Ó Pioneiros!

Contra a luz difusa do amanhecer, a massa escura do gigantesco Orbital erguia-se numa curva suave até desaparecer por entre as nuvens, qual fosse o chifre de um imenso animal mitológico. Guba Nobu Dasomon desviou seus olhos do cenário grandiloquente e pousou a xícara de porcelana no pires antes de responder à esposa:

- Os Progressores desapareceram há milhares de anos, juntamente com o seu Instituto de Estudos Históricos. Aliás, talvez nem tenham desaparecido assim tão completamente; foram substituídos pelas Circunstâncias Especiais. A diferença entre uns e outros? As Circunstâncias Especiais estão sob ordens do Colegiado de Mentes. Da Cultura, minha querida, se quiser colocar desta forma.

Tomou um gole de chá enquanto a esposa o observava em silêncio.

- Mas não estou educando nosso filho para ser um Progressor... ou para entrar para as Circunstâncias Especiais, se é isso o que pensou. O meu objetivo é que o pequeno Malakor seja independente, que ele possa escolher o caminho que quiser seguir.

Mavra Nobu Dasomon tocou a mão do marido sobre a mesa.

- Sabe, Nobu... o que me preocupa é que essa independência seja tão absoluta, a ponto de prescindir até mesmo daquilo que é a nossa própria identidade coletiva. Para mim, é como se o nosso filho estivesse sendo preparado para viver fora da Cultura.

- Para ver como o mundo lá fora é, e voltar - enfatizou Guba Nobu. - Há muito que ver e fazer ainda, embora por milhares de anos nos tenhamos acostumado à ideia de que vivemos além do fim da História e que já não há mais nada no Universo com que devamos nos preocupar. Penso que esta ideia é falsa, e que precisamos trazer visões de mundo diferentes, até para que a própria Cultura tenha opções para mudar. Caso precise, caso seja necessário.

- E você está colocando esta responsabilidade sobre os ombros do nosso filho? - Arguiu Mavra Nobu.

Guba Nobu tomou outro gole de chá antes de responder:

- Não. Mas penso que alguém deve ser o primeiro a tomar esta atitude. Se for Malakor, que seja.

Cotovelos na mesa, Mavra Nobu entrelaçou as mãos e apoiou o queixo nelas, olhando fixamente para o marido.

- O nosso filho sozinho, tendo que confiar unicamente em si mesmo para resolver qualquer que seja o problema que se apresente, sem ajuda de nenhuma inteligência artificial, em planetas desconhecidos, habitados por selvagens... não teme que ele não volte? Não poderia ser outro a partir nessa jornada em busca do seja lá o que for que ache que nos falta como coletividade?

- Penso que, por tempo demasiado, estivemos delegando a outrem o nosso destino. É preciso voltar a escrever a nossa própria história. Você falou nos Progressores, que tentavam influenciar civilizações planetárias para que adotassem o nosso modelo de desenvolvimento e se tornassem parte do que hoje chamamos Cultura. O que, de forma menos sutil, ainda é feito pelas Circunstâncias Especiais. Mas antes e durante a época dos Progressores, houveram os também chamados Pioneiros, jovens desbravadores da Galáxia, cartógrafos de novos mundos. Os Pioneiros partiam em missão de reconhecimento, não com o intuito de interferir com o que quer que fosse. Vejo Malakor, daqui há cinco ou dez anos, como um desses antigos Pioneiros. Alguém que vá além - e volte com novas histórias.

Mavra Nobu desentralaçou as mãos e as colocou sobre a mesa. Entre nuvens pesadas, o sol central do sistema começava a elevar-se sobre as distantes montanhas de monocristal de 2000 quilômetros de altura, que compunham os Contrafortes do Mundo - a borda do Orbital. Volutas de umidade subiam desde a floresta tropical que sobrevoavam a bordo do orbitador familiar, mas dentro da cúpula pressurizada e climatizada, era impossível imaginar o quanto estava abafado lá fora. Certamente, enfrentariam uma tempestade mais tarde.

Mavra Nobu imaginou o pequeno Malakor sozinho lá embaixo, em meio à densa selva de árvores centenárias. E estremeceu.

[26-01-2013]