SINTÉTICO

Sonhos importunadores o perseguiram a noite inteira. Um universo convulsivo e interminável que o deixara esgotado ao acordar e sem nenhuma lembrança do que aconteceu.

Era cedo para sair da cama,a escuridão ainda tinha a terra nos braços e o silêncio arrastava-se nas ruas,mas não conseguiria mergulhar outra vez no sono, pelo menos não sem algum tranquilizante.

Jogou o lençol para o lado e cambaleou até o banheiro.Luzes brancas,endurecidas se acenderam ao entrar. Um grande e limpo espelho revelava sua idade como um comediante inconveniente. Ele permitiu-se sorrir. Houve tantos avanços extraordinários na medicina e tecnologia, coisas que a alguns anos atras pensava-se apenas estar restrito a utopia de filmes de ficção cientifica, mas a humanidade ainda não conseguira vencer seu maior fantasma. A idade continuava a consumir corpos, o doloroso e chocante ciclo em direção ao fim.

Nos últimos anos a indústria da beleza explodiu de tal forma que seus lucros se equiparavam a da informática, a maior fonte de riqueza da atualidade. Não era a toa que ele tinha algumas ações das maiores empresas de cosméticos.

De todo modo, dificilmente alguém discerniria sua idade. Mesmo resistindo a ideia de tingir os cabelos e estes já alvejavam na maior parte, não aparentava cinquenta anos.Menos para aquele espelho.Sua nitidez, reforçada por ângulos iluminados parecia rasgar camadas de pele, triturar músculos e denunciar a idade.

Durante um tempo isso o incomodou. Pensara até em amenizar a iluminação, usar cores menos intensas, mas desistiu. Em um mundo pervertidamente dissimulado, precisava de alguma coisa sincera que o confrontasse .

Colocou as mãos sob a bica, um jato de água fria jorrou.Molhou o rosto uma vez, depois com um sabonete liquido apropriado. Assim que levantou os olhos, notou a forma sinuosa sentada de costas em sua cama. A penumbra do quarto não permitia ver mais do que se pretendia e como a maioria das coisas naquela casa, não era casual.

Todas as manhãs ele tinha prazer em vê-la. Havia o efeito do deslumbramento de uma alvorada no mar, quando a luz do sol pouco a pouco desnudava um azul puro. Havia o sentimento de se descobrir próximo de um extraordinário instante de ruptura entre eras, de confrontos entre sonho e realidade. Ainda não chegara à banalização.

Naquele dia, relutou em olhar para ela. Até então, estava tudo bem. Sentia-se cada vez mais satisfeito, tinha uma empresa de publicidade bem sucedida, dois filhos casados e netos, podia ir para qualquer parte do mundo quando bem entendesse, tinha amigos bons e sinceros.Recentemente começou a ir de vez em quando a uma igreja, a principio apenas para entender algumas questões em seu íntimo que sempre protelou por um motivo ou outro. Apenas ia, sentava-se ao fundo e ficava atento. Para a grande pergunta ele já tinha uma convicção e sentia-se grato por isso.

Tudo era confortavelmente bom e não o entediava. Mas havia algo diferente, não tinha certeza de quando começou nem porque.

Ela estava de pé na entrada.Aleck observava pelo espelho e eis que esse grande fanfarrão não conseguia refletir com sua sinceridade grosseira a realidade.Apenas acentuava o rosto quadrado com linhas suaves, o azul claro dos olhos, o dourado das sobrancelhas ,cabelos e juventude.

-Aleck, está tudo bem?-sua voz era suave e musical como uma carícia, mas sentiu seu coração apertar ao ouvi-la.

Ele se voltou para trás, os ombros curvados e a compreensão febril do porque não havia nada para ser revelado. Observando-a, não era capaz de desvendar toda a complexidade, loucura e desejo que representava. Foram cinco anos de deslumbramento, alienação e não se arrependia. Joyce fez com que acreditasse outra vez quando tudo desmoronava com a morte da esposa. A família e os amigos a principio resistiram à ideia, mas ao verem o quanto se sentia bem, aceitaram a situação.Isso era o que importava, mesmo sabendo que jamais a compreenderiam.

Mas quem pode compreender a perfeição? Ele achava que poderia.Que a plenitude estaria ali.Joyce era tudo o que um homem poderia desejar de uma mulher, porque ela seria qualquer uma que o homem quisesse.

Aleck chamou-a com um gesto e abraçou sua cintura fina. Seus rostos estavam a centímetros de proximidade. Ela tentou beija-lo, não foi correspondida.

- Precisamos conversar.- ele sussurrou pesaroso

Joyce o encarou impassivel.

-Eu sei.

Ele a afastou gentilmente, olhou-a de alto a baixo. Era um pouco mais alta que a média das mulheres, as pernas longas e torneadas, o corpo malhado, a pele sedosa e sem cicatriz alguma. Não foi à toa que o encantara.

Sentaram-se na beira da cama.Ela com uma perna dobrada sobre o colchão e a outra pendida a tocar o carpete. Ele ainda curvado com uma expressão grave.

Joyce acariciou o rosto áspero do homem e no silêncio do quarto podia-se ouvir o roçar da pele nos fios de barba.

- Por que está tão preocupado?

Aleck soltou um suspiro amargo.

- Preciso fazer uma coisa e não estou contente com isso.

-Então não faça.

-Não é simples assim. Se eu...se eu não fizer, temo que depois tudo ficará mais difícil para mim e para você.

- Para mim?Não pode ser.

Ele segurou a mão dela.

- Sim,é verdade, não vai ser tão dificil para você e é isso que torna tudo mais complicado. O que eu quero dizer é que se eu não fizer o que precisa ser feito, vou me sentir um canalha. Parece besteira,mas é o que vai acontecer. Então o problema está mais em mim.

-Desculpe, mas não estou entendendo onde quer chegar.

- O problema, Joyce é que você é perfeita. Não reclama das minhas manias, não se importa que eu descarregue meu estresse sobre você, está sempre disposta, linda, alegre. Não é ciumenta, maliciosa, enjoada. Não. Você é amiga e amante o tempo todo. Nem por um minuto se torna desagradável.

-Posso ser tudo isso se quiser.

Aleck enrodilhou os dedos nos cabelos vastos e grisalhos.

- Ai está, você se submete a tudo. -ele ri rapidamente-Céus! É por isso que é fácil gostar de alguém como você. Pode ser aquilo que o meu ego bem desejar.

-Sinto muito se o decepciono, mas eu sou assim.

Aflito, ele segura com as duas mãos o rosto de Joyce.

- Não, por favor. Não estou decepcionado com você. Estou decepcionado comigo e com aqueles que tornaram realidade sonhos impossíveis. Decepcionado porque eu a amei apenas pelo que podia me proporcionar, porque simplesmente era o que eu queria que fosse. E acho que eu me enganei por tempo demais. Muitas pessoas estão esquecendo o que é convivência, pior o que é vida.

- Sente-se como uma dessas pessoas?

- Sim eu me sinto desgarrado da multidão. Eu não sei explicar porque. Não foi nenhum momento em especial que de repente me fez pensar nessas coisas. Acho que foi algo lento e progressivo até eu entender que deveria parar de me enganar.É como se um alcoólatra decidisse parar de beber porque caiu na real.

O fato é que abri mão de conhecer outras pessoas que talvez não fossem tudo o que você é, mas eu me sentiria parte da vida. E apesar de aparentemente não haver nada que diga o contrário, a consciência de que você não é humana acaba comigo.

Como esperava, não houve nenhuma sombra de mágoa no olhar de Joyce, porque ela não se magoava, a menos que ele quisesse. Apenas aquela atenciosa e estranha expectativa.

-Faça o que for melhor para você, Aleck. Sabe que não fui desenvolvida para ter emoções próprias, portanto não se preocupe.

-Eu nunca a olhei como uma máquina, me acostumei com você. As pessoas podem amar muitas coisas, carros, quadros, brinquedos, mas no fundo sabem que o que são. Agora você...céus! Eu perdi a percepção da realidade porque você superava todas as minhas expectativas. Mas você não é humana. Tem todos os atributos físicos de uma top model, a classe de uma dama, a inteligência de um gênio, mas é tudo fruto de números binários, biotecnologia,mecânica, eletrônica e sabe-se mais lá o que . Eu nunca me importei com isso. Só queria...você.

Joyce se levantou abruptamente, olhou para Aleck por alguns segundos e foi até a janela. As pesadas cortinas verdes se abriram desvendando um amanhecer radiante.

-Meu tempo acabou.- ela murmurou para o vazio- Geralmente os engenheiros são contatados para desativarem meu sistema quando não é mais interesse do usuário. Você precisa apenas confirmar verbalmente o código que eu lhe darei.

Aleck socou a cama e cerrou os dentes. Depois se levantou e foi até ela.

-Eu não...- tentou dizer, mas não sabia mais o que.

-Não posso sentir o que sente, Aleck, mas posso entender seu conflito. Jamais supri a ausência de Laura, pelo contrário, apenas intensifiquei. Precisa encontrar alguém tão humana quanto você, se é que já não encontrou.

Como ela poderia saber?Nunca haviam conversado sobre possíveis relacionamentos.Intuição feminina?Jamais.Era uma máquina.Mas o modo como dissera aquilo foi como se houvesse uma ponta de amargura.

-Não importa agora-ele disse.

-Você tem a opção de desativar pelo procedimento online como mencionado-continuou ela em um tom cibernético- ou manualmente.Só precisa entrar em contato depois com a central para que eu seja retirada.

Aquilo o aterrorizou tanto quando a primeira vez quando ela foi ativada, porque

evidenciava o andróide, a alta tecnologia real apenas em livros e filmes, e o limite entre a humanidade. Todavia estava decidido. Uma dor o desmontava interiormente quando perguntou:

-Como é o procedimento manual?

Joyce o beijou suavemente e aqueles lábios não pareciam sintéticos, tampouco o calor que neles havia. Por um momento, Aleck esqueceu o que era humano ou não e quase desistiu. Então ela se afastou.O azul dos olhos tinha uma opacidade estranha, como se uma película o recobrisse.

- O que eu fui para você?- ela balbuciou.

Ele queria dizer muitas coisas.Apesar de tudo, não podia negar o quanto Joyce o ajudou nos momentos mais nebulosos de sua vida.Mas a ideia sombria sempre emergia-era uma máquina,e ficou em silêncio.

A mulher se ajoelhou e abaixou a cabeça, os cabelos, como uma cascata dourada tocavam o chão. Um frio alojou-se no quarto. Aleck a chamou duas vezes e se agachou. Levantou o rosto dela pelo queixo e viu um rosto estático, sem brilho. Agora tinha a semelhança de uma boneca bem feita. Aquilo produziu um nó imenso em sua garganta.Era o fim.

Um som agudo e irritante cortou o momento.Ele atendeu o telefone com comando de voz.

-Pois não.

-Senhor, identificamos que o seu Zoe código 424JR foi desativado mas não conseguimos detectar defeito. Aconteceu algum acidente com o andróide?

-Não, não aconteceu nada,eu o desativei manualmente.

-Desculpe senhor, mas o sistema Zoe só pode ser desativado com código e intervenção de nossa central.

-Espera um pouco, como assim?Joyce...quer dizer o robô me deu a opção do modo manual para desativar.

-Sinto dizer senhor, mas não existe modo manual.

Aleck estremeceu e segurou a mão flácida de Joyce com um vazio maior do que tudo.

Renan Moraes
Enviado por Renan Moraes em 02/03/2013
Código do texto: T4167584
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