Medo
Era um dia excepcionalmente belo. Eduardo assoviava alegremente enquanto caminhava pelos infindáveis corredores da empresa. Passava por portas enormes, todas com correntes muito grossas e brilhantes cadeados. Cada uma continha uma placa de ferro com um nome entalhado. Eduardo passava por elas todos os dias, e já não precisava lê-las, murmurava baixinho o texto de todas elas, como um ritual: "Bicho-papão, saci-pererê, zumbi, vampiro, mula sem cabeça, lobisomem..." e toda uma infinidade de monstros que fariam qualquer criança arrepiar-se só de ouvi-los.
O corredor estava quase totalmente na penumbra, porém, ao seu final, era divisível uma luz muito forte vindo debaixo da última porta do mesmo. Uma enorme placa dourada e reluzente indicava um nome muito curto. "Além". Diferentemente das outras, essa porta era muito maior, e não possuía apenas uma corrente, mas sim dezenas; além de inúmeras trancas e fechaduras e é claro, um sistema com senha e reconhecimento de digital. Apenas o dono da empresa poderia abri-la. Claro que muitos funcionários -corajosos- já haviam pensando em copiar as digitais dele para conseguir passar da porta, entretanto esta se torna uma tarefa extremamente difícil quando não se sabe quem é seu chefe. Ele só se comunicava por um sistema de voz, e era nomeado apenas como Senhor.
O que mantinha os funcionários ativos era o enorme salário que recebiam ao final do mês, além de, ironicamente, o exato sentimento com o qual trabalhavam.
Finalmente, Eduardo chegara à sua sala. Sentou-se em sua cadeira e acionou o sistema que ligou os enormes computadores à sua frente. Um por um, eles foram se acendendo. A maior parte das imagens que neles apareciam, eram de crianças, embora pudesse encontrar-se também de adolescentes, adultos e até idosos. Diziam os mais experientes na empresa que quando implanta-se uma ideia na mente de uma criança, ela cresce e torna-se independente como um ser vivo, de modo que possa controlar a pessoa inclusive na vida adulta.
Eduardo estudava atentamente a imagem do primeiro monitor. Uma garotinha de sete anos estava deitada em sua cama, agarrando-se febrilmente à um ursinho velho, enquanto uma senhora repetia calmamente que não havia nenhum monstro debaixo de sua cama. "Olha de novo" repetia ela, incessantemente. A mulher abaixava-se e com cara de cansaço dizia pela milésima vez que não havia nada lá. Enfim convencida, a garotinha deixou a senhora sair e encostar a porta. Estava enfim na hora de Eduardo agir. Acionando uma sequência de complexos botões, a "magia" foi feita. De repente, os olhos da menina arregalaram-se, e ela tentou gritar, em vão. Um vulto assomara-se ao pé da cama da criança. Lembrava vagamente um homem, com os cabelos desgranhados, a cara contorcida de ódio e as feições disformes. De suas mãos, saiam unhas enormes e afiadas, capazes de abrir um abdômen sem nenhuma dificuldade. Seus olhos brilhavam enquanto olhavam para a garota e então ele começou a se mover lentamente até ela. Com os olhos esbugalhados e terrivelmente pálida, tomada pelo pânico, ela conseguiu finalmente gritar. E gritou como nunca tinha feito antes, à plenos pulmões.
A senhora veio correndo da sala e empurrou a porta de supetão, no exato momento em que Unhudo tentava enfiar suas unhas na garganta da garotinha. Felizmente para Eduardo, ele apertara o botão antes que a senhora conseguisse ver qualquer coisa. Unhudo sumira tão subitamente quando aparecera. A garota chorava desconsolada, enquanto sua mãe tentava acalmá-la.
Com um sorriso de satisfação, Eduardo desligou o primeiro monitor. Já trabalhava lá havia tempo, e não sentia mais pena dos "clientes" (resolveram chamá-los assim, já que "vítimas" parecia um tanto quanto rude, visto que a menos que algum acidente de trabalho acontecesse, ninguém saía ferido fisicamente).
Virando-se para o segundo monitor, ele recomeçou o trabalho, com a certeza de que o Medo implantado nessas pessoas, as impedia de ir para o Além. E o Além... ah, ninguém além do Senhor sabia o que existia lá, e esse era o segredo mais bem guardado desde que o mundo se conhecia por mundo.