Mitologia Contemporânea: O Ser Humano

Era sábado e as sirenes das ambulâncias tocavam. Um acidente de trânsito envolvendo vários carros em uma rodovia. Ele era uma dessas pessoas. Foi levado às pressas para o hospital com alguns ferimentos e uma mão amputada. Na cirurgia de tudo se fez mas a mão seria perdida pela demora entre o acidente e a cirurgia. Todos estavam em choque. Tanto pelo acidente como pela cirurgia. Sua mulher chorava. Seu filho também.

Passado alguns meses, passado o choque, ele por fim pode agradecer a Deus pela família que tinha, sua esposa, seu filho. Por tudo que ele tinha. Que tudo aquilo valia muito mais que qualquer coisa no mundo. Muito carinho, afeto. Uma casa bonita, uma família. A falta da mão não o impedira de trabalhar, de viver, de ser feliz.

Com o avanço da ciência conseguiu-se alguns anos mais tarde colocar uma mão mecânica. Era um modelo perfeito. Fazia não só o que uma mão normal fazia como muitas outras coisas. Ela podia ser trocada por outras ferramentas. Tudo era novidade. Pode então recobrar uma vida tão boa quanto a anterior. Sentia-se bem. Sentia-se mais que completo. Sentia-se um humano e sua mãozinha.

O tempo segue, os avanços continuam. Aqueles humanos persistentes haviam sido alertados dos efeitos da modernidade no planeta. E mais e mais o clima mudava, mais e mais o mundo trocava de cor, de ânimo. E como todos previam o desastre aconteceu. Um terremoto varreu metade das grandes cidades das américas. Ele foi encontrado soterrado e desmaiado. Levado ao hospital descobriram que seu pescoço fora fraturado e ficaria então tetraplégico. Quando acordou recebeu a notícia e ficou apavorado. Mais ainda porque o mundo lá fora foi afetado pelo caos e não tinha notícias de seus familiares.

Não conseguia se concentrar em nada. Queria saber de sua esposa e filho. Queria saber como seria viver naquela condição horrível. Mas a cidade ainda estava destruída e pouco ou nada se sabia do mundo além daquele quarto. Semanas após o terremoto sua esposa aparece no hospital depois de muita procura. Ela chora ao saber o que houve, vai até ele e ficam juntos. Ela conta que o filho deles morreu no terremoto e que agora eram só os dois.

A vida nova trazia novas situações. E o mundo em reconstrução novas possibilidades. Porém ele sentia que era um peso para os outros. Sentia-se mal por ter que ser cuidado por alguém, sentia a falta de seu filho. Chorava ao pensar que a sua sementinha no universo não vingara.

Por conta de complicações de saúde seu corpo foi ficando debilitado, mas novamente a ciência surgiu com uma nova saída para aquele momento. Um corpo mecânico. Parte de seu corpo antigo seria removido, deixando apenas os órgãos vitais, e no lugar seria colocado próteses mecânicas de alta precisão. Um corpo novo. Algo novo. Teria uma vida quase como a antiga, com a diferença que este novo corpo faria mais coisas que o antigo. Ele poderia andar com pernas ou com rodas. Era algo estranho de se pensar, mas era real. Optou então pela operação. Era algo estranho, ele já não era um corpo de homem, mas se sentia humano. Uma mente humana e seu corpo mecânico.

Pode voltar a trabalhar, viver com sua esposa. Apesar que por conta de tudo que passou, descobriu-se que não poderia mais ter filhos. Era algo estranho isso. Estar vivo com sua mulher, ter vontade de dar seguimento à sua própria vida, mas não poderia. Pensou em adotar uma criança ou alguma outra solução, mas entendeu que não era o momento certo. Na verdade ele não queria mais ter filhos, ele apenas sentia algo estranho dentro de si. Ele tinha sido privado de dar continuidade à espécie. Ele não estava preocupado consigo mesmo. Era como se não apenas ele, mas o mundo todo tivesse perdido a fertilidade. Como se houvesse a possibilidade de mundo nunca mais prosseguir. Sentia que a vida tinha um tempo finito e que o infinito só era possível através de outras vidas, dos filhos. O mundo havia parado em seu coração. Sentiu-se um humano pela metade. Estava contente de ter sua esposa e eles juntos se alegravam.

Como toda tragédia já podemos prever o que irá acontecer. A vida continua mostrando sua força. E mais tempo passado sua esposa contrai uma doença e em poucos dias acaba vindo por falecer. Ele chora e passa anos indo diariamente visitá-la em sua sepultura, em sua nova morada. Era o momento de buscar algo além da vida, buscar esta pessoa que o acompanhou, que viveu junto, que o completou. Sentia-se só. Porém estar só naquele momento era o encontro consigo mesmo. Perder todas aquelas coisas era algo da vida. Sentiu-se humano por ter que viver as dores humanas. E como doíam. E como o tempo passava obrigando ir o que deveria ficar.

Conforme os anos se seguiram a velhice foi chegando. O que restava do seu corpo foi envelhecendo apesar da parte mecânica permanecer como nova. Seu coração não era mais o mesmo, sua respiração já não era a mesma e a memória fraquejava.

Acontece que a tecnologia não parava. Descobriram então algo assustador. Nosso corpo era nossa “casa”, nossa mobilidade, nosso cérebro nossas lembranças. Descobriu-se então algo muito estranho. Havia um centro que controlava tudo, algo que poderia ser chamado de Eu, algo como um processador que regia toda aquela vida. E estranhamente inventaram algo. Com um aparelho registrava-se as memórias do cérebro e depois as gravavam num outro aparelho, como se fosse um novo cérebro. Depois fazia-se o transplante do “eu” ligando-o naquele novo aparelho que continha as memórias. Para nós é pura ficção. Mas ele estava lá. E fez.

O médico avisou: ‘vou explicar o que vai acontecer. Preciso explicar isso agora porque será essa sua primeira lembrança que terá ao acordar novamente. Você estará em um outro corpo. Você precisa se lembrar que está em outro corpo. Caso você não se lembre disso as coisas serão difíceis de compreender e aceitar. Então pense nisso insistentemente para fortalecer sua memória e ela seja recobrada o quanto antes’. Então sua memória cerebral foi gravada e transferida para um novo dispositivo. Ele podia ver tudo sendo feito. Viu seu novo corpo de máquina diante de si. Algo que ele poderia escolher se haveria braços, pernas, rosto, ou que poderia ser simplesmente câmeras e ferramentas. Ele encarava. O médico então pergunta se ele está pronto. Ele sabia que ele ia desaparecer. E sabia também que ia reaparecer. E foi o que houve. Um momento mágico. Não era um clarão. Também não era pura escuridão. Era simplesmente segundos não sendo nada. Era como uma noite em que não se sonha nada. Como a nossa lembrança do dia do big bang em que nenhum ser vivo existia. Era ser o “não ser”. E segundos depois começa então a ver-se no espelho. Ou melhor, ver-se diante de si. Seu corpo antigo do lado de fora de si. Velho. Que esteve tantos anos junto consigo. As rugas, os cabelos brancos. Ele estava lá “morto”. Ele estava vendo a si mesmo. Já não sabia mais o que era. Humano era aquele ser diante de si. Mas ele continuava sendo ele mesmo. Lembrava de sua mulher, seu filho, tudo. Lembrava que aquele diante de si era ele. E sabia que ele agora era apenas um novo corpo. O que ele era? O que era aquilo? Ele poderia fazer tudo que um ser humano faz. Mas o que era fazer coisas de ser humano quando não se tinha mais corpo de humano?

Alguns milhares de anos se passaram, a terra cada vez mais próxima do colapso, quando num sinal de alerta avisam na TV que em alguns anos a terra irá explodir pela colisão de um meteoro. Era o plano de emergência. Era hora de abandonar o planeta.

Todos que já haviam feito a transição para corpos mecânicos foram convocados. O plano de emergência era um novo equipamento. Seu novo corpo seria agora como uma nave. Eles seriam um ser espacial, um corpo-nave. E seriam lançados no espaço em algumas semanas e deveriam ir o mais longe possível da terra para não sofrerem com a explosão e os pedaços dela.

E isso durou quase um ano. Era horrível pensar nisso. A terra desaparecer. Pior ainda era sair em emergência. Mas foi assim. Ele foi lançado para o espaço junto com muitas outras pessoas. Sua única missão era encontrar energia para manter-se vivo.

Após quase um mês se distanciando da terra, os que foram com ele mantinham contato uns com os outros. Quando enfim ela explodiu nada mais restou. Os pedaços do planeta acertaram muitos dos que lá estavam. E outros foram tragados e lançados longe pela gravidade daqueles pedaços. Ele também. Numa velocidade imensa foi lançado longe. Até que estava lá. Apenas ele. Vagando. Olhou por todos os lados. Nem um sinal de vida. Olhou a bateria que o mantinha vivo. Talvez durasse uns anos. Pensou em si. Pensou em todas as vidas que existiram antes dele até chegar ali. Perguntou então: o que sou?

Hobbert Jász
Enviado por Hobbert Jász em 24/03/2013
Reeditado em 07/09/2013
Código do texto: T4205629
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