O IRÃ NO ANO 3030!
Na Universidade de Teerã, naquela noite, o ambiente estava tenso, a faculdade toda estava em polvorosa, todos os alunos discutiam uma grave polêmica: Sarah, uma transexual operada no Marrocos beijou, na boca, o jovem Aziv, no Big Brother Iran-Iraq (BBII). A grande questão, que instigava até alguns dos professores, em discussões acaloradas, era: sendo Sarah operada, ela agora poderia ser considerada mulher, ou seria o rapaz viajado, educado no Ocidente e formado numa faculdade de Buenos Aires, homossexual?! Houve quem evocasse o Alcorão e previsse para o casal do reality e até para os produtores do programa e os donos da rede de tevê, a eternidade no inferno, após suas mortes. Mas a voz que disse isso não se levantou muito, foi meio tímida e logo calou-se, quando outra pessoa disse, às gargalhadas: “É, leva esse assunto pros aiatolás, pede que façam a revolução outra vez!” Todos se riram. O jovem acadêmico de Ciência da Nano-computação somente ouvia, sem demonstrar muito interesse, a discussão, que continuava no ponto de aerobus, no fim das aulas, quando foi intimado a opinar por um colega: “E tu, Rudí, que achas disso?”
Rudyard – sim, esse era seu nome – olhou para o amigo com um ar assombrado, piscou os olhos duas vezes, como se tivesse sido despertado de um sono profundo, demorou ainda quase um minuto pra responder, gaguejando: “Mas... mas... tchê, eu nem assisto esse programa!”
“Tá, então tu não viste o tal beijo que todo mundo tá falando, mas sabe o que aconteceu!”, retrucou o colega. “E aí, o que tu achas dessa história?!”
“Ah, cara, quer saber o que eu acho mesmo?”, disse Rudí, “Acho que cada um com seus problemas!”, respondeu sem emitir opinião e encerrando o assunto. Deu graças a Alá, quando viu o seu coletivo se aproximando, fez sinal para parar, se despediu dos amigos e seguiu viagem, enquanto eles continuavam acaloradamente a discussão.
O rapaz morava numa pequena cidade próxima a Teerã, Gorgan, ainda na casa do pai, que ficava nos fundos do negócio da família, uma lanchonete, franquia da cadeia de fast foods Mc Donald’s. Seu Mahmoud trabalhava de sábado a quinta-feira, das 9h da manhã até a meia-noite, para pagar os estudos dos dois filhos e três filhas. Rudí estava no sexto e último período de faculdade, enquanto seu irmão e irmãs já estavam com a vida ganha, por assim dizer. Inclusive sua irmã mais velha esava em Boa Vista, Roraima, era gerente do maior banco de crédito das Américas, que havia começado como uma pequena cooperativa de crédito, em Santa Cruz do Sul, lá no início do século XXI.
Todas as noites, Rudí chegava da faculdade e parava na lanchonete do pai, pra comer qualquer coisa, tipo um quarteirão com queijo e ajudá-lo a fechar o estabelecimento. Bem dizer, esse era todo o seu trabalho. O pai nem queria, pedia para o filho passar logo para o apartamento deles, nos fundos e ir descansar, que ele levaria o seu lanche até lá. Queria que ele só se preocupasse com os estudos e nada mais, mas o garoto também queria ser minimamente útil ao pai, não queria sentir-se um estorvo para o velho, que já tinha seus setenta e poucos anos...
Nessa noite, o pai até gostou de ter a companhia do filho, pois o movimento na lancheria não estava assim tão grande, no momento em que o rapaz chegou havia só um cliente ainda, um caminhoneiro sem muita cara de iraniano... a coisa estava assim nesse pé, hoje o Irã recebe imigrantes de países que foram ricos um dia e agora pertencem ao 3º mundo, como Austrália, Japão, Suíça... por isso seu Mahmoud nem estranhava o freguês que falava persa com um exótico sotaque texano. Rudí aproveitava o pouquíssimo movimento para fazer sua refeição de hambúrguer e refrigerante de guaraná em uma das mesas de canto, enquanto assistia ao noticiário na tv de tela holográfica digital. Sua atenção fora chamada por uma matéria preocupante, o governo norte-americano anunciava um aumento considerável no preço da água mineral e, em contrapartida, a presidenta iraniana, Nazira Ahmadinejad, ameaçava os Estados Unidos com boicote, embargo e, se nada disso funcionasse, a guerra!
Quase que automaticamente, o rapaz olhou para seu velho pai, que aparentava permanecer alheio ao assunto, mesmo estando ele também assistindo ao noticiário. Timidamente Rudí chamou-0: “Pai... ô pai! O senhor não ficou preocupado com essa última notícia aí?”
“Eu? Com quê... ah, tu dizes com esse pronunciamento da madame presidente!? Não mesmo!” E deu uma gargalhada farta. “Eu conheço bem a peça, meu filho, essa daí é só garganta!”
“Sim, mas... e se ela cumpre com todas as ameaças?? E se chega a entrar em guerra com os americanos??”
“Meu filho...”, começou seu Mahmoud a argumentar com seu ar zen-budista, “o trisavô da dona Nazira já esteve sentado naquela mesma cadeira e também era mais fanfarrão que qualquer outra coisa! Ameaçava os yankees e os israelenses dia sim, dia não e não saia das bravatas! Hoje nosso país e Israel são até líderes e parceiros do nosso bloco econômico.”
O moço coçou a cabeça, concordando, ainda com um ar de dúvida. “Ok, eu sei, pai... mas li no Teeran Times que tem guerra aí que já ta com mais de 50 anos! Parece que é a questão da Kashemira, entre Índia e Paquistão...”
“Aham, tô sabendo, também li o jornal no meu iPad 5000” disse seu Mahmoud, com um sorrisinho irônico, “E tu sabes que a população desses dois países, principalmente da Índia, só faz crescer! Parece que a Índia tá pra chegar ao número mundial de 2010, 7 bilhões de habitantes!”
“Sim, sim, tá certo, mas pai... se os americanos quiserem também a guerra, isso não vai ser um problema? Dizem que eles não tão com todo aquele potencial, mas que ainda é bom tomar cuidado com eles...”
“É, é, é, sei disso tudo...” disse o velho, fazendo um gesto de pouca importância. “Mas eles, hoje, não são mais aquela potência mesmo, não... um dia eles eram os fodões e botavam banca onde eles quisessem, mas hoje não é mais assim. Além do mais, hoje eles precisam muito mais de nós e do nosso poder econômico, que nós do deles!”
O rapaz calou-se por uns instantes, para poder ajudar o pai a empilhar as cadeiras, fechar as portas e escurecer as janelas amplas de película super-fina e super-resistente transparente. Por fim sorriu, concordando: “Tá certo, pai, o senhor tem razão nisso... mas pai... tendo a tua lancheria a marca de uma empresa americana, não tens medo desse boicote do governo?”
Seu Mahmoud parou e olhou para o filho por uns instantes, pensativo, antes de responder: “Pois olha, Rudí... se depender da clientela, esse boicote não vai afetar o consumo. Primeiro, que o povo tem que comer e fast food é mais rápido, prático e barato que comida iraniana de verdade. E segundo... convenhamos, esse povinho se preocupa mais com suposto beijo gay num reality show que com as falácias duma presidente... então, dum jeito, ou de outro, não morreremos de fome, meu filho, podes ficar tranqüilo!”