O bom pai (O Fim e Reinício do Mundo)

Ronaldo não sabia o que fazer. Seu filho tinha fome, mas já não havia comida. Ele mesmo tinha fome, mas os parcos restos de alimento que ainda havia foram usados para saciar o apetite de seu filho, Júnior, na noite anterior. Há dez dias não saia de casa. Há trinta, algo estranho ocorrera. Sua velha televisão pifara. “Porcaria velha!” gritou, indo à pequena cozinha pegar uma cerveja. A geladeira pifara. O fogão ao lado já não funcionava direito mesmo, mas a lâmpada do teto, pendurada por fiozinhos e remendada com fita isolante, não acendia mais. “Claro! Algum raio queimou toda a fiação!” Pensou, embora não tivesse ouvido estrondo algum. Saiu de casa para ver se os vizinhos tinham luz. As casas ao lado estavam sem eletricidade. E as próximas. E as próximas. E as próximas.

E um mês se passou.

Nem Ronaldo nem ninguém ainda sabia o que aconteceu, só sabiam que ninguém tinha eletricidade. No bico de garçom ouvia histórias de que o mundo acabaria, de que o mundo havia acabado, de que o mundo estava acabando. Lembrava-se de ter ouvido dois homens, um calvo na faixa dos quarenta anos e um senhor grisalho na faixa dos sessenta, aos drinques de algumas das últimas garrafas que havia naquele restaurante de esquina:

“Pelo menos estamos vivos. Tinha gente pensando que a tempestade solar acabaria com todo mundo. Ao invés disso queimou todo tipo de aparelho elétrico.”

“E de que adianta estar vivo desse jeito? Não tem jeito de escoar alimentos, não tem comunicação! Acho que a maior parte desse povo nem sabe o que aconteceu!”

“Já fiz alguns preparativos e estou indo embora dessa cidade. As coisas estão mais ou menos normais porque ainda há comida, mas ouvi dizer que começaram a ocorrer arrastões e ataques violentos sem muito sentido, mas sem TV não dá pra ter certeza. Eu vou embora até as coisas se acalmarem. Se é que vão se acalmar. Acho que você devia fazer o mesmo.”

Depois de beberem em silêncio por alguns minutos os homens pagaram a conta, deixando uma bela gorjeta, e foram embora. Ronaldo não entendia de tempestades solares, escoar alimentos ou preparativos, mas algo naquela conversa o aterrorizava. De uma coisa ele sabia, não vinha comida, e não era só nesse restaurante, mas em todos os restaurantes, mercearias, mercados e até nos gigantescos hipermercados a quantidade de produtos diminuía cada vez mais. Aos poucos, ia comprando e guardando comida, pois sabia que ela ia acabar. Dois dias depois de testemunhar a conversa Ronaldo foi liberado do serviço, pois não havia o que servir naquele restaurante.

Nesses últimos dias pensava em ir embora. Não havia nada mais a se fazer numa ruazinha perdida na borda de Guarulhos, ainda mais agora que a comida de todo mundo parecia estar no fim. Nem um caminhão de comida poderia alimentar a todos, se os caminhões estivessem funcionando, claro. Pensava em partir pra Limeira. Tinha uma tia lá, e cidades interioranas costumam ser fonte de alimentos. Se conseguisse chegar lá o pior dos problemas ficaria pra trás.

Mas como chegaria lá?

Ele se perguntava noite após noite, e se perguntaria novamente nesta noite quente, se um barulho não tivesse chamado sua atenção.

Um tiro. Com tudo que havia deixado de funcionar, com todos os aparelhos que não serviam mais, com o fim de tanta coisa que poderia salvar pessoas, logo as armas continuavam funcionando. Fazia sentido, armas não precisam de eletricidade, microchips nem sinal; só precisam de balas, pólvora e alguém inconsequente as empunhando. E alguém estava atirando do lado de fora.

Júnior entrou no quarto a passos lentos, não sabia ao certo o que o barulho era, só sabia que lhe dava medo. “Pai, que barulho é esse?” perguntou.

“Fica aqui, menino, vou lá ver.”

Pela janela da sala ele viu cinco pessoas em frente à casa do outro lado da rua. Ouvindo a gritaria Ronaldo pôde entender que a confusão foi causada pela suspeita de que o morador da casa tinha comida escondida, enquanto os vizinhos passavam fome. Ronaldo não sabia se aquilo era verdade, mas não pode deixar de sentir uma pontada de raiva. Se aquele homem tinha comida, por que não dividiu? Podiam todos se unir e…

Outro tiro. Dessa vez no peito do dono da casa.

Ronaldo voltou pra dentro. Ao invés de raiva do homem, agora tinha pena dele. E então sentiu medo. Não tinha comida em casa, mas as pessoas armadas não pareciam do tipo que conferiam antes de atirar. Provavelmente estavam agora adentrando a casa para procurar seja lá que alimento tivesse lá. E se não tivesse comida? Voltariam pra suas casas? Invadiriam as casas vizinhas? Ou atravessariam a rua e viriam matar um ex-garçom divorciado e seu filho de 4 anos? Não podiam ficar ali, era perigoso demais. “Filho, vai dormir, amanhã cedo vamos pra casa da sua tia.”

-

Devia ser quatro da manhã, mas não havia relógio para se verificar. Na velha mochila marrom suja estavam uma faca de churrasco meio cega, a melhor arma que Ronaldo encontrou, três velas, uma caixa de fósforos, e umas poucas roupas para Júnior. Ronaldo deixou suas roupas para trás, não havia espaço para elas. Pôs a mochila nas costas, pegou seu filho no colo e partiu.

Eram seis da tarde agora. Seu filho vinha segurando sua mão, também exausto, e o pior de tudo, não completaram nem um quarto do caminho. Ronaldo conhecia o caminho de carro, mas a pé, trazendo uma criança a tiracolo, o caminho parecia infinitamente maior, interminavelmente longo, infinito. Ele não planejara direito, ele se condenara, condenara seu filho. Suas últimas forças o abandonaram com o pensamento. Nisso notou árvores que se erguiam no horizonte. Devia ser o Parque Anhanguera. Engraçado como ele sempre pensou em visitar o local, mas nunca de fato fora pra lá. Forçou os últimos metros, talvez um quilômetro.

A barriga de Ronaldo se contorcia de fome e sede e fadiga. Seu filho não reclamou de nada, apesar de obviamente também estar sofrendo dos mesmos males. A luz de uma das velas Ronaldo achou por lá uma arvorezinha com frutas que nunca vira antes. Na situação em que ele e o filho estavam, não havia escolha, então ele as comeu e levou um punhado para seu filho. Até porque seria melhor morrer rapidamente, caso os frutos fossem venenosos, do que morrer de cansaço e fome numa rodovia sem fim.

Mas não morreram. Ronaldo acordou no outro dia com as pernas formigando pela caminhada do dia anterior, as costas duras por ter dormido no chão e o estomago doendo meio por fome meio por indigestão. Era novidade pra ele saber que podia sentir fome e indigestão ao mesmo tempo. Júnior, apesar da terra dura, parecia dormir tranquilamente, tamanho devia ser seu cansaço. Partia o coração de Ronaldo acordar aquela criança de seus sonhos felizes, mas eles tinham que continuar. Cada minuto desperdiçado era mais demora a chegar, e Ronaldo já não sabia se do jeito que as coisas estavam eles iam conseguir. Acordou delicadamente seu filho, e o levou no colo rumo à saída, quando ouviu um barulho.

Do lado de fora das grades havia um cavalo esquelético e uma carroça. O cavalo não estava lá quando eles entraram, e sua presença não era acaso. Alguém viera naquela carroça, amarrara uma corda ligando o animal à grade (mesmo que o animal não parecesse disposto a se afastar) e fora a algum lugar. Provavelmente dormindo sob as árvores do parque, como Ronaldo e seu filho fizeram.

“E agora?” pensou. Ele nunca roubara nada, era orgulhoso demais pra isso. Pouco conquistara na vida, mas o pouco que tinha era fruto de labuta, e esse pouco que tinha muito o orgulhava. Ele olhava da carroça para o cavalo. Até onde iria sua vontade de sobreviver? Até onde iria para proteger seu filho? Que escolha tinha? Não iriam conseguir chegar a Limeira naquele ritmo. Prosseguir a pé era estupidez. Prosseguir a pé era garantir que morreriam pelo caminho. Ele devia ter ficado em casa. Devia se arriscar a ter a atenção de seus vizinhos ao invés de arriscar tudo nessa busca estúpida. Devia…

“Pai?” Júnior o olhava com os grandes olhos negros herdados do pai. Roberto olhou de volta, sentindo remorso por ter cogitado roubar a carroça. “Vem filho, vamos procurar o dono da carroça e pedir uma carona.”

“Claro.” uma voz vinda de trás de Ronaldo fez que por um momento seu sangue gelasse. Ronaldo se virou e viu um homem maltrapilho, com um sorriso afável nos lábios, mas olhos desconfiados. Devia ser o dono da carroça, acostumado a encontrar desconhecidos que poderiam ou não ser amigáveis. “O senhor é o dono da carroça?” perguntou Ronaldo, tremendo com o susto e a perspectiva de ter sido pego roubando as posses daquele desconhecido. “Sou sim. Estou indo pro interior, já que está tudo uma bagunça pela cidade. Se quiser pode vir comigo, tem espaço na carroça.”

O dia passava de maneira mais agradável sentado na carroça ao invés de andar interminavelmente. O dono da carroça se chamava Expedito, um velho vendedor de quinquilharias que viajava pra lá e pra cá com renda o suficiente somente para suas necessidades básicas. Normalmente pessoa alguma ia querer contato com o maltrapilho, mas ironicamente, nessa situação de fim de mundo uma pessoa como ele se tornou o melhor amigo que alguém poderia ter. O bom homem até cedeu um pedaço de pão a Júnior. O pão estava velho e duro, mas Júnior o devorou avidamente, tamanha era sua fome. Ronaldo nada comeu durante o dia. Seu estomago queimava com a fome, mas não podia aceitar comida, o remorso ainda o consumia Acabou comendo poucos pedaços à noite, quando a fome se tornou insuportável.

Após uma noite melhor dormida que a anterior, prosseguiram viagem até chegar o ponto onde se separaram. Expedito seguiu para Americana, procurar quem comprasse ou vendesse quinquilharias, enquanto Ronaldo e seu filho prosseguiam caminho.

Outro dia se passou. A fome voltou a ser insuportável. As pernas voltaram a formigar. Mas finalmente estavam em Limeira. O clima não era a calma normal, era possível ver certo medo do futuro no rosto das pessoas se adaptando a viver sem tecnologia talvez para sempre. Mas não havia vizinhos armados caçando comida por cima de cadáveres, só este fato já tranquilizava Ronaldo. Até seu filho parecia mais animado, dando passos mais firmes ao invés de arrastar os pés devido à exaustão.

Acabaram se perdendo, pois o fim do caminho já era difícil de acertar à luz do dia, mas depois de duas ou três horas finalmente chegaram à casa da tia de Ronaldo. Não era tão grande assim, mas também não era um casebre. Ronaldo, com uma lágrima escorrendo pelo rosto suado, apertou a campainha. Finalmente haviam chegado. Apoiando a cabeça no portão branco, via sua tia vindo, com seus cabelos grisalhos armados como quem estava dormindo até agora, suas rugas e pés de galinha acentuados por um olhar espantado, que deu lugar a um belo e acolhedor sorriso de boas vindas.