O Senhor Robélio depreca ao Juiz

"Cidade de Marte, 27 de abril de 2416"



Eu, Robélio Mathias Alves, Cidadão da Colônia de Marte, industrial aposentado e proprietário, matricula 0103.461.340-5, no pleno gozo dos meus direitos civis e constitucionais e de minhas faculdades mentais, utilizando as minhas prerrogativas de cidadão contribuinte, por meio deste instrumento DEPRECO ao Meritíssimo Senhor Juiz do 3º Tribunal de Causas Regionais, Dr. Gugliano Menta, e passo a relatar a Vossa Excelência as razões e os tristes fatos que dão fundamento e origem a esta minha deprecação:

Como Vossa Excelência já o sabe, minha família, de respeitável genealogia, emigrou para Marte há três gerações e aqui se estabeleceu, participando ativamente das atividades de terramorfização e da construção das grandes cúpulas, bem como da exploração dos bolsões subterrâneos e da domesticação das espécies nativas que ai existiam.
Hoje, em Cidade de Marte, somente eu permaneço, já que todos os meus parentes, inclusive minha esposa e meus filhos, preferiram ir morar em outras colônias marcianas, segundo me disseram, para evitar perturbar-me em meu sossego – o que bem demonstra a alta consideração que minha família tem por mim.
Pois bem, Meritíssimo, embora eu seja um homem pacífico, respeitável e ordeiro, assim mesmo minha vida foi, recentemente, agitada por acontecimentos deploráveis nos quais transparece a minha inocência bem como a da Queridinha, a amável criatura da qual irei agora falar.
Eu tinha a Queridinha há já cinco anos terrestres, nunca me acostumei com o calendário marciano, já que todos os nossos padrões culturais estão baseados na Terra. Lembro esse detalhe, Meritíssimo, porque gosto muito de detalhes, sou um homem muito detalhista e metódico e pondero muito tudo o que faço, digo ou escrevo, e quem me conhece sabe que este é meu estilo de vida irremovível, o estilo de quem sabe o que quer, o que faz, o que diz e o que escreve, estou sendo claro? Então, Meritíssimo Senhor Juiz, prosseguindo esta muito dolorosa porém necessária Deprecação, lembro a V. Excia. que a minha modesta mansão possui todo um agradável bosque cultivado especialmente para a criação de hidras unicéfalas, inclusive com um tanque especialmente reservado para o lazer dessas tão agradáveis criaturinhas, reconstituindo da melhor maneira possível o ambiente do lagos subterrâneos de Marte, com luz polarizada e prismática, etc. Esse bosque ocupa um dos ângulos do quadrilátero de minha propriedade, justamente o que aponta para o nordeste, onde se situa a Comunidade Operária, e posso garantir que somente escolhi aquela situação porque, nesse trecho, o solo era mais facilmente escavável e adaptável às necessidades da Queridinha, que aí pôde crescer feliz e saudável, enquanto os fados não se inverteram, para atrapalhar tudo.
Tenho certeza de que V. Excia., Meritíssimo Juiz, está acompanhando com atenção e interesse estas minhas amenas e despretensiosas observações, e certamente não está se cansando com a objetiva exposição que venho desenvolvendo. Pois bem, Meritíssimo: é neste ponto da minha humilde deprecação que entra o Honório. Apresso-me a explicar que Honório, desde que toda a criadagem da família acompanhou os meus parentes, é o único ser humano a quem eu honrei com a magnífica permissão de habitar em caráter permanente na Mansão Mathias Alves. Todos os serviços vinham sendo executados a contento pelos autômatos, normalmente os melhores empregados, que não exigem salários, redução de jornada, férias, licenças e outras bobajadas conhecidas pelo termo genérico de direitos trabalhistas. Eu apenas admiti o Honório porque o veterinário da Queridinha, o Dr. Cosme, garantiu-me que somente um ser humano poderia ter a necessária sensibilidade para bem cuidar de uma delicada hidra. Os robôs, disse-me ele, são de metal e muito duros. Para dar banho na Queridinha, esfregar-lhe a pele tenra, catar-lhe os indesejáveis piolhos, eram preferíveis mãos humanas, de carne e osso, que não machucariam a pobrezinha.
Ah, velho imprudente, o Cosme! Por causa dele a tragédia se abateu sobre minha casa! Logo eu, que sou tão bom e nunca desejei mal a ninguém! Que o diabo o carregue... podia ao menos ter-me ajudado a escolher melhor a pessoa. Esse Honório chegou com um monte de cartas de recomendação e exigiu nada menos do que dois salários mínimos. Que desplante! Ainda teve a petulância de dizer que aceitaria ser o mordomo da mansão, com uniforme e tudo, e que cuidar da Queridinha seria apenas uma das suas atribuições. Eu pensei em recusá-lo de saída, mas ai disse com os meus botões que, afinal, dispor de um mordomo não haveria de ser tão mau negócio assim. O homem tinha lá suas habilidades, sabia cuidar do pomar de groselheiras, programar os robôs, lavar o aerocarro. Fiz a experiência e, durante algum tempo, me pareceu que, no fim de contas, ele não era tão má pessoa assim e que até tratava a Queridinha muito bem, como ela merecia. Hoje fico pensando se não seria tudo fingimento para se aproveitar da minha generosidade. Mas, como a Queridinha parecia estar feliz e bem alimentada, eu tudo tolerei, até mesmo a folga dominical reclamada pelo Honório.
Meritíssimo, eu sou um homem bom, paciente e tolerante, conforme o Senhor deve estar percebendo. Mas gosto de ser atendido por aqueles que dependem de mim. Na ultima terça-feira, 23 de abril, precisei me ausentar para tratar de negócios inadiáveis em Bradburnia. Chamei então Honório e fiz-lhe algumas recomendações elementares. Tão pouco exigente eu fui que não gastei mais do que três horas explicando ao Sr. Honório tudo o que esperava dele na minha ausência.
E com tudo isso, Meritíssimo, o Sr. Honório descuidou do mais importante: a alimentação da minha Queridinha! Acredito que ele até cumpriu esse elementar dever até o domingo, quando, sem abrir mão da maldita folga, foi-se embora para alguma dissipação, olvidando de programar os criados-robôs para a indeclinável tarefa de cuidar do bem estar da bichinha. E o fato é que, deixada sem sua ração até o meio da tarde, a Queridinha começou a dar sinais de inquietação. Por fim, vendo que ninguém atendia aos seus aflitos e dolorosos rogos, coitada, resolveu fugir em busca de alimento: escavou por baixo do muro e, emergindo do lado oposto, partiu em direção à Comunidade Operária. Ora, o mínimo que os miseráveis habitantes locais poderiam ter feito era oferecer suas galinhas, seus perus e seus cabritos à Queridinha. Não o fizeram e, para piorar, numa revoltante falta de solidariedade, trancaram-se em seus barracos ou fugiram levando seus bichos. Vossa Excelência sabe certamente que uma hidra unicéfala como a Queridinha, espécie de dinossauro marciano, pesa umas cinco toneladas e pode facilmente, se assim o quiser, arrebentar paredes que não sejam muito reforçadas. Assim, a Queridinha terminou por derrubar a parede do convento das Ursulinas, onde devorou a madre superiora, já que as demais freiras conseguiram escapar. Depois deitou-se no claustro para repousar e fazer a digestão. Mas aí! Em vez disso começou a passar mal, sentindo dores horríveis. Quando eu soube do caso e avisei o Cosme, já era tarde demais. A Queridinha tinha comido as bananeiras do convento, numa tentativa de conseguir um antídoto, o que só causou uma diarréia, e retornou para a mansão na madrugada seguinte; Honório encontrou-a em petição de miséria e me chamou. O Cosme já não pôde fazer nada. Ela agonizou durante três dias e, como se não bastasse todo esse sofrimento, ainda tive que mobilizar o meu advogado, Dr. Percival, para bloquear as pretensões acintosas das freiras que, sem respeitar o estado em que minha pobre e injustiçada mascote estava, ainda queriam que ela fosse apreendida.
Meritíssimo Senhor Juiz, e aqui eu depreco.
Considerando que:

— A Queridinha era, pode-se dizer, a razão da minha vida;
— A Madre Superiora — com imprudência indigna de uma religiosa — tornara-se gorda e indigesta em demasia, sendo inadequada para o delicado aparelho digestivo de uma hidra;
— Uma religiosa tem a obrigação de zelar pelos seus atos, evitando toda e qualquer leviandade;

Concluo, Meritíssimo, que a Madre Anselma é absolutamente culpada pela morte prematura da infeliz e saudosa Queridinha. Essa mulher fez muito mal em concentrar sua dieta em carboidratos, pois deveria ter tido a sensatez de prever que, se um dia fosse comida por uma hidra de estimação, poderia causar danos ao inocente animal. Não o fez e o resultado foi essa tragédia. Ela deve estar no inferno.
E assim, Meritíssimo, eu chego a minha






DEPRECAÇÃO:

Depreco a Vossa Excelência que obrigue os moradores da Comunidade Operária ao pagamento — sob pena de prisão com trabalhos forçados — de uma indenização no valor de 250 milhões de escudos marcianos, pela falta de compaixão pela Queridinha, numa atitude revoltante e ignominiosa;
Depreco que o Sr. Honório, pela sua imperdoável negligência, seja exilado para uma das luas de Júpiter, pelos próximos cinquenta anos;
Depreco enfim, que o Convento das Ursulinas seja condenado a pagar-me uma indenização de 500 milhões de escudos, pela perda irreparável da saudosa e inesquecível Queridinha, minha indefesa e adorável hidra unicéfala. Ou isso, ou a penhora de bens dessa ordem.

Meritíssimo Senhor Juiz, encerro aqui a minha angustiada DEPRECAÇÃO. Despedindo-me, protesto junto a V. Excia. que, com a simplicidade e a humildade de quem só deseja o bem geral, tudo o que eu peço é que se faça justiça, aliviando o meu coração magoado pelas maldades das pessoas e pela dilacerante perda de minha tão estimada Queridinha.

Respeitosamente,
Robélio Mathias Alves.”


(imagem pinterest)


Miguel Carqueija é autor de "Farei meu destino" (Giz Editorial), romance de fantasia mística: história da "deusa da Lua" (Diana) e sua relação com o passado e o futuro da Terra; e "O estigma do feiticeiro negro" (Editora Ornitorrinco) (co-autora Melanie Evarino), romance de alta fantasia passado em Terra Alternativa: a cruzada da elfa guerreira Gislaine Pétala e seu dragão Morte contra as forças do Mal.