QUÊ LUGAR FANTÁSTICO PARA MORRER!
10 de outubro de 2014. - Em algum lugar do espaço profundo.
Sob a gelada luz das estrelas, trinta figuras em armadura espacial trabalham ao redor da Wodan, na escura e fria superfície de Hidalgo-944. O pérfido Olaf Ulfrum imagina-se a salvo; pois a carga de folhas de Akok e mantimentos que comprara em Ganímedes, está intacta. Seus homens extraíram da rocha oxigênio, hidrogênio e outros elementos para o funcionamento dos motores. Fabricaram água e o hidrogênio para o reator de fissão.
Sua prisioneira, a Ilustre Grande Dama Ingeborg, de Germânia III, de Marte e da Terra; aparentava preocupação. Talvez; pousando nesse asteróide, há 25 dias, a nave Hércules apareceria para resgatá-la numa operação de comando, o que não aconteceu. Aparentemente Olaf despistara Aldo e seus tripulantes com a camuflagem. Mas ela ainda tinha uma carta na mão...
Contudo, hoje Olaf parecia mais animado e contente; dirigindo as operações. A ausência da Hércules parecia fazer-lhe bem. O imediato Regert aproximou-se:
–Antes de dez dias padrão; estaremos prontos para partir, capitão.
–Excelente! Guardem tudo o que não se precisar e pintem o casco de preto. Seremos invisíveis no espaço profundo. Devíamos ter feito isso ainda em Ganímedes, antes de partir, mas não deu tempo. Agora aqui temos todo o tempo do mundo.
–Para onde vamos?
–Ficamos aqui, Regert.
–Se eles suspeitarem... A Hércules estava a menos de dois dias de nós, quando nos escondemos aqui. Eles são mais rápidos...
–Mas não nos viram e devem estar bem longe. Hidalgo se move rápido e nos afastará deles sem que liguemos a máquinas, que eles podem detectar.
–Aparentemente nos perderam, mas nós também os perdemos, capitão.
–Espero que desistam enquanto a rocha nos leva longe.
–Mas Hidalgo nos leva perto de Saturno, capitão... Como voltamos?
–Não voltamos. Hidalgo nos levará de volta. Há bastante comida e água; fizemos combustível e completamos a reserva. Estamos bem.
–Mas isso vai demorar mais de dois anos!
–Não. No apogeu, esperamos um mês e partimos, aproveitando o impulso.
–E a Ilustre Dama?
–É a nossa garantia. Chegando em casa, a devolvemos de algum modo.
–Penso se ele estará lá nos esperando... E se ainda teremos casa.
–É bem provável que tenha se perdido no espaço. Esses terrestres recém estão engatinhando onde nós somos mestres.
–Não subestime os terrestres. Eles têm muitos recursos, ao que me consta.
–Eu também! – disse Olaf rindo, confiante em si mesmo, depois de recuperar sua autoconfiança nesses dias de trabalho duro.
Regert afastou-se enojado da petulância do seu senhor, que demonstrara covardia e cinismo, fugindo da luta, abandonando seus homens no espaço, para o inimigo resgatá-los e se não fosse pela prisioneira, também teria abandonado Petersen na carcaça do seu avião à deriva.
Inge percebera que os troianos eram nobres, inteligentes e bons. A honra era importante para eles. Olaf não tinha honra, mas tinha o comando e isso devia ser respeitado numa nave espacial. Não aprovavam as atitudes do seu capitão, mas eram disciplinados e respeitavam a hierarquia.
Petersen virou amigo incondicional de Inge, que não descansara um minuto nesses meses todos na sutil tarefa de minar a fidelidade dos tripulantes. Já tinha dois deles garantidos: Bjorn Petersen e Schultz, pilotos de caça, ambos importantes, com liderança e prestígio entre os demais. Mas o grande objetivo da jovem era o comandante imediato Regert.
–E já era tempo de cair encima dele – pensou.
*******.
12 de novembro de 2014.
475 milhões de kms antes de chegar a Saturno.
Quando Hidalgo-944 chegou ao apogeu, o material de trabalho foi recolhido, e a nave pintada pronta a decolar. De repente detectaram; duzentos mil kms à frente...
–Capitão! Temos companhia! – disse Regert.
–Não pode ser! – disse Olaf, sentindo um estremecimento.
–É sim! – disse Inge, divertida; chegando na ponte nesse momento para assistir de camarote à reação do senhor feudal.
–Maldito! Se tivesse adivinhado teria abandonado esta rocha bem antes.
–Nem assim você escaparia – retrucou Inge – semanas atrás fomos seguidos por uma patrulheira que pousou do outro lado. Temos sido vigiados diariamente pelo capitão Jacques Cartier e o cabo Wassermann.
–E a senhora como sabe disso? – gritou Olaf tentando dominar sua fúria.
–Tenho conversado com eles todos os dias desde que chegaram.
–E por quê não me disse?
–Não perguntou.
Ulfrum perdeu a compostura outra vez e gritou, puxando a pistola:
–Alguém a bordo a está ajudando! Matarei o desgraçado! Quero saber quem foi! Quem me entregar o traidor para que eu o mate ganha metade da carga de chá!
Os tripulantes indignaram-se. Olaf estava indo longe demais.
–Schultz! Meta essa mulher no porão. Já!
–Mas, capitão, ela está grávida...
–Obedeça!
Ambos olharam-se como feras. A mão de Schultz desceu devagar à pistola.
–É agora – pensou Inge esperançada.
Mas não. O alarme do comunicador tocou a tempo de salvar a situação.
*******.
O rosto de Aldo enchia a tela com seu olhar mais temível.
–É o último prazo para devolver minha mulher, maldito.
–Não.
–Seja razoável, estamos mais longe do que nunca ninguém jamais esteve. Já sei que pretende permanecer na rocha, mas não vou permitir.
–Venha me tirar daqui, terrestre.
–Sabe que posso desintegrar o asteróide.
–Não me faça rir.
–Devolva a Inge se quer que seus tripulantes vivam.
–Capitão! Ele não está brincando. Devolva a mulher e talvez nos salvemos!
Aldo não deixou a peteca cair:
–Já ouviu seu tripulante. Venha para cima que não tenho tempo a perder.
Olaf agarrou Inge pelos cabelos e a colocou frente da tela do comunicador, encostando o cano da pistola na sua cabeça.
–Veja, terrestre! – gritou Olaf – Queria vê-la morrer? Agora vai ver!
*******.
Nessa altura dos acontecimentos, os tripulantes da Wodan já tinham visto as três patrulheiras suspensas; a pouca distância com os canhões apontados, e logo se juntaram três caças em atitude ameaçadora.
A Hércules aproximava-se devagar com os manobradores à potência mínima, com os quatro tubos de torpedos carregados e armados. Então ouviram a ordem do capitão terrestre:
–Sala de torpedos de proa! Ao meu comando!
–Sim senhor!
Com a mão esquerda, Olaf segurava Inge pelo cabelo, com tanta violência que lhe arrancava lágrimas e fios de cabelo dourado. Na mão direita, segurava a pistola phaser milkara, cujo cano apertava o lado direito da cabeça da mulher, machucando-a até sangrar. Apesar da cena, Aldo não podia mostrar fraqueza. Por isso disse:
–Está a fim de morrer hoje, maldito. Aperte o gatilho. O que está esperando?
–Se não retira suas naves a mato.
–Não me faça rir. Nada feito. Você dispara, eu disparo.
–Retire suas naves já, estou mandando!
–Não recebo ordens de ninguém e muito menos de um maldito bastardo como você. Aperte o gatilho. Quando a cabeça dela se desintegrar, eu atiro.
A tripulação da Wodan estava em pânico:
–Capitão!
–Agora não, Regert!
–O quê está esperando, maldito? – disse Aldo – Sua mão treme. Será frio?
–Você não vai atirar!
–Paga para ver? Ninguém ficará vivo para contar a história... Mas se algum de vocês pegar um espaço-moto e se esconder longe da explosão; prometo levá-lo de volta a Enéas-1172 para compor uma ópera ao respeito.
–Chega, capitão! Solte-a! – disse Petersen.
Olaf virou-se e viu a ponte invadida por uma sólida formação de rostos sérios.
–Como se atreve a me dar ordens?
–Estou suplicando, capitão! Solte a Ilustre Dama! Essa pistola pode disparar-se e todos morremos! Eles nos superam em armamento e escudos!
–Terrestre!... Soltarei sua mulher aqui na rocha se você se colocar a cem mil kms daqui! Pode pegá-la assim que partirmos!
–Sem trato. Presumo que você quer matá-la antes de ir.
–Não a matarei.
–Não acredito em você. Além do mais, ninguém que rapta e violenta minha esposa grávida, fica vivo para contar aos outros nas festas!
–Eu não violentei sua mulher.
–E quem me garante? Melhor te mato.
Regert aproximou-se do comunicador:
–É verdade, capitão. Ele não a tocou. Juro em nome de toda a tripulação.
–Pode ser que minta para se salvar.
–É verdade – interveio Petersen – o capitão não a tocou. No primeiro dia, ela arrancou-lhe dois dentes com um chute. A Grande Dama é uma ótima lutadora!
A tripulação começou a rir apesar da situação. Aldo confirmou o que já sabia. Olaf estava vermelho de fúria e deu um puxão nos cabelos dela, que gritou:
–Aldo! Chega de conversa! Atira de uma vez! O Walhalla me espera!
–Já ouviu minha esposa, maldito verme! Ela é mais nobre do que você, seu bastardo nojento. Uma Reverenda Sacerdotisa Odínica não tem medo da morte!
Petersen dirigiu-se aos outros:
–Se ela morrer, todos morremos. Não devemos deixar que o capitão a mate!
Meia dúzia de pistolas apontou à cabeça de Ulfrum.
–Capitão, chega de estupidez! Largue a pistola e a mulher! – disse Schultz.
–É um motim; malditos covardes? Têm medo de morrer em batalha? – gritou Olaf apontando sua arma para os tripulantes.
–Não é medo, capitão. Só não queremos morrer por nada – disse Petersen.
–Se atirar em nós; atiramos em você – disse Schultz – A mulher no meio de nós morre e os terrestres nos matam por nada; por sua estupidez; capitão.
–Regert! Atire neles!
–Não, capitão – disse o imediato sacando a pistola e apontando-lhe à cabeça.
–Até tu, Regert? – murmurou Olaf estarrecido.
Olaf Ulfrum, senhor feudal de Enéas-1172, não tinha uma mente preparada para tanto. Seu poder era hereditário, não era adquirido com façanhas. Olaf não realizava façanha nenhuma. Só fazia burrices de jovem mimado. Por isso desmaiou.
*******.
Que Ulfrum era um covarde que não realizava façanhas, era fartamente sabido a bordo; mas Regert sim as realizava. Aldo assistiu à discussão e viu que Inge não corria perigo. Sabendo que Aldo não dispararia, Regert agiu por conta:
–Vamos sair daqui! Ligar máquinas, carregar acumuladores, fechar escotilhas, preparar para zarpar em dois minutos! Petersen! Assuma o leme!
–Para onde vamos?
–O mais longe possível. Não atirarão em nós enquanto a mulher estiver viva.
–Devíamos entregá-la enquanto o capitão está desmaiado.
–Se a entregamos acho que eles nos matarão de qualquer maneira.
–Podemos nos salvar, comandante. Entregando Ulfrum e a Grande Dama.
Regert fitou de soslaio o piloto. Petersen tinha motivos de sobra para odiar a Olaf, que os levara tão longe das suas famílias.
–Por mais ruim que ele seja, é nosso capitão – disse Regert por fim.
–Grande coisa! – cuspiu Petersen.
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–A Wodan vai embora – disse Nebenka.
–Traçar curso de perseguição a dez mil kms atrás deles – ordenou Aldo.
–Fostes convincente, querido – disse Regina – engoliram teu blefe.
–Boa atuação – disse Boris – excelente blefe, embora perigoso.
–Não era blefe. Ainda não perceberam? Se ele a tivesse matado, eu não
pensaria duas vezes... Eu destruiria esse asteróide!
Valerión aproximou-se da poltrona de comando, acendendo seu cachimbo.
–Não corre perigo. Estão com medo e não demora em produzir-se um motim.
–Concordo com o senhor, Doutor – interveio Nebenka sem tirar os olhos dos comandos – resgataremos nossa Reverenda sem perigo para ela nem para o bebê.
–Agradeço seu otimismo, tenente – disse Aldo visivelmente cansado – e de uma coisa estou certo: matarei esse maldito!
*******.
Olaf acordou mais calmo ao ver que estavam no espaço e foi à ponte:
–Escapamos?
–Sim – respondeu Regert – apesar de que o senhor fez tudo o que pôde para nos transformar em átomos dispersos.
–Fui um cretino – reconheceu ele.
–Celebro muito que o admita.
–Deixarei tudo em suas mãos, Regert, você é mais ponderado do que eu.
–Em minhas mãos? Depois de tudo o que você aprontou, devia deixá-lo
decidir aonde vai se esconder! Não acho nenhum lugar seguro aqui no meio do nada!
–Por favor, Regert! Esqueça o que aconteceu! Estava fora de mim. Tire-me desta armadilha em que me meti!
–Que nos meteu a todos, que nada temos a ver com seus caprichos. Agora somos cúmplices involuntários de seus desmandos e devemos ir até o fim.
–Tem razão, mas faça algo!
–Já fiz. Enquanto você... Dormia, Petersen e eu bolamos um plano. Primeiro sair de Hidalgo. Saímos. Depois traçar um curso. Já estamos nele, com a camuflagem a toda e acelerando o mais que podemos, para atingir a inércia. Mas não cante vitória; se tudo sair bem, desapareceremos da vista porque estamos camuflados e porque vamos para onde nunca ninguém jamais esteve. No meio do caminho falamos com eles e se aceitarem; largamos a mulher em roupa espacial, num espaço-moto, para que parem e a recolham, e nós nos largamos, mantendo o rumo até ter certeza de que foram embora, depois podemos voltar e pegar Hidalgo de novo para que nos leve de volta. Mas o que importa agora é nos tirar a Hércules de cima.
–Parece ótimo. E qual é o nosso rumo?
*******.
–Saturno.
A palavra surgiu corta e seca dos lábios do Dr. Valerión, assim que viu a tela.
–Deuses! – murmurou Aldo, prestes a se lamentar. E já ia dizer: o que eu fiz para merecer isto?... Mas o pensou melhor e fechou a boca.
–Podemos abordá-los antes que desliguem os motores, senão os perderemos com essa camuflagem. Pintaram a nave de preto e estamos longe do sol.
–E se resolverem explodir? Não, Boris. Valerión! Há como detectá-los depois?
–Difícil Aldo. Mas incrementaram os motores e deixarão um rastro de plasma, ainda que naveguem em inércia. Posso tentar segui-los com os sensores.
–Nebenka, trace um curso na cola deles enquanto estiverem acelerando – disse Aldo – será mais fácil pegar o rastro quando fiquem invisíveis.
–Podemos esperar que cheguem a Saturno e uma vez lá... – disse Boris.
–Uma vez lá dependerão de nós para voltar – completou Valerión – Duvido que lhes reste carburante para acelerar de volta.
–Querem voltar? – disse Boris, extrapolando – entreguem a moça!
–Boris, querido – interveio Regina desde sua estação – vamos fazer-lhes uma guerra de nervos. Sabem que não podem escapar e que temos poder para destruí-los.
–Mas não o fazemos porque eles têm a Inge – disse Valerión, e acrescentou:
–Não daria certo. A não ser que os tripulantes se rebelassem...
–E matassem o capitão, assim negociariam – disse Boris.
–Queria matá-lo eu mesmo – murmurou Aldo.
–Capitão! A Wodan desligou os motores – disse Nebenka.
–Os perdemos, Konstantin?
–Afirmativo, senhor. Sumiram do radar e agora sumiram do telescópio.
–Regina! Sensores!
–Há um tênue rastro de plasma, que desaparece aos poucos.
–Transfere os dados para Nebenka.
–Transferidos.
–Nebenka, atrás deles.
–Sim, capitão. Estou projetando um curso provável com os novos dados.
–Vamos emparelhar na cola deles e entrar em inércia. Pensarão que sumimos.
–Depois virá a pior parte – disse o Dr. Valerión.
–Qual? – perguntou Aldo.
–Esperar.
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–O quê esperamos? – perguntou o piloto Baldur Schultz.
–Cedo demais – disse Petersen.
–Isso é o que não entendo! Quê raios vamos fazer em Saturno? – disse
exaltado o engenheiro Píer Van Der Grunn.
–É uma maldita idéia de Regert – disse Petersen – ainda não entendi direito.
–Espero que seja boa – disse o engenheiro – porque quanto mais longe do sol...
–Sei do problema da energia. Talvez não precisemos ir tão longe. Vamos
negociar por nossa conta. Vou falar com a Ilustre Dama e ver o que ela nos propõe no caso de liberá-la – disse Petersen.
–Vamos deixá-la comunicar-se com eles y que resolvam. Estamos condenados de qualquer forma – disse Schultz.
–Talvez não. Se recebermos uma resposta positiva, agarramos Olaf e Regert e os entregamos aos terrestres junto com a Ilustre Dama. Que façam com eles o que queiram. Quero minha pele inteira. E ao inferno com a nossa honra. Não me importa. Já estamos desonrados. Olaf nos desonrou a todos.
–Petersen tem razão – disse uma voz.
Com um frio na espinha, os conspiradores viraram-se.
O dono da voz estava na porta da engenharia. Era o imediato Regert.
Ninguém pronunciou mais uma palavra.
Eles sabiam qual era a pena para motim.
*******.
Espaço profundo entre Júpiter e Saturno, 15 de novembro de 2014.
Os antárticos saíram da Terra com as naves reguladas pela hora antártica. Mas essa hora nunca foi a hora da Hércules, construída em Marte e regulada pela hora da Zona Contestada. Após tantas aventuras, as coisas mudaram e a hora da Hércules há muito deixara de ser a hora oficial de Marte.
Em Ganímedes, enquanto os reparos e atualizações eram realizados; adotou-se a hora de Germânia III, hora padrão das luas e dos asteroides troianos; uma hora espacial muito prática para efeitos de sincronização de rumo e comunicações de notícias.
Portanto os períodos de descanso a bordo da Hércules e da Wodan, estavam sincronizados, apesar de separadas por cem mil kms. E foi num período de descanso, que Regina, sem sono, ficou de plantão em lugar de Kowalsky, monitorando comunicações e sensores.
Na ponte, o piloto brasileiro Alan Claude Sarrazin, assumia o leme, cumprindo seu plantão enquanto Nebenka dormia.
De repente, pelas quatro da manhã, a luz de chamada acendeu-se. Regina ligou a tela e apareceu o rosto de Inge.
–Querida! O que fazes acordada a estas horas? Não é bom para o bebê...
–Escuta, Regina. É importante. Vão se amotinar os tripulantes se Aldo os perdoa em troca da minha liberdade e de Ulfrum amarrado de pés e mãos.
–Aguarda Inge. Chamarei a Aldo. Ele tentava dormir agora a pouco.
–Aqui também estão quase todos dormindo. Por isso chamei.
Inge estava debruçada no painel de comunicações. De repente sentiu uma mão no ombro e seu bebê deu um pulo no seu ventre.
–Eu não sei como faz para ficar sabendo de tudo, senhora – disse Regert.
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Saturno, 18 de dezembro de 2014.
O espetáculo mais maravilhoso do sistema solar, que o diferencia dos outros, é o planeta com anéis. Quantas vezes, viajantes recém chegados o admiraram, quantas vezes terrestres, marcianos, ranianos e hiperbóreos o viram como símbolo do lar, após uma longa jornada desde as estrelas! Mas isso seria no futuro.
Hoje, o gigante gasoso é um ponto de chegada e decisão para os tripulantes da Wodan. Não chegavam ainda à órbita de Phoebe quando Olaf entrou na ponte e deparou com os amotinados. Na longa e desesperada viagem; estes ganharam silenciosamente toda a tripulação.
–O quê significa...? – perguntou Olaf.
–...Isto? – completou Regert com a pistola na mão – Significa que os terrestres nos deixam viver a todos em troca da Ilustre Dama... E do senhor, capitão.
–Malditos! – gritou Olaf, levando à mão à pistola, mas sem êxito, porque foi imediatamente imobilizado e amarrado por muitas mãos.
Nesse momento entrou Inge, com sua gravidez agora bastante ostensiva.
–Terminado o serviço; senhora – disse o comandante Regert, que em todo momento tinha liderado o motim.
–O comunicador está a sua disposição – acrescentou Schultz.
–Obrigada, senhores – disse ela sorrindo – Agora; meu desprezível Olaf; vou chamar à Hércules e você ficará a disposição do meu marido.
Ulfrum ficou pálido.
–Por favor, Regert, não faça isso! – choramingou o outrora temível senhor feudal de Enéas-1172 – Não me entregue a eles!
–Seja homem uma vez na vida! – gritou Petersen irritado – Cadê sua honra?
*******.
–Inge! Estás bem? E o bebê?
–Estou bem, querido, e o bebê está ótimo.
–Qual a situação?
–Domino a situação agora.
–E o maldito?
–Olha-o – disse ela, com um sinal para que Ulfrum fosse posto na tela.
–Por favor, não me matem!
–Cale-se maldito. Quero que deponham as armas e serão perdoados.
–Será feito. Ulfrum está amarrado – disse Regert.
–Pare as máquinas e prepare-se para abordagem.
–Sim, capitão. Petersen! Parada total!
–Mas vale que não seja um truque, porque senão...
–Nós não somos como ele, capitão. Temos honra – disse Schultz.
–Honra? Vocês atiraram em mim e meus amigos em Ganímedes.
–Não, capitão – disse Regert – Foi o pessoal de Wilfred West. Nós estávamos a bordo esperando Ulfrum. Ele veio com a Ilustre Dama, para nossa surpresa.
–Confie em nós – disse Petersen – eu devo minha vida a ela.
–Confiarei. Por enquanto.
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Para efetuar a transferência, Inge tinha que vestir uma roupa espacial. O tubo de abordagem da Hércules não era compatível com a escotilha da Wodan. Inge estava com oito meses de gravidez e seu velho traje já não lhe servia, por isso os troianos adaptaram um traje de homem bem folgado. Entretanto, Olaf devia ser desamarrado para vestir seu traje, o qual vestiu com rapidez. Aproveitando uma distração, bateu em Schultz com uma mochila, e escapou para as dependências inferiores da nave.
–Vão me pagar, traidores!
–Peguem-no! – gritou Regert.
Mas era tarde. Olaf chegou ao hangar e abordou um Horten M-2020. Na
Hércules produziu-se um rebuliço ao ver partir o caça. Aldo gritou:
–Sabia que estavam mentindo! Vou matar todos vocês!
–Não, Aldo! – gritou Inge a meio vestir – Olaf fugiu, que não escape!
–Antes virás a bordo! Grubber, Wassermann e Simon vão te pegar.
–Sim, mas vou demorar um pouco com este traje, Aldo.
Os antárticos entraram na Wodan. Inge, vestida e equipada, abraçou os amigos.
–Agora me tirem daqui, rapazes.
De repente a nave tremeu.
–Olaf está atirando em nós! – gritou Petersen.
–Primeiro vocês, traidores! – gritou Ulfrum pelo rádio.
–Ele pode nos danificar seriamente – disse Regert – Petersen! Tire-nos daqui!
–Espere! E eu? – disse Inge em desespero.
–A senhora? Agarre-se forte porque vou acelerar – disse o piloto.
A Wodan lançou-se para adiante com violência e assim esquivou um disparo de phaser do Horten M-2020, que bateu na Hércules sem maiores conseqüências. Em seguida a Wodan desapareceu de cena e Olaf pôde ver o canhão marciano da Hércules girando em sua direção. Não foi tão estúpido como para ficar aí e escapou rumo a Saturno a toda velocidade.
*******.
O duelo.
–Vocês vão atrás da Wodan que eu me encarrego do maldito – disse Aldo enquanto embarcava no caça número 001.
–Sim, capitão – disse Boris.
–Quer que o acompanhe? – perguntou Kowalsky, já abordando seu avião.
–Não, amigo. Isto é pessoal.
–Entendi, capitão.
Olaf Ulfrum percebeu entre arrepios que o seu perseguidor estava cada vez mais perto e não atirava. Logo foi alcançado pelo caça CH-3, que se colocou do seu lado como se estivesse parado. De soslaio viu o número 001 na fuselagem.
–É ele! – pensou apavorado.
Olaf acelerou seu Horten-2020 ao máximo. Seus motores já estavam quase incandescentes e o CH-3 parecia quieto ao seu lado. Olaf tentou uma manobra lateral.
O outro lhe seguiu, quase tocando a ponta da sua asa esquerda. Em seguida o troiano tentou todas as manobras possíveis: esquerda, direita, acima, embaixo... Mas o terrestre adivinhava suas manobras. Por fim Olaf não pôde mais.
–O quê quer? – gritou pelo rádio.
–Pergunta idiota. – disse Aldo, dando uma gargalhada de gelar o sangue.
Olaf teve uma idéia. Ligou os freios.
Aldo descuidou-se e seguiu adiante. Só conseguiu desacelerar oito mil kms depois. Os instrumentos lhe disseram que tinha um míssil à popa. Passaram os segundos e Olaf atento ao radar, viu o curso do seu disparo que ia direto ao avião de Aldo parado no espaço. Então se produziu um silencioso clarão nuclear.
–Matei o terrestre! Matei o desgraçado! Eu sou o melhor!
Olaf ria e chorava ao mesmo tempo:
–Deviam ver esses traidores! Eu sou Olaf Ulfrum, o Temível! Matei o maldito! Matei! Estão me ouvindo traidores? Matei o terrestre!
*******.
Titã.
A aceleração a que tinha sido submetida a Wodan, levou-a às imediações da órbita de Titã, a maior lua de Saturno, quase do tamanho de Marte, e com uma atmosfera que outrora acreditava-se era composta de metano.
–Metano nas camadas altas; a atmosfera é bem grossa – disse o Dr. Valerión, atento ao espectrógrafo da Hércules, afetado pela proximidade de Saturno.
Um exame detalhado com os sensores ranianos adaptados ao computador positrônico, cedido pelos tripulantes da Analgopakin, indicou que a atmosfera era mais rica que a de Marte, tinha 80 por cento de nitrogênio e 18 por cento de oxigênio.
–Poderemos respirar aí – disse a Dra. Lídia – a pressão parece a da Terra a quatro mil metros de altura, como nos Andes ou o Himalaia.
–Se a influência que Saturno exerce em suas luas é semelhante à de Júpiter, atrevo-me a dizer que a temperatura deve ser tolerável – acrescentou Valerión.
Boris, no comando, entrou em contato com a Wodan:
–Regert! Você vai descer aí?
–Sim, porquê não?
–Está bem. Vou atrás.
Imediatamente Boris ordenou aos pilotos:
–Ivan, Tom e Alan! Escoltem a Wodan. Abram bem os olhos...! Boris para Ives! Vá atrás do capitão. Briga pessoal ou não; não quero que fique sozinho com esse louco. Adolphe e Jacques! Abordem suas naves e escoltem nossa descida.
As naves entraram na atmosfera de Titã, fazendo uma espiral descendente. A Hércules foi atrás da Wodan, que se dirigiu à calota polar, o lugar mais seguro para descer, com grandes planícies brancas.
–Regert! Vai descer aí?
–Parece um lugar tão bom como qualquer outro, e é bem plano.
–De acordo. Vou atrás. Nebenka!
–Senhor?
–Desligar impulso, ligar manobradores e antigravitação.
*******.
A Wodan pousou verticalmente numa superfície plana, branca e gelada.
Deixou profundas marcas na neve endurecida. No horizonte, umas árvores pareciam pinheiros de Natal. No lado oposto, uma cordilheira de cumes nevados e vegetação abundante nas ladeiras. A temperatura era quinze graus negativos e não soprava a menor brisa, embora se percebiam umas nuvens cinzentas aproximando-se sobre as montanhas. Não estava totalmente escuro. O sol era uma enorme estrela amarela e do lado oposto, a luminosidade da enorme massa de um anel de Saturno reinava absoluta num extremo do céu negro e estrelado.
Inge foi a primeira em colocar os pés no chão; seguida de Wassermann e alguns tripulantes troianos. Com o traje espacial dilatado pela barriga de oito meses; Inge parecia um ser grotesco. Tirou o capacete, liberou os cabelos de ouro e respirou o ar frio como o da Noruega, sua terra natal.
–Planeta lindo! – suspirou – Sinto-me em casa.
–Parece Antártica – disse Wassermann.
A Hércules apareceu com ensurdecedor rugido, no meio da fumaça dos freios e pairou pesadamente até pôr-se à par da Wodan. Desceu devagar, baixou as rodas e tocou a neve que se derretia com o calor dos manobradores. Logo foi enterrando-se, para o pavor de Inge e os outros.
–Estamos num lago gelado! Não acho que vai suportar o peso da Hércules!
–Boris, sobe! – gritou Inge.
–Tarde demais!
O peso e o calor dos motores ainda incandescentes; rachou o gelo de um metro de grossura. O trem esquerdo afundou primeiro, entortando a nave, que afundou na água gelada, fazendo-a ferver em meio de nuvens de vapor.
*******.
Um lugar para morrer.
Ives viu a explosão no espaço e acelerou nessa direção. Viu o Horten de Olaf e ouviu suas bravatas. Mas se fosse verdade não estaria vendo aquele ponto no radar.
–Capitão! É o senhor?
–Estou me divertindo com as palhaçadas do idiota.
–Deve estar louco.
–Sim. Desde que nasceu.
Olaf ouviu a conversa:
–Mas eu vi uma explosão...
–O escudo a deteve. Pensa que está tratando com vulgares piratas milkaros?
–Vejo outra nave. Chamou ajuda, terrestre!
–Não chamei, a coisa é entre você e eu – disse Aldo disparando o laser.
A cabine do M-2020 esquentou e Olaf acelerou em direção aos anéis.
Se alguma virtude Olaf possuía, para compensar seus muitos defeitos, era sua destreza pilotando um Horten M-2020. Manobrava muito bem e esquivava a maioria dos disparos do seu oponente.
Ives ficara em segundo plano, deixado atrás a cem mil kms de distância.
Mas ele foi se aproximando rapidamente para não perdê-los de vista, como prometera ao comandante Boris. Saturno exercia muita força gravitacional e havia que acelerar muito. Não que fosse difícil para pilotos habituados a manobrar nas imediações de Júpiter, planeta bem maior.
Os anéis, compostos de pedras grandes como montanhas e de enormes icebergs de gelo sujo, ficavam mais difusos quanto mais perto. Os rivais perseguiam-se mutuamente, a dezenas de milhares de kms por hora, por entre o labirinto das enormes massas, trocando torpedos, raios e rajadas de balas explosivas.
A separação entre as moles era às vezes de centenas de kms, mas à enorme velocidade em que ambos moviam-se, qualquer erro poderia destruí-los instantaneamente.
Já não mais se comunicavam. Alvejavam-se raivosamente e às vezes acertavam. Aldo viu que estava ficando sem munição e decidiu elevar-se do plano dos anéis para poder observar de cima onde seu inimigo estava. Uma vez encima, viu que Olaf teve a mesma idéia e praticamente pareceu que pularam juntos.
Estavam longe demais um do outro, pelo que era inútil disparar mísseis, que seriam facilmente destruídos com laser. Também era longe para balas e canhões marcianos, pelo que Aldo usou o laser, mais efetivo, por ser instantâneo. Acertou várias vezes, mas o troiano sempre saia do lugar. Olaf agora lutava por sua vida, estava mais inteligente, mais calculador. Percebeu que cada vez que Aldo atirava, era obrigado a desligar o escudo por uma fração de segundo.
Com esta idéia na cabeça aproximou-se sem deixar de disparar, mas guardando um míssil para o final. Ambos gastaram a munição. Aldo estava já quase sem deutério, por causa das repetidas acelerações para vencer a força gravitacional, e o laser era a última arma que lhe restava. Olaf disparou seu último torpedo e foi colocando-se a tiro.
Aldo concentrou o laser nele por vários segundos, uns preciosos segundos sem proteção, o suficiente para o torpedo acertá-lo.
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Aldo e Olaf estavam juntos demais e Ives viu que devia intervir. Acelerou e em segundos pôde presenciar o final do duelo. Aldo percebeu o truque, mas era tarde, acelerou, mas o míssil explodiu perto dos tubos de popa antes do escudo se fechar.
Justamente na popa, onde era mais fraco por causa do escape do motor. A explosão foi suficiente para apagar os tubos e Aldo ficou à deriva sem energia. Olaf também não teve sorte, o laser queimara muita coisa na cabine, esquentando o metal até a incandescência. A temperatura estava tão alta que Olaf teve que a abandonar o Horten,
por temor da explosão iminente.
Aldo já se aproximava voando com o impulsor da mochila. Olaf acelerou seu cinturão foguete rumo aos icebergs. Aldo voava entre as moles, chegando perto de Olaf, que disparou a pistola e errou. Aldo respondeu o fogo e acertou-lhe na luva. Enquanto os homens trocavam tiros, os aviões foram atraídos por uma massa flutuante. Ives; com o sensor ligado percebeu o que ia acontecer.
–Capitão!
–Agora não, Ives.
–Mas, capitão...!
–Estou ocupado – respondeu Aldo esquivando um disparo.
–Vai a ocorrer uma explosão, capitão!
–Deixe explodir – disse Aldo, atirando.
Os rivais pousaram frente a frente sobre a superfície de uma mole de gelo.
–Chegou sua hora, Ulfrum.
–Veremos – disse Olaf, disparando vários tiros que deram de cheio no peito de Aldo, protegido pela armadura, fazendo-o escorregar para trás.
–Veremos quem agüenta, Ulfrum.
A melhor armadura venceria. Os dois atiravam e cobriam o rosto com o braço para proteger o visor, procurando acertar no visor do outro.
As naves explodiram numa silenciosa luz atômica, do outro lado de uma
montanha de gelo, sem atingir os lutadores. A imensa mole, em parte derretida, em parte quebrada, deslocou-se impulsionada pelos seus próprios gases para onde os inimigos se enfrentavam. Deveriam morrer ambos esmagados.
Aldo percebeu a enorme sombra que se aproximava e abandonou a luta,
voando com seu impulsor paralelo ao solo. Olaf pensou que tinha vencido, quando, percebeu a sombra, olhou para cima e viu o que estava vindo. Foi rápido para ligar o cinturão impulsor e voar na mesma direção do seu oponente, mas já era tarde.
Ambos blocos chocaram-se, esmagando o troiano quando faltava meio corpo para sair da armadilha. Olaf ficou preso da cintura para baixo, como um inseto. As montanhas de gelo, unidas numa só, levaram-no a toda velocidade pela mesma órbita dos anéis, perante os olhos de Aldo e de Ives, que freava nesse instante perto do seu capitão.
Seu grito de dor e desesperação ressoava nos fones dos terrestres, que não podiam fazer mais nada. Olaf retorcia-se e gritava, afastando-se mais e mais, levado na voragem dos anéis; para girar eternamente num carrossel sideral.
Ficaria para sempre girando em torno de Saturno, formando parte dos anéis por toda a eternidade, como um monumento. E gritou muito, demorando em morrer, sabendo que não tinha salvação.
–Está perdido, capitão – disse Ives apavorado.
O torso de Olaf, prensado, se afastava vertiginosamente.
Logo de um minuto que pareceu um século, parou de gritar.
Aldo disse por fim:
–Que lugar fantástico para morrer!
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CONTINUA EM: A RAINHA DAS ESTRELAS
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O conto QUÊ LUGAR FANTÁSTICO PARA MORRER! forma parte integrante da saga inédita Mundos Paralelos ® – Fase 1 - Volume III, Capítulo 20, Páginas 27 a 38 cujo inicio pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados, sarracena.blogspot.com