Lua em Urano
Não eram nem 10h quando a senadora chegou e a esplanada já estava lotada. Eram majoritariamente homens, portavam cartazes e tambores. Um grupo bem humorado empunhava manequins de plásticos com falos. Um homem usava uma máscara da senadora, trazia nas mãos um machado e simulava multilar os falos dos manequins. Os protestos tinham piorado muito nos últimos dias devido a proximidade do julgamento.
- É muita gente protestando, não?
O assessor deu de ombros:
- Me diz um lugar com pouca gente atualmente, que eu me mudo para lá na hora.
A senadora sorriu. Um lugar com pouca gente, muita água e comida suficiente. Uma utopia.
O primeiro compromisso do dia era um encontro informal com o presidente do Supremo Tribunal Federal. O senado queria ter clareza sobre a posição do tribunal no caso polemico; não podiam ser pegos desprevenidos. Mesmo que muitos senadores se posicionassem publicamente a favor do ao réu, sabiam que isso era impraticável. Caso os ministros não tivessem culhões suficientes para tomar a decisão correta, caberia ao Senado o papel de carrasco. Ou ao presidente. Fosse como fosse, o processo precisava ser contido.
- Uma criança morrendo é sempre uma cena de apelo emocional. Mesmo quando o problema do mundo é o excesso de crianças...
O presidente do tribunal parecia relutante. O Senado sabia que o tribunal estava dividido. Em caso de empate, caberia a ele o voto decisivo.
- E a constituição do país ainda defende o direito a vida...
Era verdade, a frase ainda estava na constituição. "Todos terão direito a vida". O problema é que antes mesmo dela ser senadora a frase já havia caído em desuso: aprovaram uma emenda constitucional que legalizava o aborto até o quinto mês desde que fosse vontade ao menos da mãe; autorizaram o parto prematuro a partir do quinto mês quando há risco de vida para a mãe; permitiram o aborto pós-natal quando a criança possui alguma deficiência severa que impede de desfrutar da vida plenamente. "Aborto pós-natal" que nome idiota para extermínio de deficientes!
_ Espero que vossa excelência compreenda o momento que o país vive. Nossa missão não é atender aos anseios da multidão, mas dar a ela o que ela precisa. É triste, mas o país não precisa de mais crianças. A lei do filho único não precisa dessa jurisprudência.
O Brasil foi um dos últimos países a adotar a lei do filho único. Antes de recorrer a esse expediente os juristas brasileiros tentaram várias outras coisas: programas econômicos que beneficiavam que tinha pouco filhos, multas para quem tinha mais de um filho, afrouxamento das leis anti-aborto, distribuição de anticoncepcionais, aulas de educação sexual, estimulo da abstinência. Proibiram qualquer tipo de imigração, chegaram a instalar um muro na fronteira com o Paraguai. Nada deu certo e a população continuou aumentando. Em parte isso aconteceu porque o Brasil foi um dos últimos países a racionar seus recursos: a abundância de terras e água conferia a população uma segurança que faltava ao resto do mundo. Quando a escassez se mostrou inevitavel, os governantes entenderam que precisavam de uma lei de filho único. Restava decidir o modelo.
Coube a senadora redigir o projeto de lei que acabou sendo aprovado. Era um projeto curto:
Art. 1: Todo casal poderá ter apenas 1 um filho;
$1 Caso a gravidez seja de gêmeos, será permitido ao casal criar os filhos resultantes da gravidez;
$2 Em caso de separação após o nascimento do filho, será permitido ao cônjuge que renunciar a guarda da criança ter um novo filho, desde que o novo parceiro(a) não possua filho.
Art. 2: Toda gravidez confirmada ou parto deve ser imediatamente comunicada pelo hospital ao Ministério da Fertilidade;
$1 O médico deve encaminhar um laudo contendo: o estado de saúde e desenvolvimento do feto; o nomes e os documentos dos pais;
$2 Qualquer omissão de médico, hospital ou terceiros incorrerá em 6 meses de prisão e multa
Art. 3: Afim de garantir o cumprimento da lei, todo homem que for pai será submetido a processo de vasectomia compulsória;
$1 Caso a mãe não saiba identificar o pai da criança, ela será submetida a ligação de trompas compulsória;
$3 Nas circunstancias em que se aplique o paragrafo 2 do artigo 1, a vasectomia poderá ser revertida, sendo realizada novamente após o parto do novo filho.
O projeto foi discutido por semanas no plenário. Vários senadores e deputados fizeram discursos contra o projeto; a imprensa a apelidou de bruxa castradora. Só que o projeto acabou sendo aprovado. E foi aprovado porque era o que o país precisava e não o que ele queria.
_ Vossa excelência me permita discordar. Nosso oficio não é apenas dar ao povo o que eles precisam; também devemos encarnar valores. Espero que entenda que nos últimos anos o Congresso se limitou a fazer o necessário, e isso empobreceu a política. Eu não vesti essa toga para fazer apenas o necessário. Eu a vesti para defender a letra da constituição, mas também para defender os valores morais que nos levaram a civilização. E espero que entenda que o caso que temos em mãos não é apenas questão de jurisprudência; é também uma questão de civilização.
Valores morais, civilização. O ministro parecia saído do túnel do tempo. Há muitos anos que a política era uma questão de gestão e não de valores. A opção pela vasectomia compulsória ao invés da ligação de trompas, por exemplo, foi uma decisão tomada totalmente em função da boa gestão. Uma vasectomia é 8 vezes mais barata que uma ligação de trompas. Sequer exige médico qualificado; um enfermeiro com treinamento pode realizar o procedimento. No racionamento de tudo que o país vivia economizar uma vez era muito. Quanto mais oito.
Ela lembrava dos protestos logo após o anuncio da lei. Um coronel mais exaltado ameaçou cercar e fechar o Senado com suas tropas. Dizia que o Brasil se tornaria um país de frouxos, que os soldados não seriam mais capazes de proteger a fronteira por que tinham sido privados da sua condição de homens. Na televisão choviam especialistas apontando soluções mais adequadas que a lei do filho único; todas elas já tinham sido tentadas pelo governo e falharam miseravelmente. Um único canal teve coragem de levar um especialista favoravél a lei; sofreu sanções dos anunciantes e boicote dos telespectadores. No dia que a lei foi promulgada multidões foram as ruas vestidos de luto; hospitais foram quebrados, médicos agredidos. Foram alguns meses até que a ordem se restabelecesse. E os anos que sucederam provaram o obvio: a lei funcionava. O nascimentos tinham sido reduzidos drasticamente.
_ E além disso senadora, há outro fato. A lei do filho único ofereceu muitos benefícios para esse país, mas já faz cinco anos que ela está em vigor. O país não é mais o mesmo. O país não precisa e não merece uma lei tão rigorosa quanto essa.
Inicialmente a senadora achou que o ministro estava sendo idealista, agora, achava que ele estava apenas sendo tolo. Nascimentos não são a única forma de fazer uma população crescer. Existiam também as imigrações, legais e ilegais. E o que era ainda pior, o medo dos países vizinhos de verem seus índices de imigração aumentarem.
Quando os partidos da oposição denunciavam a anos atrás a pressão externa por uma lei do filho único no Brasil não estavam mentido. As pressões existiam e estavam chegando a níveis insustentáveis. Ela não sabia que efeito um afrouxamento na lei do filho único causaria aos países vizinhos. A política externa andava tão arisca que qualquer faísca podia gerar uma explosão. Atômica.
Antes de controlarem com corda curta a fertilidade do país os políticos procuraram outras soluções. Porque evitar nascimentos não é única forma de diminuir a população de um país. Existe também a guerra. Por sorte, outros países testaram essa solução antes Brasil.
O mundo andava muito radical. Os extremismos, tanto da esquerda quanto da direita, faziam presidências aos montes. Turquia e Síria iniciaram uma guerra. Era para ser uma gurra de infantaria, na fronteira, com muitas baixas mas sem perdas materiais ou de território. Levou menos de duas semanas para uma bomba atômica explodir no coração da Turquia, eliminando um milhão de pessoas de uma vez. Eliminando também centenas de hectares de terra que se tornaram inférteis, contaminando o principal rio do país. Alguns cientistas acreditam que a radiação aumentou o número de mutações genéticas em pessoas, animais, plantas e pragas. Da Turquia, pouco depois, surgiu uma praga no trigo que comprometeu parte da safra europeia. A bomba não era uma alternativa a superpopulação. O problema é que os radicais no poder não entendiam isso. A guerra não era uma opção. Irritar os vizinhos também não.
Houve quem sugerisse uma guerra interna. Uma guerra que os políticos pudessem controlar. Bastaria inflar um movimentos separatista qualquer e futuramente combatê-lo, eliminando o máximo possível de vidas. Só que o radicalismo não era uma exclusividade dos vizinhos; também tinha raízes firmes dentro do país. A experiência do Rio Grande do Sul foi um desastre. Quando encurralados pela federação, os gaúchos atacaram a própria terra: despejaram litros de mercúrio num rio que cortava três estados. A contaminação chegou até o litoral brasileiro.
O mundo estava beira do colapso; enquanto as pessoas estivessem divididas e irritadas era possível controlá-las, mas diante de uma causa, um ideal, tudo o que restaria seria destruição. Governar nesses tempos era equilibrar um elefante no fio de uma navalha.
_ Eu entendo vosso posicionamento senhor ministro. Espero que vossa excelência compreenda que o Senado tem uma visão diferente. E irá lutar por esse ponto de vista.
Caso o posicionamento do ministro se confirmasse no pronunciamento do tribunal, o senado precisava de uma estratégia. Não podiam cassar uma decisão do tribunal, mas podiam cassar os próprios ministros. Isso acalmaria os países vizinhos. Por outro lado, seria inconveniente dar aos manifestantes da esplanada um mártir. Um mártir homem. Ao menos uma coisa boa no imbróglio, a criança doente era uma menina. O discurso de castração não se aplicava a ela.
Com o tempo a população entendeu que a lei do filho único era um mal necessário. Tratava-se de um bilhão e meio de pessoas no país, cerca de meio hectare de terra para cada individuo. A situação ainda era melhor que a da Índia ou da China, mas qualquer um reconhecia que estavam a beira do colapso. Não discordavam da lei, mas do método de aplicação. De um lado havia os homens que achavam um absurdo a cirurgia forçada; do outro as pessoas que achavam bobagem os homens lutarem por algo que não pretendiam praticar. Se não pretendiam ter mais de um filho, porque queriam a possibilidade de fazê-lo? E havia também as mulheres que sabiam que se a vasectomia deixasse de ser compulsória, caberia a elas a ligação de trompas compulsória. Ou o aborto compulsório. Ou a punição pelo método contraceptivo mal utilizado. E haviam os ideólogos da eficiência, que defendiam a vasectomia como solução mais barata para o problema e portanto mais adequada. A população agia como se estivessem discutindo uma escolha pessoal e não uma escolha politica. E enquanto a populaçao não entendesse que o pessoal é o político a revolução se manteria sob controle.
Só que um dia surgiu Pedro Alcântara Marques. Ele entrou com uma ação na justiça solicitando a reversão da sua vasectomia para que pudesse ter um segundo filho com sua esposa. Sua primeira filha Denise Alcântara Marques sofria de leucemia. Um transplante de medula poderia salvá-la. Infelizmente, entre os 15 milhões de doadores cadastrados nenhum era compatível com a menininha. Sabe-se que a cada 3 filhos um é necessariamente compatível. O pai reivindicava a chance de lutar pela vida de sua filha trazendo ao mundo mais uma criança. Duas se necessário. A causa era boa. A causa era boa demais.
O juiz da primeira instância negou o pedido. O pai recorreu, e o da segunda instância autorizou a reversão. O estado entrou com um mandato de segurança. O caso chegou ao supremo. Nesse meio tempo outras alternativas para resolver o problema foram tentadas: o governo fez uma grande campanha de cadastro de doadores de medula na esperança de achar alguém compatível com a pequena Denise. Liberou verba para a pesquisa com células troncos. Pediu ajuda a outros países. Nada. tentaram estratégias menos elegantes: reviraram a vida de Pedro em busca de indícios de que ela era um promiscuo irresponsável e inconsequente. Indícios de que ele era um péssimo pai. Um deputado cristão chegou a insinuar que a tormenta que recaiu sob a menina Denise era castigo pelo comportamento pouco religioso do pai. Nada. O caso só ia crescendo e ganhando apoio popular: a mídia adorava o drama de um pai desesperado.
A senadora transmitiu a impressão da conversa que teve com o ministro. Precisavam confirmar, mas provavelmente teriam de utilizar um plano B.
O relógio marca onze horas da manha. A queda de um alfinete poderia ser ouvida no país tamanha a apreensão da populaçao diante da televisão. A sessão do tribunal começa; os discursos são breves e os votos rápidos. O presidente do tribunal foi o último a proferir seu voto: 6 x 4 pela reversão da vasectomia. Havia um clima de festa nas ruas. Na televisão choviam closes do pai lutador aos prantos, colado a imagens da menina doente no hospital. Enquanto deputados e senadores discursavam na bancada do Congresso em favor da decisão dos ministros, a senadora e outros parlamentares se reuniam numa outra sala:
- Será que precisamos mesmo agir? Quer dizer, quantos pedidos de reversão de vasectomia podem realmente se beneficiar dessa jurisprudência?
A pergunta vinha de um jovem deputado do norte do país, herdeiro politico de uma oligarquia regional.
- É uma questão mais simbólica que prática. Por cinco anos os movimentos anti-filho único tentaram se organizar a não conseguiram. Faltava algo que desse unidade a causa. Hoje esse algo surgiu, junto com dois heróis. Precisamos mudar o significado do caso. - rebateu a senadora.
_ Mas nós precisamos MESMO seguir com isso? Parece tão cruel.
Cruel. Cruel e ilegal. E imoral. Ela tinha se perguntado várias vezes se estava se distanciando muito do razoável com aquela ação. Eram tempos difíceis, não havia espaço para remorso.
_ Somos um bilhão e meio de pessoas. precisamos reduzir a população a 1/3 da atual. Será preciso muitas décadas da politica do filho único para que essa meta seja alcançada. É necessário remover os obstáculos.
A decisão do STF levou uma semana para ser publicada e entrar em vigor. Três dia depois de Pedro realizar o procedimento cirurgico uma noticia chegou da Venezuela: tinham encontrado um doador compatível. A mídia não podia se conter de entusiasmo; dezenas de entrevistas foram feitas com o jovem motoboy que possuía o código genético premiado. O transplante de medula foi filmado e transmitido. Recorde de audiência. Os sinais de melhora da Denise eram evidentes. E a cada reportagem uma outra coisa era evidente: a saúde de Pedro não ia bem. Sua aparência era cada vez mais cansada. Até que após uma visita ao médico o impensável foi constatado: Pedro possuía uma rara doença degenerativa. Provavelmente morreria antes de ver seu segundo filho nascer. A população acompanhou com apreensão os últimos meses do pai herói. No dia do enterro, a mãe afirmou que encontraria forças para superar a perda do marido na filha que ele salvou e no filho que ainda viria a nascer. No dia que a menininha Denise veio a falecer por complicações referentes ao transplante o país veio abaixo. Foram incapazes de notar que nesse mesmo dia o presidente do superior tribunal federal foi deposto pelo senado. Também não notaram que o motoboy que fez a doação de medula morreu num suspeito acidente de trabalho semanas depois. Ou ainda que o Brasil assinou um acordo demasiado favorável a Venezuela no tocante a venda de água potável. E ignoraram o médico que postou um relato convincente na internet afirmando que a morte da menina Denise tinha sido uma reação exaustivamente documentada a um implante de células troncos e não a um transplante de medula. O drama humano, a desgraça em série era maior que qualquer suspeita, qualquer conspiração.
A noite, antes de dormir, a senadora repetia baixinho para si: um bilhão e meio, um bilhão e meio, um bilhão e meio...