, nem luzes automáticas, nem elevador supersônico, nem...
- Ora, cale a boca – reclamou Jeremias. – Estou tentando contar os degraus.
Lidiane e Elmo seguiam na rabeira, as mãos dadas.
Nos aposentos superiores existiam móveis rústicos, mesas, cadeiras e prateleiras, mas nada que esclarecesse o mistério. Foi somente ao chegarem ao andar de cima que fizeram uma descoberta importantíssima.
No centro do aposento havia uma espécie de leito oculto por baldaquim azulado e enfeitado com espinelas violetas. Algo completamente anômalo naquele ambiente. Eles se aproximaram incrédulos e Lidiane, tomando a frente de todos, chegou mais perto e pegou as bordas de um cortinado cor-de-rosa, afastando-o cuidadosamente. Elmo encostou-se a ela e os demais se aproximaram.
O interior do dossel achava-se suavemente iluminado por uma luz de procedência desconhecida. Sobre um leito coberto por lençol alvo e imaculado encontrava-se uma jovem deslumbrante, vestida com uma espécie de túnica lilás.
Só que ela não estava repousando sobre o leito. Estava flutuando no ar, uns quarenta centímetros acima do lençol. E além disso ela possuía duas anteninhas.


CAPITULO 7


AS REVELAÇÕES


- É uma princesa encantada – opinou Lídia. – Sim, só pode ser isso.
Elmo, cuja visão não era das melhores (na verdade naquele momento ele estava sem os óculos) aproximou o rosto para olhar de mais perto, porém Lidiane o puxou para trás.
- Não é tão bonita assim, afinal.
- Como não? Ela é linda! – protestou Jonathan.
Não se pode dizer que fosse negra, mas a sua cor era chocolatada e as anteninhas, carameladas.
- Ela é um ser de outro planeta – concluiu Elmo, com o suor escorrendo pela testa. – Eu nunca teria acreditado...
- Um ser de outro planeta... – balbuciou Lidiane. – É isso mesmo. Não pode ser outra coisa.
- Uma uranídea... – balbuciou o velho Jeremias.
- Não, não creio que ela seja de Urano – arriscou Jonathan.
- Não quis dizer isso. Uranídea quer dizer de outro mundo. De Urano seria uraniana.
- Vamos resolver o que fazer – lembrou a artista.
- Tem alguma idéia, Lídia? – perguntou Elmo.
- É claro.
Assim dizendo a mulher tocou com as duas mãos o pulso direito da “bela adormecida”, procurando senti-lo.
- Ela é tão graciosa... deve ser uma princesa de outro planeta.
Neste exato momento começou a suceder uma ocorrência entre amedrontadora e fascinante. O belo corpo, até então inerte e como em transe cataléptico, pôs-se a estremecer e vibrar. Ao mesmo tempo uma suave luz emanou da garota adormecida e envolveu Lídia, diante do olhar expectante e perplexo de seus amigos. O corpo da extraterrestre foi então baixando, deixando de levitar, e chegou até o lençol. Lídia soltou-lhe a mão; a luz foi sumindo e a jovem mexeu as mãos e as antenas, abrindo finalmente os olhos, exibindo íris lilases.
Ela sorriu e se sentou, pousando no chão os pés nus.
- Então vocês vieram – disse ela em português, com um sotaque indefinível.
Diante da geral mudez ela procurou se erguer, mas caiu sentada. Lídia pôs a mão em seu ombro:
- Você está bem?
- Não se preocupe. Estarei bem. Ainda não acordei de todo, é só isso.
- Faz quanto tempo você se encontrava em estado de animação suspensa?
- Pelos seus números, há milênios.
- Meu Deus – murmurou Elmo, estupefato.
- Você é tão bonita... – arriscou Jonathan.
- Muito obrigada.
- Quem é você? E por que está aqui? – indagou Lidiane.
- Chamo-me Ilith – disse ela, e a sua voz parecia o plácido escoar de um riacho de águas límpidas.
Aos poucos as anteninhas flexíveis iam-se erguendo.
- Me falem os seus nomes, que eu preciso explicar muitas coisas.
Todos se apresentaram e Ilith, erguendo-se, caminhou até uma espécie de bar, de onde retirou uma bandeja com tulipas e duas garrafas, tudo em material e desenhos estranhos.
- Permitam-me. Devo tomar um pouco desse licor de vitaminas, pois ainda me sinto um pouco fraca. Se lhes agradar, tomem também e brindemos ao meu despertar.
Elmo e Lidiane foram os primeiros a aceitar; Lídia e Jonathan fizeram-no em seguida. Jeremias olhou desconfiado para a beberagem:
- Em 75 anos jamais vi nada tão estranho! E se eu fosse vocês teria mais cuidado! Quem diz que essa bebida está no prazo de validade?
Ilith sorriu e tomou um gole, como a demonstrar que não existia perigo.
- Ela tem, e não tem, milhares de anos, já que nos encontramos dentro de uma cápsula de estase.
- De que? – indagou Jonathan.
- Esperem! Eu sei o que é isso! – exclamou Lidiane, radiante por compreender. – Aqui dentro o tempo não passa, não é isso mesmo?
- Você adivinhou, Lidiane.
- Gente, vamos beber o licor com ela! Não banquem os bobocas!
Fizeram o brinde e Jeremias, relutante, foi o último a sorver.
- É rascante. Tem um certo travo. Mas até que é bom – admitiu.
- Estou me sentindo ótima – falou Lídia.
- Vocês estão vendo aquelas poltronas? Vamos até lá para conversar – disse a garota extraterrestre.
Caminharam todos até lá, até as poltronas reclináveis e futuristas num dos ângulos do aposento. Ao sentarem, Lidiane puxou a conversa:
- Você é uma gracinha. Mas por que nos trouxe até aqui? E por que nós fomos perseguidos?
- É uma longa história, querida. Tem a ver com a invasão do Setor Vega pela Federação Sbug.
- Como é que é?
- Temos os Reptantes, cuja principal nação galáctica optou por um sistema político expansionista. Temos os Jipkilien, seus aliados e algumas outras nações galácticas que formaram a Federação Sbug. O fato é que a Terra está sob a iminência de uma invasão estrangeira que nós devemos impedir.
- O que diz? – Jonathan estava perplexo.
- Desde que eu tinha cinco anos de idade... – principiou Jeremias, só que ninguém o deixou falar. Elmo foi logo cortando:
- Como pode ser isso, se você vem do passado?
- É! – acrescentou Lidiane. – Como você poderia saber de uma invasão atual?
- A guerra se passa no espaço e no tempo – explicou a jovem. – De uma forma que ainda se encontra além da compreensão de vocês, sabíamos que estariam em perigo neste seu ano de 2090 e que precisávamos bloquear neste ponto cósmico a expansão do Sbug.
- Mas quem são vocês? E você especialmente quem é? Uma agente espacial?
As perguntas vieram de Lídia. Ilith fitou a anciã com bondade no olhar e respondeu calmamente:
- Pertenço à raça Velka, de Ifenio, venho de muitos milhares de anos-luz mais para o centro da Via Láctea. Faço parte do Conselho de Sábios e sou voluntária nesta missão.
“Entendam que eu não disponho de muito tempo. Vim até aqui, nesta câmara de estase, porque desse jeito este invólucro onde nos encontramos acumulou a energia do contínuo quadridimensional espaço-tempo, a fórmula que nós encontramos para repelir a armada estelar que se aproxima da Terra e que vem assolando este braço da Galáxia.
“Através do Sonho Consciente eu identifiquei as freqüências mentais compatíveis com meu despertar e minha missão e vocês cinco foram chamados para me libertar, esta a sua missão precípua, pela qual eu agradeço do fundo de meu coração.
- Como se explica isso? – perguntou Lidiane, estupidificada. – Nós não sabíamos de nada!
Ilith abriu um largo sorriso.
- Não tinham como saber. O importante é o seu mérito.
- Então você é nossa amiga? – indagou Jonathan.
- Eu sou, e muito.
Elmo tentou ser prático.
- O que nós devemos fazer?
- Elmo, nós temos os meios de neutralizar a invasão de seu planeta.
- Mas e os bandidos que queriam nos pegar?
- Ah, eles são agentes terrestres já a serviço do grupo invasor, que já desceu no planeta Terra, nisso que vocês chamam de OVNI’S.
- Estou começando a não acreditar nessas coisas – opinou o velho Jeremias. – De todas as histórias que escutei nos últimos 50 anos...
- Poupe-nos – disse a Lídia, que enfileirava com ele em idade e podia contestá-lo à vontade. – Você não está presenciando todas essas maravilhas? Ilith, conte-nos isso. Mas antes nos diga: há alguma possibilidade em que aqueles malfeitores assaltem esse local?
- Não vimos nenhuma defesa! – exclamou Lidiane; Elmo segurou a sua mão tentando tranqüilizá-la.
- Não é fácil atacar uma cápsula de estase – disse Ilith. – Em todo o caso é possível. O tempo urge, por isso eu lhes peço desculpas por permanecer na frente de vocês em camisola de dormir, mas não será prudente perder tempo mudando de roupa agora. Depois que estivermos em segurança...
- Ora, não precisa se preocupar com esse detalhe – objetou Jonathan, espiando os ombros e as canelas da moça.
- Está bem, Jonathan – Ilith sorriu, e era belo e poético o seu sorriso. – Nós vamos ao painel, para as operações que teremos de efetuar.



EPÍLOGO


ESTASE


Painel!
Por demais deslumbrados com tudo o que estavam assistindo os cinco amigos nem haviam dado conta da amplitude do aposento, que não parecia o interior de um moinho e sim uma espécie de instalação futurista ainda que proveniente dos abismos do tempo.
De fato, no ângulo oposto ao bar – e tendo o dossel no centro – existia uma espécie de cinerama, ou posto de controle, e para lá Ilith se dirigiu. Elmo, que ficara mais para trás com Lidiane, segredou-lhe:
- Veja como o Jonathan colou nela...
- Ele deve gostar de antenas. Espero que não seja o seu caso.
- Acho que não...
Ilith sentou numa poltrona giratória de revestimento lustroso e pôs-se a digitar alguns controles. À sua frente uma impressionante tela parecia mais um túnel cósmico, a imagem apresentava solidez e profundidade e exibia estrelas sem fim.
- Sentem-se ao meu redor, por favor. Todos.
- Afinal como é que você sabe a nossa língua? – disse de repente Jeremias, e os demais se admiraram por não terem feito a mesma pergunta.
- A tecnologia que permite esta absorção é muito avançada para o seu atual estágio científico – explicou a menina alienígena, pacientemente. – Não posso ler pensamentos, pois cada mente é inviolável, mas existe uma ressonância de ondas cerebrais e transmissões radiofônicas e a câmara de estase absorve e analisa tudo; assim eu adquiri, pelo inconsciente, um conhecimento infuso do idioma local.
- É um prodígio, com certeza – observou Lídia, que sentara logo à direita da garota.
- O que você vai fazer agora? – indagou Elmo.
- O que é preciso. Prestem muita atenção, por favor.
Fez-se um silêncio de morte; Elmo e Lidiane limitaram-se a estreitar as mãos.
- Procurem entender – começou a jovem sábia – que nos encontramos dentro de uma cápsula de estase, onde o tempo não passa, e que esta cápsula encontra-se estacionada na Terra mas não pertence à Terra. Reparem que, nesta tela, podemos dispor de um estereograma cósmico e seu poder de definição e aproximação é imenso. Agora observem, por favor, como o Cosmos parece se movimentar. É como se ele passasse por nós, pois uma câmara de estase não se movimenta.
- Por que isso está acontecendo? – quis saber Lídia.
- Porque eu estou movimentando os controles pela rosa sêxtupla, que determina as seis direções básicas no espaço, de maneira a nos aproximarmos do lado oculto da Lua, onde se encontra a frota invasora à espera do sinal de ataque.
- Então não estamos mais na Terra? Isso é absurdo! – reclamou Jeremias.
Como a confirmá-lo, apareceram uns aviões que se precipitaram na direção da tela. Ilith fez com que se acendessem outras telas e explicou que elas mostravam tudo em volta.
- Já estamos no ar e os nossos inimigos estão tentando um ataque desesperado.
Tudo porém foi inútil, e todo o metralhar e bombardear resultou em vão. Os cinco hóspedes testemunharam, horrorizados, um número indeterminado de aeroplanos explodir no ar, atingidos pelas descargas defensivas do moinho.
- Eles não estavam preparados para nos destruir – explicou a alienígena.
Agora o espaço cósmico se aproximava vertiginosamente. Já se avistava a Lua. Ilith sorriu mas suas palavras não eram muito tranqüilizadoras:
- Sabem, amigos? Não posso garantir que nós iremos sair vivos desta!
- O que você quer dizer com isso? – opôs Jeremias. – Eu ainda pretendo viver mais 30 anos!
- Quem sabe consegue... – disse Ilith, já sorrindo da obsessão numérica do velho.
- Qual é de fato o risco? – objetivou Lidiane.
- Veja você mesma.
Uma incrível formação de UFOS em forma de charutos era agora visível. Logo, uma medonha barreira de fogo se dirigiu contra o moinho. Ao mesmo tempo toda a esquadrilha de charutos voadores pareceu vir de roldão sobre eles; todavia, como explicara Ilith, era como se o universo é que estivesse passando pela cápsula de estase.
E foi terrível a destruição da frota inimiga. Quando todo o clarão se extinguiu, o espaço achava-se vazio. Perto, apenas a Lua.
- A energia da estase em grande parte se dissipou. Eu quero agradecer a vocês pela nossa brilhante vitória.
- E agora? – Elmo estava como que apatetado.
- Preciso retornar ao meu ponto de partida. Devo primeiro ancorar na Terra, para que vocês possam voltar ao seu mundo, com o seu veículo. Seu povo não irá compreender; melhor não divulgarem o que se passou.
- Estamos mesmo livres? – a pergunta era de Jeremias. – Eu contei vinte e três daqueles aparelhos, e não sei se contei certo...
- Eles não contavam com a minha manobra. Vejam bem, o risco de desestabilização do sistema era muito grande; até um vento solar mais intenso poria o nosso equilíbrio em risco. Mas graças a Deus estamos sãos e salvos. Reparem: o universo está voltando para trás. Tornarei a fundear nossa estase no mar de névoa de onde nós saímos e vocês poderão ir embora.
- E você? – quis saber Lidiane.
- Como eu disse, retornarei ao ponto de partida, muitos éons atrás.
- Eu irei com você – disse Jonathan, surpreendendo a todos.
Ilith sorriu sutilmente.
- Fala sério? Você tem todo um mundo para deixar.
- Inclusive os meus credores, é claro – disse ele, sorrindo. – Mas na história da humanidade sempre existiram seres humanos que largaram tudo para nunca mais retornar – como aqueles que atravessaram o oceano para colonizar novas terras, num tempo em que não existiam sequer rádio ou telégrafo, que dirá satélite e internet. Eles deixaram tudo para sempre.
- Mas por que você, especificamente, quer fazer isso?
- Depois que eu te vi, não creio que eu pudesse te esquecer... eu me lembraria pelo resto da vida.
- Meu caro, para retornar no tempo é preciso participar da estase, será preciso colocar-se no dossel, em animação suspensa e levitação, e realmente cabe mais uma pessoa. Trazê-lo de volta seria problemático, se você não se adaptar ao meu mundo...
- Bem, eu não me sinto perfeitamente adaptado ao meu próprio mundo. Correrei o risco.
Ela ficou a olhá-lo com olhos enormes, como se tentasse enxergar para além das aparências ou da superfície da pele. Por fim, ela volveu o olhar para os demais:
- Por favor, deixem-me um pouco sozinha com ele e vão tomar algum refresco. Temos algum tempo até que nosso veículo “esquente” e vocês devam se retirar em seu aerocarro para não irem junto. Podem ficar à vontade.
Lidiane e Elmo preferiram se afastar um pouco, de mãos dadas, deixando Lídia e Jeremias batendo papo. Passaram pelo ângulo restante, onde pareciam se encontrar objetos pessoais de nauta temporal, como armários com roupas.
- Ainda bem que você é desta época – brincou Elmo. – Não gostaria de ter de abandonar tudo e todos para segui-la.
- Você não o faria por mim? Não temos empatia suficiente para esquecer o resto? – e ela sorriu com dulçor.
- Acha que eles serão felizes?
- Espero que sim, querido. Deus queira que eles sejam felizes. E que nós sejamos.
Eles se enlaçaram e uniram os seus lábios.

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Leia, de Miguel Carqueija e Melanie Evarino, "O estigma do feiticeiro negro", romance de alta fantasia recentemente lançado pela Editora Ornitorrinco (a saga da elfa nobre Gislaine Pétala e seu dragão de estimação Morte).
De Miguel Carqueija, leia também "Farei meu destino" (Giz Editorial), romance de fantasia mística com a história da "deusa da Lua", Diana, no passado e no futuro da Terra.

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