A exceção
Habib Pimentel Araújo, fruto de uma longa miscigenação que incluía imigrantes libaneses, mantinha uma perfeita saúde, até onde pode mantê-la um homem de cem anos. Enviuvara duas vezes e sua longa vida gerara uma extensa e variada progênie que chegava aos tataranetos. Nos últimos anos, beneficiado com as facilidades da Cosmonet, da telefonia celular de multi-recursos, da nanomedicina geriátrica e da moderna robótica, recolhera-se ao seu retiro de Jacarepaguá, entre árvores, cavalos e cães de estimação, serviçais autômatos e uma infinidade de livros e filmes, e com seu multicomp mantinha controle sobre os seus negócios. Entretanto, pouco ligava para a família propriamente dita.
Na primavera de 2080 inesperadamente convocou o imenso clã para um banquete ao ar livre, no vasto terreno de sua propriedade, onde entre vielas rodeadas por relva bem cuidada havia um espaço com longa mesa retangular, uma estrutura de ardósia muito bonita e lustrosa. Para muitos parentes, esperançosos em seu próximo desaparecimento, foi frustrante vê-lo ainda tão animado e vertical no dia do encontro, o bom tempo garantido por um contrato com o satélite de controle climático.
Eram seguramente uns 50 convidados, alguns dos quais o patriarca mal conhecia e vice-versa; o número de mulheres superava o dos homens e poucas crianças estavam presentes.
Mas o seu caráter de conhecido muquirana em verdade não estava comprometido: o banquete era o resultado de lenta e paciente negociação dos seus filhos ainda vivos e alguns sobrinhos, netos, genros e noras. De tanto insistirem que o velho devia dar uma festança pelos cem anos recém-completados, ele afinal acedera.
Assim lá estavam Gastão, Elísia, Gioconda, Luís Alberto, Tenório, Adib, Raquel, Gonçalo, Albertino, além de outros menos votados. Gastão, o invejoso; Gioconda, a fofoqueira; Gonçalo, o pérfido; Albertino, o mafioso; e entre os mais novos estavam Alberto, o arrivista; Eliseu, o valentão; Fedra, a ninfomaníaca; Valfrido, o estelionatário, e assim por diante; para cada um deles o ancião reservara um apelido ferino.
Enquanto os criados-robôs, pressurosos, aprontavam a imensa mesa, Habib aguardava em sua cadeira, intimamente mortificado, respondendo com monossílabos a quantos lhe dirigissem a palavra. Raquel, a bajuladora, sentara-se ao seu lado, cheia de palavras blandiciosas:
— O senhor sempre foi meu avô favorito, sabia? Eu ficaria inconsolável se soubesse que o senhor se foi...
(Significado real dessas palavras, como Habib bem sabia: primeiramente, era o único avô que ela chegara a conhecer; a segunda frase era apenas para sondar o seu estado de saúde, que Raquel desejava estar bem ruim.)
— Precisamos realizar esses encontros todo ano, papai — dizia Gastão. — O senhor com certeza não está cansado!
Ele estava, sim; cansado inclusive de ver sempre aquelas caras hipócritas. De repente, porém, algo diferente surgiu em seu campo de visão: uma menina de roupa azul, levada pela mão de Elísia, a mentecapta:
— Ei, Vovô Habib, veja quem eu trouxe! Paula, cumprimente o vovô!
— Oi, Vovô Habib! Eu sou a Paula!
— Sua bisneta — acrescentou Elísia.
— Não a conhecia — disse o milionário, forçando um sorriso. — Que idade você tem, minha filha?
— Estou com onze anos — disse ela, orgulhosamente. — E tiro boas notas!
— Estudar sempre é bom. É muito melhor do que não querer nada, a não ser parasitar os outros.
Gastão pigarreou e, sorrindo amarelo, ainda assim buscou um meio de se aproveitar da criança:
— Elísia, você e Luís sentam com a menina aqui na frente. Ela é uma das poucas pessoas que o papai não conhece...
— Por que a gente não come logo? — indagou o patriarca. — A minha voz já está muito rouca para fazer discursos e com franqueza não tenho nem vontade de fazer.
— Que bom — disse a menina, sentando-se em frente ao velho. — Eu não suporto discurso!
A louçania da menina pareceu agradar ao macróbio milionário, que deu-lhe um sorriso discreto, como se fosse uma grande concessão. Os autômatos trouxeram uma sopa de aspargos, garrafas de vinho chileno e vários acepipes. Perto, os cães e pavões já alimentados circulavam pelos verdes jardins.
Habib não podia comer muito e moderou-se, apesar da insistência com que Raquel e outros buscavam induzi-lo a ingerir coisas pesadas como pernil e toicinho; ele dava preferência aos legumes e às verduras. Só não deixou de tomar um cálice de Mosela, cuja garrafa foi aberta à sua frente pelo mordomo cibernético, Agapito.
Lá pelas tantas seu sobrinho Gonçalo, homem de largas bochechas e grandes olhos cinzentos, que sempre vestia calças que pareciam insuficientes para a sua cintura, anunciou:
— Querido titio, uma surpresa final. A Gioconda preparou uma trufa gigante, recheada com licor de ameixa, só para o senhor. Sabemos como o senhor se priva de gulodices que aprecia, mas hoje é um dia especial. Querida, traga a trufa do tio!
E Gioconda apresentou um pote de porcelana chinesa e abriu a tampa, expondo a obra-prima. Com seu marrom-escuro de chocolate fino, era um trapezóide grande e apetitoso, que valia como uma invejável sobremesa.
Os próprios parentes mais próximos, física e consanguineamente, cuidaram de limpar a mesa no trecho em frente ao velho, antecipando-se aos robôs, e apresentaram a famosa trufa.
Uma sutil modificação ocorreu na expressão de Habib, que permaneceu imóvel e silencioso diante do inesperado presente, e volveu o olhar pelos circunstantes, alguns singularmente sorridentes ou mal disfarçadamente ansiosos. O silêncio do patriarca foi contagioso e espalhou-se ao redor, gerando um clima de constrangimento.
Habib continuou a fitar a sua sêmel, tentando traduzir as expressões de todos os presentes, pelo menos os mais próximos. A garota estava simplesmente desembrulhando as suas pequenas trufas, pois várias outras, e bombons, acompanhavam o presente do velho; apenas eram muito menores.
— Vamos, papai! — encorajou Fedra. — Prove logo o seu presente!
— Foi feito com muito amor! — afirmou Gonçalo.
Habib partiu ao meio a trufa, procurando não derramar o licor. Ele nunca havia recebido amor de Gonçalo, pelo que a frase lhe soava completamente hipócrita.
— Meu querido sobrinho — observou ele finalmente — só posso agradecer tamanha gentileza, pedindo-lhe que compartilhe comigo a mesma prenda! Vamos, coma a metade dessa trufa! — e exibiu-a sobre uma colher grande.
Gonçalo empalideceu. Por um instante pareceu desfigurado enquanto o velho patriarca, de pé, o observava suspicaz, os cabelos alvos levemente sacudidos pelo galerno.
— Não, tio Habib! Este é o seu presente! O senhor deve comê-lo todo!
— É muito grande e pode me fazer mal. Não, eu acho que devo reparti-la com alguém, de preferência você, Gonçalo, que tem tanto interesse em que eu a coma. Vamos, sobrinho, pegue a sua parte.
Gonçalo deu um sorriso amarelo e não fez nenhum movimento para apanhar a oferta. Habib, sem se dar por achado, volveu o olhar para Raquel, mas esta, estranhamente, se afastou; e ele se dirigiu então para os filhos:
— Valfrido, Gastão, um de vocês então deve pegar a meia-trufa! Quem se habilita?
— A trufa é sua, papai — disse Valfrido, o estelionatário. — Bom apetite!
Mas Habib fez ouvidos moucos e continuou exibindo a metade do petisco, lendo expressões de horror e medo em todos os presentes.
— Vamos! Eu faço questão que alguém me acompanhe! Vocês têm a certeza de que ninguém quer comer esta trufa comigo?
— Eu quero, vovô!
A inesperada intervenção fez com que os olhares se dirigissem à dona da voz infantil que se pronunciara. Paula Calandreli, a bisneta. Com seu melhor sorriso, a guria estendeu o braço e pegou a metade da trufa, da mão do velhote; este parecia estar meio paralisado pela surpresa. A garota já ia levar o chocolate à boca quando se ouviu um grito feminino:
— Paula, não ponha isso na boca!
Elísia arrancou o doce da mão da espantada filha e jogou-o no chão.
— Mamãe, por que fez isso?
— Eu sei porque! — exclamou o velho. — E agora calem a boca, todos vocês, e fiquem quietos! Os meus autômatos têm ordem de disparar dardos tranqüilizantes em todos vocês!
— Ficou louco?
— Está variando, tio! Precisa de um médico!
— Autômatos não podem fazer mal a seres humanos!
— Para me proteger eles podem usar dardos soníferos, sim! Atrevam-se a me tocar! E é bom que ninguém vá embora, ou chamarei a polícia e todos os maiores de idade aqui presentes serão acusados por tentativa de homicídio! Agora sentem-se todos, antes que eu perca a paciência!
Ante a tropa de choque de robôs, todos empunhando pistolas anestésicas, os presentes se conformaram a sentar entre protestos.
— E agora, Doutor Queluz, é a sua vez!
Da extremidade da mesa levantou-se e se aproximou um verdadeiro man in black, não faltando os óculos escuros: portando uma valise 007, pôs-se de pé em frente ao patriarca e próximo à ainda estarrecida menina.
— Afinal, que comédia é essa? — ainda protestou Gonçalo.
— Sim, pai! — acrescentou Gastão. — Acabe com isso, o senhor não está legal...
— Calem a boca os dois! — trovejou o ancião. — Este homem aqui, que vocês não conheciam, é o Dr. Bonaparte Queluz, um grande jurista e delegado da Polícia Federal. E vamos ao que interessa!
— Em primeiro lugar, sei muito bem que vocês aqui pretendiam me envenenar com essa trufa. Oh, calem esses protestos! Nem adianta, pois o material será examinado.
Enquanto ele falava, o Dr. Queluz silenciosamente recolheu a metade da trufa, que Elísia jogara fora.
— E agora — prosseguiu Habib — permitam-me comunicar a minha decisão. Esta menina, que eu nem conhecia, Paula, que é inocente de toda essa trama sórdida, ela será a minha herdeira universal. E podem crer que eu pretendo ainda estar vivo quando ela chegar à maioridade! Tirem o cavalo da chuva, pois nenhum de vocês vai tripudiar sobre o meu cadáver!
Fez-se um silêncio terrível e a pobre menina, voltando-se para os pais, ergueu a sua queixa dolorosa:
— Mamãe, papai, vocês iam mesmo matar o Vovô Habib? Iam mesmo fazer uma coisa tão feia?
O silêncio voltou e durou mais alguns segundos até a mãe embaraçada exclamar da maneira mais inconvincente possível:
— Mas é claro que não, querida! Eu e seu pai jamais iríamos... não sabíamos de nada...
A menina passou por baixo da mesa e se abraçou com o ancião, pondo-se a chorar:
— Como puderam... como puderam fazer isso?
O Dr. Queluz, tendo guardado o material recolhido numa capanga, fez o seu pronunciamento:
— Aconselho a todos os presentes permanecerem na cidade nos próximos dias. Logo teremos o resultado da análise e todos os convivas estarão sujeitos a ação penal por tentativa de homicídio, se confirmado o envenenamento da trufa.
Habib afagou os cabelos de Paula:
— Vá com seus pais, menina. Infelizmente você terá que aguentá-los. E agora, senhoras e senhores, peço que todos se retirem da minha propriedade. A festa acabou!
(Este conto encontra-se na coletãnea "Nas garras do futuro", publicada na livraria-editora virtual Agbook em 2012)
Leia do mesmo autor: "O estigma do feiticeiro negro", alta fantasia (co-autora Melanie Evarino) (Editora Ornitorrinco, Petrópolis) e "Farei meu destino", fantasia mística (Giz Editorial, São Paulo).
Habib Pimentel Araújo, fruto de uma longa miscigenação que incluía imigrantes libaneses, mantinha uma perfeita saúde, até onde pode mantê-la um homem de cem anos. Enviuvara duas vezes e sua longa vida gerara uma extensa e variada progênie que chegava aos tataranetos. Nos últimos anos, beneficiado com as facilidades da Cosmonet, da telefonia celular de multi-recursos, da nanomedicina geriátrica e da moderna robótica, recolhera-se ao seu retiro de Jacarepaguá, entre árvores, cavalos e cães de estimação, serviçais autômatos e uma infinidade de livros e filmes, e com seu multicomp mantinha controle sobre os seus negócios. Entretanto, pouco ligava para a família propriamente dita.
Na primavera de 2080 inesperadamente convocou o imenso clã para um banquete ao ar livre, no vasto terreno de sua propriedade, onde entre vielas rodeadas por relva bem cuidada havia um espaço com longa mesa retangular, uma estrutura de ardósia muito bonita e lustrosa. Para muitos parentes, esperançosos em seu próximo desaparecimento, foi frustrante vê-lo ainda tão animado e vertical no dia do encontro, o bom tempo garantido por um contrato com o satélite de controle climático.
Eram seguramente uns 50 convidados, alguns dos quais o patriarca mal conhecia e vice-versa; o número de mulheres superava o dos homens e poucas crianças estavam presentes.
Mas o seu caráter de conhecido muquirana em verdade não estava comprometido: o banquete era o resultado de lenta e paciente negociação dos seus filhos ainda vivos e alguns sobrinhos, netos, genros e noras. De tanto insistirem que o velho devia dar uma festança pelos cem anos recém-completados, ele afinal acedera.
Assim lá estavam Gastão, Elísia, Gioconda, Luís Alberto, Tenório, Adib, Raquel, Gonçalo, Albertino, além de outros menos votados. Gastão, o invejoso; Gioconda, a fofoqueira; Gonçalo, o pérfido; Albertino, o mafioso; e entre os mais novos estavam Alberto, o arrivista; Eliseu, o valentão; Fedra, a ninfomaníaca; Valfrido, o estelionatário, e assim por diante; para cada um deles o ancião reservara um apelido ferino.
Enquanto os criados-robôs, pressurosos, aprontavam a imensa mesa, Habib aguardava em sua cadeira, intimamente mortificado, respondendo com monossílabos a quantos lhe dirigissem a palavra. Raquel, a bajuladora, sentara-se ao seu lado, cheia de palavras blandiciosas:
— O senhor sempre foi meu avô favorito, sabia? Eu ficaria inconsolável se soubesse que o senhor se foi...
(Significado real dessas palavras, como Habib bem sabia: primeiramente, era o único avô que ela chegara a conhecer; a segunda frase era apenas para sondar o seu estado de saúde, que Raquel desejava estar bem ruim.)
— Precisamos realizar esses encontros todo ano, papai — dizia Gastão. — O senhor com certeza não está cansado!
Ele estava, sim; cansado inclusive de ver sempre aquelas caras hipócritas. De repente, porém, algo diferente surgiu em seu campo de visão: uma menina de roupa azul, levada pela mão de Elísia, a mentecapta:
— Ei, Vovô Habib, veja quem eu trouxe! Paula, cumprimente o vovô!
— Oi, Vovô Habib! Eu sou a Paula!
— Sua bisneta — acrescentou Elísia.
— Não a conhecia — disse o milionário, forçando um sorriso. — Que idade você tem, minha filha?
— Estou com onze anos — disse ela, orgulhosamente. — E tiro boas notas!
— Estudar sempre é bom. É muito melhor do que não querer nada, a não ser parasitar os outros.
Gastão pigarreou e, sorrindo amarelo, ainda assim buscou um meio de se aproveitar da criança:
— Elísia, você e Luís sentam com a menina aqui na frente. Ela é uma das poucas pessoas que o papai não conhece...
— Por que a gente não come logo? — indagou o patriarca. — A minha voz já está muito rouca para fazer discursos e com franqueza não tenho nem vontade de fazer.
— Que bom — disse a menina, sentando-se em frente ao velho. — Eu não suporto discurso!
A louçania da menina pareceu agradar ao macróbio milionário, que deu-lhe um sorriso discreto, como se fosse uma grande concessão. Os autômatos trouxeram uma sopa de aspargos, garrafas de vinho chileno e vários acepipes. Perto, os cães e pavões já alimentados circulavam pelos verdes jardins.
Habib não podia comer muito e moderou-se, apesar da insistência com que Raquel e outros buscavam induzi-lo a ingerir coisas pesadas como pernil e toicinho; ele dava preferência aos legumes e às verduras. Só não deixou de tomar um cálice de Mosela, cuja garrafa foi aberta à sua frente pelo mordomo cibernético, Agapito.
Lá pelas tantas seu sobrinho Gonçalo, homem de largas bochechas e grandes olhos cinzentos, que sempre vestia calças que pareciam insuficientes para a sua cintura, anunciou:
— Querido titio, uma surpresa final. A Gioconda preparou uma trufa gigante, recheada com licor de ameixa, só para o senhor. Sabemos como o senhor se priva de gulodices que aprecia, mas hoje é um dia especial. Querida, traga a trufa do tio!
E Gioconda apresentou um pote de porcelana chinesa e abriu a tampa, expondo a obra-prima. Com seu marrom-escuro de chocolate fino, era um trapezóide grande e apetitoso, que valia como uma invejável sobremesa.
Os próprios parentes mais próximos, física e consanguineamente, cuidaram de limpar a mesa no trecho em frente ao velho, antecipando-se aos robôs, e apresentaram a famosa trufa.
Uma sutil modificação ocorreu na expressão de Habib, que permaneceu imóvel e silencioso diante do inesperado presente, e volveu o olhar pelos circunstantes, alguns singularmente sorridentes ou mal disfarçadamente ansiosos. O silêncio do patriarca foi contagioso e espalhou-se ao redor, gerando um clima de constrangimento.
Habib continuou a fitar a sua sêmel, tentando traduzir as expressões de todos os presentes, pelo menos os mais próximos. A garota estava simplesmente desembrulhando as suas pequenas trufas, pois várias outras, e bombons, acompanhavam o presente do velho; apenas eram muito menores.
— Vamos, papai! — encorajou Fedra. — Prove logo o seu presente!
— Foi feito com muito amor! — afirmou Gonçalo.
Habib partiu ao meio a trufa, procurando não derramar o licor. Ele nunca havia recebido amor de Gonçalo, pelo que a frase lhe soava completamente hipócrita.
— Meu querido sobrinho — observou ele finalmente — só posso agradecer tamanha gentileza, pedindo-lhe que compartilhe comigo a mesma prenda! Vamos, coma a metade dessa trufa! — e exibiu-a sobre uma colher grande.
Gonçalo empalideceu. Por um instante pareceu desfigurado enquanto o velho patriarca, de pé, o observava suspicaz, os cabelos alvos levemente sacudidos pelo galerno.
— Não, tio Habib! Este é o seu presente! O senhor deve comê-lo todo!
— É muito grande e pode me fazer mal. Não, eu acho que devo reparti-la com alguém, de preferência você, Gonçalo, que tem tanto interesse em que eu a coma. Vamos, sobrinho, pegue a sua parte.
Gonçalo deu um sorriso amarelo e não fez nenhum movimento para apanhar a oferta. Habib, sem se dar por achado, volveu o olhar para Raquel, mas esta, estranhamente, se afastou; e ele se dirigiu então para os filhos:
— Valfrido, Gastão, um de vocês então deve pegar a meia-trufa! Quem se habilita?
— A trufa é sua, papai — disse Valfrido, o estelionatário. — Bom apetite!
Mas Habib fez ouvidos moucos e continuou exibindo a metade do petisco, lendo expressões de horror e medo em todos os presentes.
— Vamos! Eu faço questão que alguém me acompanhe! Vocês têm a certeza de que ninguém quer comer esta trufa comigo?
— Eu quero, vovô!
A inesperada intervenção fez com que os olhares se dirigissem à dona da voz infantil que se pronunciara. Paula Calandreli, a bisneta. Com seu melhor sorriso, a guria estendeu o braço e pegou a metade da trufa, da mão do velhote; este parecia estar meio paralisado pela surpresa. A garota já ia levar o chocolate à boca quando se ouviu um grito feminino:
— Paula, não ponha isso na boca!
Elísia arrancou o doce da mão da espantada filha e jogou-o no chão.
— Mamãe, por que fez isso?
— Eu sei porque! — exclamou o velho. — E agora calem a boca, todos vocês, e fiquem quietos! Os meus autômatos têm ordem de disparar dardos tranqüilizantes em todos vocês!
— Ficou louco?
— Está variando, tio! Precisa de um médico!
— Autômatos não podem fazer mal a seres humanos!
— Para me proteger eles podem usar dardos soníferos, sim! Atrevam-se a me tocar! E é bom que ninguém vá embora, ou chamarei a polícia e todos os maiores de idade aqui presentes serão acusados por tentativa de homicídio! Agora sentem-se todos, antes que eu perca a paciência!
Ante a tropa de choque de robôs, todos empunhando pistolas anestésicas, os presentes se conformaram a sentar entre protestos.
— E agora, Doutor Queluz, é a sua vez!
Da extremidade da mesa levantou-se e se aproximou um verdadeiro man in black, não faltando os óculos escuros: portando uma valise 007, pôs-se de pé em frente ao patriarca e próximo à ainda estarrecida menina.
— Afinal, que comédia é essa? — ainda protestou Gonçalo.
— Sim, pai! — acrescentou Gastão. — Acabe com isso, o senhor não está legal...
— Calem a boca os dois! — trovejou o ancião. — Este homem aqui, que vocês não conheciam, é o Dr. Bonaparte Queluz, um grande jurista e delegado da Polícia Federal. E vamos ao que interessa!
— Em primeiro lugar, sei muito bem que vocês aqui pretendiam me envenenar com essa trufa. Oh, calem esses protestos! Nem adianta, pois o material será examinado.
Enquanto ele falava, o Dr. Queluz silenciosamente recolheu a metade da trufa, que Elísia jogara fora.
— E agora — prosseguiu Habib — permitam-me comunicar a minha decisão. Esta menina, que eu nem conhecia, Paula, que é inocente de toda essa trama sórdida, ela será a minha herdeira universal. E podem crer que eu pretendo ainda estar vivo quando ela chegar à maioridade! Tirem o cavalo da chuva, pois nenhum de vocês vai tripudiar sobre o meu cadáver!
Fez-se um silêncio terrível e a pobre menina, voltando-se para os pais, ergueu a sua queixa dolorosa:
— Mamãe, papai, vocês iam mesmo matar o Vovô Habib? Iam mesmo fazer uma coisa tão feia?
O silêncio voltou e durou mais alguns segundos até a mãe embaraçada exclamar da maneira mais inconvincente possível:
— Mas é claro que não, querida! Eu e seu pai jamais iríamos... não sabíamos de nada...
A menina passou por baixo da mesa e se abraçou com o ancião, pondo-se a chorar:
— Como puderam... como puderam fazer isso?
O Dr. Queluz, tendo guardado o material recolhido numa capanga, fez o seu pronunciamento:
— Aconselho a todos os presentes permanecerem na cidade nos próximos dias. Logo teremos o resultado da análise e todos os convivas estarão sujeitos a ação penal por tentativa de homicídio, se confirmado o envenenamento da trufa.
Habib afagou os cabelos de Paula:
— Vá com seus pais, menina. Infelizmente você terá que aguentá-los. E agora, senhoras e senhores, peço que todos se retirem da minha propriedade. A festa acabou!
(Este conto encontra-se na coletãnea "Nas garras do futuro", publicada na livraria-editora virtual Agbook em 2012)
Leia do mesmo autor: "O estigma do feiticeiro negro", alta fantasia (co-autora Melanie Evarino) (Editora Ornitorrinco, Petrópolis) e "Farei meu destino", fantasia mística (Giz Editorial, São Paulo).