Testemunhas Oculares
Casa presenciou horrorizada todos aqueles eventos. Já há algum tempo vinha sentindo aquela tensão muda entre seus ocupantes, mas de maneira alguma poderia imaginar aquele desfecho trágico que testemunhou. Os investigadores percorriam seus cômodos procurando provas, tentando entender o que acontecera. Casa sabia, poderia lhes fornecer todos os detalhes que desejassem, mas... Casa não possuía boca para poder falar.
Paredes de Sala de Jantar estiveram ainda mais próximas da cena do crime. Discutiram entre elas, e acabaram descobrindo que Parede do Sul possuía até uma pequena marca da violência daquele dia, que podia mostrar bem aos investigadores parte do que havia acontecido. Porém esta marca era bem inacessível, os policiais passaram por ela sem nada perceber. E, infelizmente, Paredes também não podiam falar.
Cadeira Próxima de Porta era o objeto mais traumatizado com o crime dentro de Sala de Jantar, afinal era sobre ela que estava Vítima quando foi assassinada. Sentiu ela se contorcer em desespero, sufocada pela covardia do agressor que apertava Corda em torno de seu pescoço. Ah se ela pudesse fazer alguma coisa naquela hora, ajudar Vítima, impedir a consumação daquele crime bárbaro... Mas ela era apenas uma cadeira muda.
Corda não estava em Sala de Jantar naquele exato momento, mas mesmo que os investigadores passassem por Corredor Principal de Casa naquele instante dificilmente a encontrariam debaixo de Assoalho. Era terrível pensar nisso, mas mesmo sem querer Corda se sentia quase cúmplice do assassino. Afinal, foi o estrangulamento provocado pelo emaranhado de seus fios vermelhos e amarelos entrelaçados que sufocaram Vítima até a morte. Óbvio que sendo simples pedaço de corda inanimada nunca cometeria esta barbaridade por vontade própria, mas nas mãos do assassino ela não teve escolha, a não ser obedecer seus comandos cruéis guiando seus movimentos. Até mesmo Células Epiteliais de Pele do assassino desaprovavam seu ato, o que levou algumas delas, com a ajuda de Corda e algumas ranhuras desta entre os fios lisos de suas tramas, a saltarem do tecido epitelial do criminoso em direção a espaços vazios de Corda. Poderiam tentar se manter vivas por algum tempo até serem encontradas e submetidas a um exame de DNA, contando finalmente aos investigadores quem era o autor daquela selvageria. Mas estavam presas em Corda, debaixo de Assoalho. E nem Corda nem Assoalho possuíam vozes capazes de gritar pela atenção dos homens da perícia concentrados em Sala de Jantar. E afastadas de Organismo, Células Epiteliais já começavam a definar...
Carro também teria muita coisa para contar, especialmente Porta-Malas! Tentou buzinar, pois pelo menos ele tinha alguma voz em meio a tantas outras testemunhas mudas daquele crime. Mas ele nunca foi capaz de acionar sua voz por vontade própria, e não era naquele momento que isto mudaria.
Pá fora deixada distante de Casa, ao relento, e começava inclusive a oxidar. Também se sentia forçadamente cúmplice do assassinato, pois ajudara o criminoso a esconder Corpo de Vítima. Lembra apavorada do sangue frio que sentira naquelas mãos assassinas, abrindo e depois fechando a cova com partes de Terra. Terra também se sentia mal com aquilo tudo, mas... Como contar o que viu? E se contasse, quem acreditaria? Sem ação, fez o melhor que podia fazer naquele momento: abraçou os restos mortais de Vítima, tentando abreviar seu descanso final, fazendo-a devolver material que Terra lhe havia emprestado para viver, e que lhe havia sido tomado de maneira tão estupida. Mas tentaria preservar Ossos. Talvez no futuro ao menos Ossos pudessem contar algo sobre o que havia acontecido aqueles momentos de terror.
Corpo de Vítima, se fosse encontrado a tempo, também poderia contar muitas coisas. Principalmente Olhos! Eles encararam o assassino! Existe uma antiga lenda sobre a última imagem vista ficar registrada nas Retinas de Olhos de Vítimas de assassinato. Seria verdade? Na dúvida, Vítima fitou bem aquele que lhe tirava a vida. Aqueles Olhos com brilho se esvaindo o encarando pertubaram o assassino logo após o ato concluído. Ele tentou fechar Pálpebras, baixás-las para evitar aqueles Olhos. Mas Pálpebras de Vítima também tentaram fazer sua parte. Mesmo com Corpo esvaziado de vida, elas conseguiram novamente se levantar e expor Olhos, encarando seu algoz. Aquilo perturbava muito mesmo o assasino, que mais uma vez tentou baixá-las, e vendo que elas insistiam em se abrir, ele... Meu Deus! Ele simplesmente arrancou Olhos de suas órbitas, num momento de fúria insana!
No auge de seu desespero colocou Olhos e Resto de Corpo de Vítima dentro de Saco. Colocou Saco em Porta-Malas de Carro, junto com Pá, e levou Vítima para ser enterrada bem longe dali. Se certificou antes de esconder Corda debaixo de Assoalho, em Corredor Principal de Casa. Por que não enterrá-la com Corpo e Olhos? Em sua mente doentia, achou que quanto mais espalhasse as provas de seu crime mais dificultaria as investigações, maior chance teria de escapar de ser apanhado. De qualquer forma, nem Olhos nem seu Corpo poderiam dizer coisa alguma, pois estavam... mortos...
As investigações prosseguiram sem resultados. Não havia provas. Não havia testemunhas. Ou melhor, testemunhas haviam várias. Mas nenhuma delas era capaz de falar. O assassino se vangloriava de sua esperteza, de como havia conseguido esconder todas as provas, enganado a polícia. Ninguém nem mesmo suspeitava dele! Como poderia ser tão genial assim?
Mas ele estava muito enganado. Havia sim uma testemunha ocular daquilo tudo. Estava oculta onde o criminoso nem poderia imaginar.
Ela teve medo a princípio, mas a visão dos olhos assustados de Vítima sendo sufocada lhe deu forças para seguir em frente. Aquilo não poderia ficar assim, o criminoso merecia ser punido pelo que fez!
Subiu as escadarias da delegacia confiante, se dirigindo logo ao delegado responsável.
- Não aguento mais aqueles olhos. Sonho com eles, me aparecem o dia inteiro suplicando. Então me deixando louco.
- Calma. Sente-se aqui, conte tudo que você sabe.
- Sei onde está o corpo! Posso mostrar onde está a corda usada no crime. Posso...
- Calma aí, meu amigo! Relaxa! Pra começar, me conte como é que você sabe tudo isso. Por que deveríamos acreditar em você?
A testemunha ocular olha o vazio, relembrando as cenas macabras. Os olhos da vítima, Ah... aqueles olhos!!! Desaba na mesa do delegado, berrando em prantos:
- Fui eu que fiz aquilo. Fui eu! Estou me entregando.
Ele havia se esquecido de uma testemunha ocular muito importante daquele crime. A testemunha ocular que o criminoso havia esquecido estava dentro de sua cabeça. Era sua própria consciência...
*** FIM ***