Os Estranhos (UFO)

I

Era uma luz muito forte e brilhante, entre o azul e o cinza; uma luz fascinante no meio do céu escuro bem acima da minha cabeça; uma luz que não tinha propriedades térmicas, mas que me fazia sentir-me quente, acolhido, com o coração acelerado de uma felicidade difícil de se explicar. E foi então, olhando para essa luz bem acima da minha cabeça no meio do campo plano, que eu percebi que meu corpo subia em direção a ela. Como se a gravidade não tivesse valor algum eu ia subindo sem controle até a origem daquela forte luz.

Ali, enquanto eu via a grama do campo ficando para baixo, uma lembrança imemorial retornava como uma fotografia que encontramos enterrada na poeira de um armário antigo, e eu soube que aquela sensação, aquele calor estranho que emanava da luz era exatamente o mesmo calor que eu provara no útero materno, a mesma proteção.

E então, enquanto subia, fui me abraçando por instinto aos próprios joelhos, voltando à posição fetal, à posição de origem, até que desmaiei.

II

Fui acordar só quando senti um contato gelado em minha testa, e era um pequeno apetrecho que fora ali posto e era ligado a uma grande máquina vermelha por um fio tênue de metal cor de platina. Mas a primeira coisa que vi não foi nem essa máquina nem esse fio, mas sim a silhueta dos seres que colocavam tal apetrecho em mim. Semelhante a uma maca de hospital, sobre a minha cabeça havia uma lâmpada de luz branca muito brilhante, e graças a essa luz eu conseguia vislumbrar o contorno de estranhas cabeças me analisando, e o mais estranho era que pelos orifícios dos olhos eu também conseguia ver a luz da lâmpada, como se ali não houvesse nada.

Uma dessas criaturas (eram duas) mostrou a outra um objeto parecido com um graveto de ferro, fez alguns sons guturais e depois se aproximou de mim com aquilo, e eu senti tal objeto sendo enfiado em meu nariz. Talvez nem tenha doído tanto, mas a sensação de ver aquilo sendo colocado no meu corpo era deveras agonizante, a ponto de me fazer gritar e me contorcer naquela maca. Foi aí que começou a doer e a sangrar. Foi aí também que eu percebi que estava amarrado.

Eles não pararam por um só momento o que estavam fazendo e eu não conseguia fazer meus gritos emitirem som, ou talvez eu apenas não os pudesse escutar, porque na minha cabeça só ecoava um zumbido interminável, estável, frio.

Aquele cabo gelado de metal adentrava as minhas cavidades nasais e prosseguia em direção ao cérebro. Eu podia sentir! Eu podia sentir aquilo atravessando a minha cabeça!

Um terceiro ser entrou naquela sala e permaneceu de costas para mim, trabalhando na máquina vermelha que também tinha um visor holográfico muito moderno.

E quando aquela vareta de ferro finalmente chegou à minha massa cinzenta, o zumbido cessou, aquela luz forte da lâmpada parou de incomodar minha retina e tudo estranhamente fazia sentido. Agora eu conseguia compreender os sons guturais, talvez até conseguisse emiti-los também se quisesse. Só a dor que ainda me afligia, mas que já não era tão grande uma vez que eu me sentia menos perdido.

– Espécie dominante do planeta azul P-3529 – dizia a criatura que manipulava a máquina vermelha (na verdade essa é uma tradução que eu estou vos fazendo agora, pois não foi através de palavras que eu compreendia como eles se comunicavam, mas sim estranhas vibrações de cordas vocais, o que nem se eu tivesse tempo e dezenas de cadernos em branco conseguiria explicar) – Tempo médio estimado de vida: 85 rotações estelares; inteligência mediana; mamífero; intrincada rede de sistemas nervosos, principalmente na cabeça; espécie com sérias deficiências genéticas causadoras de doenças as vezes terminais... – e assim por diante.

Eu não demorei em compreender que eles estavam me catalogando naquela máquina e que esse graveto trazia na ponta algum tipo de circuito ou chip muito mais avançado do que a tecnologia que eu já ouvira falar.

E quando as descrições acabaram, aquele graveto foi retirado do meu corpo, porém eu ainda conseguia entendê-los, o que queria dizer que tal chip ainda estava aqui dentro. E um desses seres avisou aos demais que começariam com as reparações em mim imediatamente.

Surgiu do chão uma pequena mesa cheia objetos semelhantes a bisturis e vários outros utensílios cirúrgicos, e eles utilizaram tudo aquilo em mim, sem anestesia ou explicações, me cortando por todas as partes sem que eu caísse na inconsciência. Eu via aquelas lâminas entrando precisamente em mim. Eu via aqueles olhos grandes e branquíssimos atentos ao meu corpo. Eu via e sentia o dilacerar, o queimar. E não podia fazer nada.

Quando uma pequena lágrima de dor me escorreu dos olhos, as criaturas pararam tudo o que faziam e ficaram olhando para aquilo, a pequena gota cristalina e salgada. Através de suas conversas guturais eu conseguia perceber que nenhum deles entendia aquela lágrima, qual a sua utilidade, mas isso não foi o bastante para fazê-los cessar com a tortura.

Até que em determinado momento um daqueles bisturis me abriu o peito com precisão e iniciou uma vistoria naquele órgão pulsante e vermelho que havia ali por baixo. E finalmente consegui me desligar daquele corpo que me afligia, perdendo outra vez a consciência.

III

Mesmo que não parecesse, eu sabia que o campo ainda era o mesmo campo, que aquela grama na qual acordei ainda era a mesma grama de quando eu desapareci, até a noite talvez fosse a mesma, ou outra, de anos depois. Só sei que eu já não era o mesmo, e enquanto olhava para a noite estrelada de lua gorda eu já tinha no meu mais íntimo que nunca mais seria o mesmo depois de tamanha dor e desespero.

Chorei um pouco, e para minha surpresa aquele choro não era devido às lembranças da minha experiência, mas acontece que sem aquela luz forte eu voltava a me sentir desamparado, órfão. Era irracional, mas e não é assim a maioria das vezes em que choramos?

Levantei-me e caminhei lentamente de volta para minha casa. Meus músculos doíam, estavam exaustos, pareciam em chamas. Minha esposa notou a minha chegada e não disse nada, o que queria dizer que eu não fiquei por muito tempo nas mãos daqueles seres.

Deitei-me no sofá, em silêncio, acompanhando as pautas do noticiário na TV. Assassinatos, roubos, seqüestros, estupros. Dor, enfim.

Segui então para a cama na esperança de ter uma boa noite de sono como apagador de memória. Meu corpo ainda queria voltar a se comprimir na mesma posição fetal de antes, mas agora, naquele quarto sem luz, não fazia mais sentido e eu não o fiz.

IV

Passaram-se anos, minha esposa morreu de câncer, assim como meu pai havia morrido muito tempo atrás, mas eu, embora agora velho, vou ao médico e ele diz que não sabe como é possível meu corpo não ter sequer nenhuma deficiência. Não há sinais alarmantes nem na pressão, nem no sangue, nem no colesterol, nem em nada. E então eu compreendo que aquela dor que senti certa vez na maca de uma nave extraterrestre teve um propósito claro, foi por bem. Ao contrário da dor que a minha própria espécie, em sua ignorância, causa a si própria antevendo apenas a crueldade.

Todas as noites eu ainda caminho pelos campos. Sei que aquele chip ainda está na minha cabeça e às vezes ainda faço sons com a garganta (na língua deles) na esperança de que me ouçam implorando para que voltem, que me levem mais uma vez, que me resgatem, que me salvem, e que dessa vez nunca mais me tragam de volta.

Às vezes no noticiário, depois dos infindáveis blocos policiais, aparece alguma matéria sobre seres extraterrestres estranhos e que causam mal as pessoas. Alguns filmes surgem em cartaz de tempos em tempos mostrando o fim do mundo causado por ETS. Como se o mundo já não estivesse se acabando por nossa conta mesmo, que fingimos ver progresso no caos. Como se os aliens fossem o real perigo da Terra.

Acho que ninguém, a não ser eu e mais alguns outros abduzidos, compreendeu ainda que os estranhos dessa história somos nós.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 16/05/2013
Código do texto: T4293925
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