"Um Passo No Tempo" 5- Possibilidades

Possibilidades

O teletransporte rejeitara a minhoca. Teletransportara a maçã na sua integridade total, e conseguira distinguir a diferença entre o fruto e o verme. Melhor, separara-os, transportando apenas o que lhe fora pedido: a maçã. Charles olhava a sua imagem no monitor, velha de um ano, em que olhava alternadamente para a maçã e para a minhoca.

- Desligar arquivo vídeo. - disse Charles. E o monitor ficou preto.

Aquelas imagens fascinavam-no sempre, por mais vezes que as voltasse a ver. Na sua cabeça, imaginava ver a minhoca sinuosamente dentro da maçã, quase fazendo parte dela. E como a troca os tinha separado perfeitamente. Esse pequeno acidente de há mais de um ano atrás demonstrara as reais potencialidades do que tinha em mãos. Posteriormente, ao dissecar a minhoca, verificara que as porções de maçã que o verme tinha digerido, não tinham sido teletransportados. Tinham permanecido com a minhoca. Era como se uma pessoa tivesse duas fatias de maçã. Uma, come-a, a outra mete-a no bolso. Sendo essa pessoa teletransportada, a fatia que estaria no bolso, não seria transportada e a que comera, continuaria no tubo digestivo da pessoa. Isso concluíra Charles há um ano. E errara.

Virou-se de novo para o monitor.

- Computador, passar o registo visual da experiência numero onze.

Na imagem via-se a ele a entrar no laboratório, vindo de uma incursão á cozinha de Maria. Pelos dois volumes nos bolsos do casaco de lã, via-se o que lá fora surripiar. Duas maçãs, uma em cada bolso de lado do casaco. De seguida, vê-se a ele próprio a tirar uma das maçãs de um dos bolsos do casaco a parti-la em fatias pequenas. Engole uma das fatias quase sem a mastigar e mete outra no bolso do casaco que ficara vazio. Virara-se para o computador e dissera:

- Computador, alvo fixado?

- Afirmativo. – respondera o computador.

- Efectuar troca.

Quase instantaneamente Charles desaparece da imagem, vendo-se agora apenas o lugar vazio onde estivera há décimas de segundo. Ao observar no monitor essa cena, ainda agora, passado um ano, o jovem não evitava sentir um calafrio. Tinha sido a primeira vez que se submetera ele próprio ao teletransporte. E quase o fizera inconscientemente. Não para provar a segurança de efectuar a troca com um humano, mas por causa do dilema provocado por uma...minhoca. O monitor mostrava agora Charles a voltar a entrar pela porta do laboratório. Ele tinha sido teletransportado para o corredor de acesso ao laboratório, conforme tinha instruído o computador para fazer. Mal entrara, levara a mão ao bolso. Acto imediato, a sua expressão era de apreensão. Ao tirar a mão do bolso, segurava nos dedos a pequena fatia de maçã que lá metera antes da troca. Ele olhava confuso para aquele fragmento de fruta. Mas abanou a cabeça, com a óbvia lógica daquilo: se a conclusão anterior estivesse certa, então ele seria transportado nu, pois decerto as suas roupas não faziam intrinsecamente parte do seu organismo. Mas ficava a questão de como a troca separara a maçã da minhoca. Pensando nisso dera dois passos e parara bruscamente, para olhar para o seu pé direito. Acabara de dar um pontapé em alguma coisa. Olha intrigado para uns metros mais à frente, ainda a tempo de ver a imobilizar-se no velho chão de cimento o objecto que acabara de chutar inadvertidamente. Uma maçã. Redonda, verde e inteira. Quase de imediato, Charles levou a mão ao outro bolso do casaco, aonde ainda devia estar a outra maçã que não tinha utilizado. Este estava, é claro, vazio. Ao contrário da famigerada fatia, a maçã inteira não fora teletransportada, apesar de estar no seu bolso.

- Parar reprodução vídeo – e as imagens das suas experiências de um ano atrás cessaram. Aquele episódio mostrara-lhe algo importante. O principio da interacção do teletransporte. Ao partir a maçã, ele redefinira as coordenadas-espaço do fruto. As coordenadas da fatia que comera tinha passado a fazer parte das suas próprias. Mas as que cortara, de alguma forma, passaram também a estar relacionadas com as suas próprias coordenadas. Era como se qualquer objecto que passasse pela mão de um sujeito, desde que este alterasse a integridade desse objecto, redefinia as coordenadas desse mesmo objecto, que de alguma forma ficava como que um rasto da sua acção. Um objecto, orgânico ou não, guardava memória dos agentes que tinham tido influência sobre ele. Guardava memória da interacção com outros objectos. Charles passara o último ano a redefinir a sua fórmula-base da troca, para poder usar esse conceito de interacção. As potencialidades disso, por exemplo no campo da medicina, eram inacreditáveis. Se uma pessoa tivesse câncer, bastava teletransportá-la, e deixar o câncer para trás. Ou vice-versa. Mas nesse último ano, enquanto aperfeiçoava a fórmula e o software para poder usar o conceito da interacção, um plano desmedido foi-se formando na cabeça do jovem cientista. Não uma simples utilização comercial daquilo que descobrira. Rico já ele era, e como poucos o seriam. Começara a planear uma forma grandiosa de aplicar a troca. Só faltavam duas experiências para dar-se como preparado para fazer o que tinha em mente. Tirou a maçã que trouxera da cozinha da Maria do bolso do casaco e disse:

- Computador, iniciar experiência OCI N2.

- Programa Objecto-Cordenadas-Interacção Nível 2 a executar. Obtenção de alvos pré-programado: “objecto A” adquirido. – respondeu o computador. Charles sorriu.

- Ou seja, eu próprio. - disse - Agora, vamos tratar da minha companhia de viagem. – e olhou para a maçã.

Fez uma expressão como se tivesse esquecido de algo e olhou em redor como se procurasse alguma coisa. Aproximou-se da mesa aonde estavam amontoados os objectos que tinham sido objectos das experiências anteriores. Remexeu neles até ter encontrado o que queria. Uma pequena faca de cozinha. Com ela, cortou duas fatias da maçã. A primeira fatia meteu-a no bolso, a segunda meteu-a na boca e começou a mastigá-la. Parou de mastigar mas não engoliu. Mantendo a boca cheia, procurou nos bolsos das calças e tirou de lá um lenço branco. Abriu-o nas suas mão e deitou nele a massa de maçã misturada com saliva que tinha na boca. Olhou para o lenço e o seu recheio e pensou na nojice que aquilo estava a ser. Mas era em nome da ciência. Abanou a cabeça e pensou que se a Maria visse aquilo, não hesitaria em dizer-lhe em que detergente mergulharia a sua ciência. Enrolou o lenço e o seu conteúdo e meteu-o no bolso direito do casaco. Actualmente, tinha com ele objectos de três níveis diferentes de interacção. A roupa, que eram de nível um, que pela sua permanência de contacto, a fórmula automaticamente a admitia como parte integrante do objecto A (ou seja, ele). A fatia de maçã que fora colocada inteira no bolso esquerdo do casaco, que pertencia ao nível dois, que ao ser cortada, e continuar em contacto com o objecto um seria admitida também como parte integrante dele. E a fatia mastigada que estava no lenço, que além de cortada e mantida em contacto com ele, ainda tinha sido quase consumida e tinha agora na sua composição elementos seus (os elementos da sua própria saliva, etc.), que era nível três, o nível mais intrínseco ás coordenadas do objecto A. Olhou para a mesa onde estava o resto da maçã cortada. Ao não manter o contacto com ela, tinha sido apartada do que era considerado ser o objecto A. Se pegasse agora nela, passaria a ter o nível dois. Estava na hora. Olhou para o monitor, que mostrava a imagem do objecto da experiência, ou seja, a dele próprio, e disse:

- Repetir as condições da experiência.

- Componentes das coordenadas do “objecto A” que se situem no nível dois e três serão apartadas do alvo.

- Exacto. Efectuar troca.

No momento seguinte, Charles desapareceu da enorme cave. Momentos depois, a porta do laboratório abriu e ele voltou a lá entrar. Nunca se tinha preocupado a mudar o destino, e nas experiências com a sua pessoa, continuava a ser teletransportado para o corredor. Mal entrou, o jovem físico inspirou fundo e olhou para as mãos, antes de as meter nos bolsos do casaco. Enfiou-as nos bolsos e esboçou um sorriso. Por uns segundos, remexeu os bolsos, certificando-se que estavam vazios. Olhou para o sítio de onde fora teletransportado e o que viu no chão produziu-lhe um sorriso aberto. Lá estava, no chão, tanto a fatia cortada como o lenço contendo a fatia mastigada. Tinha dado certo. Apanhou a fatia inteira e o lenço do chão e pô-los em cima da mesa, junto dos outros objectos. Observou-os, pensando como o lenço tinha também sido deixado para trás apesar de à partida , por ser parte da sua roupa, ser nível um. Mas o facto de o lenço estar em forte contacto (infiltrado com partículas de maçã, devido à saliva. Por outras palavras, sujo.) fê-lo pertencer ao nível três. Ou a um dos seus muitos sub-níveis. Sim, pois entre os três principais níveis de interacção, havia milhares de subclassificações, que ao fim ao cabo, identificavam todos os tipos de relações existentes entre a matéria. E era jogando com esse níveis que ele contava concretizar o seu plano. A penúltima experiência estava concluída com sucesso. Ouviu um sinal sonoro e olhou para o relógio de pulso. Estava na hora da conclusão da última experiência. Sentou-se na cadeira e esperou. Voltou a olhar para o relógio, observando os dígitos dos segundos a passarem. Olhou para o tabuleiro com terra rasa que estava no chão, ao lado da mesa redonda. De repente, sobre esse tabuleiro, apareceu uma gaiola com um rato lá dentro. O rato, de pelo branco, ergueu a cabeça e farejou o ar, como se tivesse notado diferença de cheiros no ar à sua volta, mas parecia continuar calmo. A gaiola encaixava perfeitamente no tabuleiro. O que não admirava, pois era a base própria daquela gaiola. Os olhos do jovem francês brilharam e levantou-se da cadeira, aproximando-se da gaiola.

- Ora cá está o nosso viajante do tempo! – disse, sentindo o coração aos pulos.

Aquela gaiola e o seu ocupante tinham feito uma viagem no tempo de um ano. Charles tinha efectuado a sua troca há precisamente um ano e ela reaparecera agora. Nesta troca, em vez de alterar as coordenadas-espaço, tinha alterado as do tempo. E resultara. Era incrível, mas na prática, a gaiola e o seu ocupante tinham deixado de existir durante um ano, para voltarem agora e passarem a ser mais do que uma recordação de Charles. Era isso a viagem no tempo, deixar de existir agora, para voltar a existir depois. Mas havia duas limitações. A primeira, era que nas coordenadas espaço/tempo, apenas se podia alterar uma e cada vez. Ou seja, ou se fazia a troca no espaço, ou se fazia o salto no tempo, nunca as duas ao mesmo tempo. Charles não conseguira saber se isso era uma questão decorrente da sua fórmula, mas calculou que seria por causa de que só se podia “aldrabar” uma das “bússolas negras” de cada vez, pelo simples motivo do endereço da aldrabice: ou se enganava uma ou a outra. Como eram em direcções opostas, era teoricamente impossível a simultaneidade espaço/tempo na troca. A segunda limitação dizia apenas respeito à troca temporal: só podiam ser feitos saltos que comportassem a distancia temporal de precisamente um ano ou múltiplos deste. A explicação era simples: a troca não jogava com simples coordenadas geográficas a nível terrestre, mas com coordenadas espaciais a um nível muito mais amplo. Ou seja, a terra está em eterno movimento na sua órbita à volta do sol, e a cada segundo avança velozmente nessa órbita. Se aceitarmos que existem posições concretas no espaço sideral, se neste segundo a Terra ocupa uma posição, no segundo seguinte já ocupa uma posição mais à frente nessa sua órbita. Se fizesse um salto temporal de um dia, por exemplo, o objecto reapareceria então um dia depois, mas em pleno vácuo sideral, na posição em que a Terra tinha ocupado vinte e quatro horas antes na sua órbita, no preciso momento em que se tinha executado a troca. E por causa da primeira limitação, em que não se podia alterar as duas coordenadas espaço/tempo ao mesmo tempo, era inviável alterar também a do espaço para acompanhar o movimento orbital do planeta. A própria fórmula simplesmente não aceitava alterações na coordenada tempo sem ser em múltiplos de um ano. Era um tipo de incoerência que por defeito não aceitava. Outra incoerência não aceite era, na deslocação espacial, receber coordenadas de um espaço já ocupado. O que se traduzia em não haver o perigo de se teletransportar um objecto para um espaço já ocupado por outro objecto. Esse era um tipo de batotice que a respectiva “bússola negra” não aceitava. Mas no salto temporal existia esse risco. Se algo estivesse no local que agora era ocupado pela gaiola, quando esta tivesse voltado do seu salto temporal esse objecto seria instantaneamente fundido com a própria estrutura molecular da gaiola. E até do rato, provocando a imediata morte deste. Mas isso tudo já ele sabia. Ajoelhou-se em frente à gaiola. Aproximou a cara, como que para falar com o rato.

- Sabes, Hércules... – era esse o nome que tinha dado àquele ratinho branco– É estranho pensar que não te via há um ano, quando para ti foi um simples piscar de olhos. – Fez um gesto com o dedo indicador, como que indicasse algo ao rato – Já reparaste na terra da tua gaiola? Há um ano, quando tu e o teu pequeno condomínio desapareceram, essa terra estava húmida da tua urina, porca das tuas fezes e restos de comida. Já viste como ela está agora? Seca. E totalmente limpa, pois o lixo biológico secou, passando ele próprio a fazer parte da terra. Sem a tua presença, a terra teve a oportunidade de descansar, percebes? De se regenerar! – olhou para o rato, que completamente indiferente às suas palavras, acabara de defecar num dos cantos da gaiola. Charles abanou a cabeça – Estou a ver que te estás a aplicar em redecorar a casa.

Levantou-se e olhou para um poster que estava colado no lado de um dos bastidores. Era a ampliação de uma fotografia da Terra, daquelas tirada por um astronauta, aquando de uma alunagem de uma missão Apolo. A terra parecia um disco de um branco e azul puros, a contrastar com o negro do espaço que a envolvia. Era uma das suas fotografias preferidas, desde criança. Olhou atentamente a imagem e observou:

- Agora imaginemos que aplicamos isso a uma gaiola maior!

Inspirou fundo, como estivesse a ganhar coragem e sentou-se na cadeira. Olhou para o monitor e falou pausadamente, como se fosse um momento solene:

- Computador, iniciar a primeira fase do programa “TT30”

O computador fez uma pausa, demorando nitidamente mais que o normal a responder, o que não surpreendeu Charles, considerando tudo o que aquele programa englobava. Quando o computador o fez, parecia ao jovem que os segundos tinham sido horas.

- Programa Troca Total 30 ciclos a executar. – respondeu a máquina – Parametrização em curso. Objecto predefinido por nome-código: primal. Definição da especificação pré-programada dos níveis relacionais ao objecto (pausa) Completa. Variável aplicada: coordenada-tempo. Requerida definição geográfica aplicada ao objecto primal: qual o nível de circunscrição do alvo a definir?

- Nível planetário. – respondeu Charles.

- Inserção de todos os parâmetros relativos ao objecto primal a executar. – novamente a voz monocórdica do computador fez uma pausa - Execução de cálculo estimado em setenta e cinco minutos. Inserção do cálculo resultante na fórmula básica da troca, estimada em quarenta e sete minutos. Operação pronta a executar em cento e vinte e dois minutos.

- Isso, meu menino. – disse, num sorriso – Fica fazendo os cálculos para a contagem final. Faltam cento e vinte e dois minutos para se fazer história.

Charles ficou a olhar para o monitor, que agora apenas mostrava sobre fundo negro os números do tempo que faltava para acabar o cálculo que ele lhe pedira. Agora, tão perto do que tinha planeado, o jovem herdeiro pensava se realmente estava a proceder bem. Abanou a cabeça, estranhando esse pensamento, ao fim de tanto tempo, de tanto esforço. Era um pensamento cândido demais, para quem fora já tão longe. É claro, ser o homem que inventara o teletransporte seria certamente uma glória que não estava ao alcance de qualquer um. Mas isso não bastava. No íntimo, o jovem sabia que o teletransporte deixar de ser ficção e passar a ser realidade era uma questão de tempo. E que mais década, menos década, alguém acabaria por descobrir uma outra forma qualquer de teletransportar matéria. Mas não daquela brilhante maneira, fintando as próprias regras do universo. E sem limites, como iria provar.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela voz monocórdica do computador:

- O programa Domus informa duas presenças no corredor de acesso a esta divisão. – Charles facilmente se esquecia que o Domus tinha a possibilidade de comunicar certas informações domésticas ao computador do laboratório. Apesar de fazer questão da sua solidão naquele sítio, era o mínimo contacto que tinha que manter, visto que deixara os telefones do lado de fora. - Identificadas como...

- Sim eu sei quem... – interrompeu Charles, aproximando-se da porta para receber a visita das únicas duas outras pessoas que sabiam da existência daquele sítio. - Abre-lhes a porta!

A porta abriu-se e deixou entrar as duas pessoas. Uma era uma rapariga, vestida com um fato escuro tipicamente de executiva que dando-lhe o pretendido ar profissional, não deixava também de lhe acentuar as belas curvas do seu corpo. Mas caso as curvas não se notassem, a beleza do seu rosto não desmereceria a atenção de ninguém. Tinha o cabelo castanho claro puxado para trás. Sinal que não estava num dia de muito bom humor, pensou Charles. A outra figura, e era esse o termo certo, era Norman Greenwich, o administrador executivo das indústrias Mahil-Dupont. Norman era figura cinzenta, fosse qual fosse a cor do fato que usasse. O de hoje, por acaso, era cinzento. Na casa dos quarenta, magro e de altura que chegava ao ombro da jovem ao seu lado, não dispensava o uso de gel no pouco cabelo que tinha por cima das orelha até à nuca. Mas quem analisasse aquele homem pela sua imagem cometeria um grave erro, pois Charles sabia que aquela frágil figura continha um dos mais implacáveis executivos que alguma vez tinha usado uma gravata. E o pai de Charles sabia disso, quando o contratara, duas décadas atrás.

- Renata e Norman. – cumprimentou-os Charles – A que devo esta surpresa? É muito raro vê-los aqui em baixo.

- E seria ainda mais raro, se não fosse aqui o Norman ter insistido. – respondeu Renata, com a desenvoltura que lhe era habitual – Sabes o que penso de passares a tua vida nesta catacumba.

- Tens andado a falar muito com a Maria, não tens? – ironizou o jovem – Mas olha que ela já há um tempo que não chama ao laboratório de catacumba. Ultimamente tem usado o termo “buraco”.

- Sábia senhora, sempre o disse! – respondeu-lhe ela, fixando-o com aqueles olhos da cor do mar.

Greenwich adiantou-se e disse, na sua voz pausada e quase sumida, que ia completamente de acordo com a sua figura:

- O assunto é sério, Charles. – disse o executivo, soturno – Há cerca de um mês, instalações do grupo voltaram a ser alvo de ataque terrorista. Não houve vítimas, mas os estragos são consideráveis.

- Ataque terrorista? – perguntou o jovem com alguma surpresa, pois não adivinhava que a vida de um empresário tivesse de lidar com esse tipo de problemas. – Mas um cuidado prioritário que o grupo tem desde o tempo do meu avô é mantermo-nos à margem de todo e qualquer protagonismo político. E é público que perdemos alguns contratos por causa disso.

- Sim, a nossa independência ideológica faz parte do nosso marketing. – disse Renata - O público, o consumidor final, identifica-se muito com esse tipo de postura, o que favorece obviamente a nossa imagem no mercado. – com estas palavras, mais uma vez pareceu a Charles que Renata falava com as palavras do seu desaparecido irmão.

- Deixa-me corrigir. – acrescentou Greenwich – Foi um ataque ecoterrorista. Ainda não é oficial, mas pensa-se que tenha sido outra vez o tal grupo “Chacal Verde”. Os meus contactos na polícia assim o confirmam.

- O Chacal Verde? Ora aí está uma organização independente e eficaz. – disse Charles em jeito de brincadeira.

Renata olhou-o de forma impaciente.

- Isto não é altura para brincares – disse ela. Charles pensou para si mesmo “Eu sabia. Cabelo corrido para trás, mau humor. Matemático”. Ela continuou – Nos quatro últimos meses este é o terceiro atentado que atinge o grupo Mark-West, que é o nosso principal conglomerado industrial na Europa.

- O problema, caro Charles, é que existe uma certa empatia entre o público e este Chacal Verde. – disse Greenwich – e por mais eficiente que a Renata seja, a nossa imagem sofre sempre um certo desgaste com estas coisas. E quem diz imagem, diz cotações na bolsa, etc., percebes? – o que Charles percebera também ali fora uma certa intenção paternalista que decididamente não gostava de ouvir naquele tipo.

- A minha eficiência é problema meu, caro administrador! – disse Renata entre os dentes. Ela realmente não estava nos seus dias, pois era raro nela puxar pelos galardões de presidente do concelho.

- Oiçam. E porque é que vieram aqui? – perguntou Charles, sabendo que Renata sabia que a pergunta dizia mais respeito ao outro - O que estão a dizer-me podiam tê-lo dito pelo vídeo. Norman, tanto você como a Renata têm a liberdade de falar por mim, em alguma reunião extraordinária que haja do concelho.

Renata olhou Greenwich, como se ele tivesse a culpa, e este falou.

- Este problema não é só a questão dos danos causados ou da imagem. Mas como a Renata disse, é a terceira vez em quatro meses, e este grupo terrorista continua impune. É uma situação insustentável. As autoridades nem sequer têm a certeza que seja uma questão de terrorismo ecológico. Apenas o deduziram pelos alvos, mas não estão certos dos reais motivos deste grupo.

- Eu estou a par disso. – disse o jovem – Mas criminologia não é a minha área, Norman. Não estou a ver no que posso eu ajudar.

- Não és tu, mas alguém que é dessa área. – respondeu o outro – Ele pediu uma entrevista pessoal contigo. Normalmente, recusaríamos, sabendo do teu amor pela privacidade. - Greenwich fez uma pausa, como não sabendo bem como dizer o resto. Olhou para Renata e esta continuou.

- Trouxemo-lo connosco. – disse ela – está no hall da mansão.

- Trouxeram? – isso surpreendeu Charles. Eles realmente deviam andar às aranhas com esta história dos atentados, para o virem chatear desta maneira. O jovem aproximou-se de um dos monitores e falou um pouco mais alto. – Computador, ligação ao Domus e mostra o vídeo de vigilância do hall.

O monitor à sua frente mostrou a imagem do amplo hall da mansão acima deles. Em modo automático, a câmara focara o único sujeito que lá estava. Um sujeito alto e entroncado, que em vez de estar sentado numa das cadeiras forradas de veludo púrpura de que o hall dispunha, estava de pé a olhar para os milionários quadros pendurados que intercalavam com alguns espelhos, nas paredes brancas. Quando os olhos dele passaram pela câmara dissimulada num dos espelhos, Charles podia jurar que o homem sabia que estava a ser filmado. A focagem da câmara recuara agora, pois mais alguém entrara agora no hall. Era a Maria, que trazia uma pequena bandeja com alguns dos seus bolinhos. O homem recusou educadamente, mas Maria continuou a falar e a insistir. Charles sorriu, pois Maria não iria desistir tão facilmente

- Chama-se Morgan Wills. É da Interpol. – disse Greenwich – Os meus contactos na Interpol disseram-me que está no caso do Chacal Verde praticamente desde o início. Sabe-se que teve algumas desavenças com as chefias, mas alguns acreditam que se alguém conseguir algo sobre o Chacal, será ele.

- Desavenças?

- Creio que ele quase apanhou alguém do Chacal, alguns anos atrás, quando ainda pertencia à Scotland Yard. Wills não poupou o seu desagrado e a direcção não gostou. – Charles olhou significativamente para Greenwich – Sim, foi o único que esteve perto. Até agora mais ninguém o conseguiu. Depois disso, ingressou na Interpol. As suas relações com as chefias não têm sido as melhores, mas ninguém discute o seu valor.

- Norman e eu estamos de acordo sobre o prejudicial que é esta história do ecoterrorismo. E ele acha que vale a pena perderes um pouco de tempo com Wills. – disse Renata. Ela encolheu os ombros – E tu não tens nada a perder, a não ser perder um pouco do cheiro a bafio que ganhaste aqui em baixo.

- Aqui não há cheiro. – respondeu o jovem cientista – Instalei uma unidade de ventilação que condiciona a... – Charles parara de falar, ao olhar para o sorriso dela. Ela conseguia sempre provocá-lo. Ele abanou a cabeça. – É como dizes, não tenho nada a perder. Vamos lá falar com esse tal Morgan Wills.

- É aconselhável conversarmos com ele em Inglês. O francês dele não é famoso. – observou Greenwich.

Caminharam para a porta mas antes de saírem, Renata reparou na gaiola com o rato

- Espera, aquele não é o Hércules? – perguntou ela

- Hércules? – disse Greenwich, olhando para a gaiola

- É o rato. Já não o via há algum tempo. Pensei que tivesse morrido.

Charles sorriu . “Não morrera, mas deixara de existir”, pensou.

- Não. – respondeu – Apenas esteve...a viajar.

Renata, Charles e Greenwich entraram no hall a tempo de ver Morgan a aceitar um dos bolinhos de Maria. O agente olhou para eles um pouco incomodado, como se tivesse sido apanhado com a boca na botija. Engoliu o que tinha na boca sem mastigar e limpou rapidamente as mãos. Agradeceu a Maria a simpatia e esta aconselhou-o a passar a mastigar bem a comida. Minutos depois, quando a idosa senhora se retirou, cada um deles estava a mastigar um dos seus bolinhos. Por mais que não gostasse da forma que Maria mimava Charles , Renata reconhecia o quanto ela era irresistível.

Feitas as apresentações, Morgan Wills fez algumas perguntas a Charles. A sua voz fria e pausada incomodaram um pouco Renata. E, no breve relance em que conseguiu olhar nos olhos do agente, não deixou de sentir um calafrio. As perguntas pareciam ser as rotineiras para este tipo de coisa. Se alguma vez Charles tinha recebido alguma ameaça ou revindicação de atentados, se a família tinha inimigos conhecidos, etc. Charles respondia com algum enfastio, visivelmente com pressa de voltar ao seu covil. A algumas das respostas de Charles, Greenwich tentava acrescentar uma opinião sua. Charles olhou de soslaio para ela, algo surpreso por Renata não interpor algo ao que Greenwich dizia, como lhe era habitual. Mas ela estava mais interessada em seguir os olhos de Wills. Entre as perguntas, o policial dissimuladamente perscrutava com o olhar todos os cantos da sala. Mas o agente notou a atenção de Renata e manteve os olhos em Charles o resto das perguntas. Quando parecia que Wills tinha terminado, Renata perguntou, da maneira mais inocente que lhe era possível:

- Sr. Wills, não toma nenhum apontamento das respostas de Charles?

Wills olhou para ela, e a jovem sentiu que o dono daqueles frios olhos verdes jamais seria enganado por uma qualquer suposta inocência. Mas Morgan sorriu e respondeu.

- Não é necessário. – respondeu ele – Basicamente, as respostas do Sr. Mahil-Dupont são as que eu já esperava.

- Então o que é que contava ganhar, vindo aqui? – retorquiu ela, para uma certa surpresa de Morgan. Não era muito comum fazerem aquela pergunta a um agente da Interpol. Greenwich ia iniciar a falar, talvez para dizer isso mesmo, fazendo um reparo a Renata, mas esta adiantou-se-lhe:

- Quer dizer, poderemos ajudá-lo em algo mais? As questões da segurança dos bens do grupo são obviamente uma prioridade para nós. – e olhou para Greenwich, a que este teve de acenar afirmativamente com a cabeça, concordando. Charles não evitou um sorriso no canto da boca, observando a jovem a ganhar pontos àqueles dois. Mas aquele Wills parecia um osso duro de roer. E era suposto ele estar do lado deles. Porque é que Renata começara aquilo? Algo havia despertado a desconfiança da sua amiga. A jovem continuou – Acha que o Chacal Verde poderá tentar a sua sorte aqui, na mansão da família?

- Não posso dizer o que o Chacal tentará ou não. – respondeu Wills. E olhou para Charles de uma maneira que fez o jovem herdeiro sentir-se muito pouco confortável – Mas temos de tentar apercebermo-nos de todos os possíveis alvos.

- Alvos? – disse Charles, tentando disfarçar que acabara de engolir em seco.

- Sabe, agente Wills. – disse Renata - Existem poucos lugares no mundo tão seguros como este local. Vigiado electronicamente deste o cata-vento até ao fundilho enterrado do pára-raios.

- Acredite que existem poucos terroristas como o Chacal Verde – respondeu Wills

- Você fala como se fosse um terrorista, não um grupo. – comentou Greenwich

- É uma maneira de falar. – respondeu o escocês, dando a desculpa do costume – Depois de investigar um caso durante algum tempo, creio que temos tendência para personificá-lo de alguma maneira.

- Acredito. De qualquer forma, este é realmente um edifício de alta segurança. – disse Greenwich – E todos os dispositivos de segurança são geridos por um computador central de última geração.

- O Domus. – completou Charles, com uma certa ironia que não escapou a Wills.

- Exacto. – continuou Greenwich - Concebido e programado pelo melhor grupo de engenheiros que eu próprio reuni no departamento da Mahil-Dupont Cibernética.

Renata pensou para os seus próprios botões que acabara de ser dada a explicação para Charles achar o Domus tão irritante: tinha algo de Greenwich no seu modo tão teimosamente servil. E pela expressão do amigo, ele devia estar precisamente a pensar isso.

- Parecem estar muito confiantes nesse sistema. – disse Wills – As autoridades locais estão em sintonia com os procedimentos desse vosso Domus?

- Sendo um protótipo, o esquema de funcionamento do Domus é um segredo guardado pelas indústrias Mahil-Dupont, por enquanto. – respondeu Greenwich. – Ele isola e identifica qualquer som ou movimento, mesmo fora dos muros do jardim da mansão. Mas ele está preparado para alertar as autoridades, e em conformidade com a ocorrência, poderá determinar certas acções, tais como estancar automaticamente certas divisões da mansão e coisas desse tipo. Como sabe, desde há algum tempo, é proibido na Europa armar sistemas automáticos de segurança.

- Sim, desde aquele acidente no aeroporto de Antuérpia, dois anos atrás. – disse Wills

- Sim. Saliento que não era um sistema Mahil-Dupont – acrescentou Greenwich. Morgan começava a desconfiar que este Norman Greenwich era um tipo a dar para o irritante.

- Bom, creio que por aqui não possa ser mais útil. – disse Wills, olhando de seguida para Charles – Se o sistema é como dizem, não parece que problemas de segurança sejam a sua maior preocupação.

- Não são. – respondeu prontamente Charles.

- Eu também estou de saída – disse Greenwich – Eu acompanho o agente ao portão. Charles, eu contacto se houver alguma novidade. Renata, encontro-a na reunião de sexta, creio?

- Certamente, Norman. – respondeu a jovem, dirigindo-se de seguida a Wills – Acha que o Chacal Verde está à altura do Domus?

- É um sistema impressionante. – respondeu Wills, e esboçou um sorriso, sabendo ao que ela se estava a referir, pois ela tinha reparado na sua observação ao interior da casa. Acrescentou – E discreto também. Se não o tivessem dito, não calculava que tal sistema estava instalado.

"Afinal, também sorri", pensou Renata. E continuou

- Então acha que o Charles é um alvo para o Chacal?

- Não foi o que eu disse. – respondeu Wills, voltando a ter o rosto insondável – Senhor Mahil-Dupont, espero não ter o ter incomodado e agradeço a sua disponibilidade.

Wills e Greenwich saíram pela porta que dava directamente para o jardim frontal da mansão, e encaminharam-se pela bela vereda ladeada de estátuas de deuses e heróis gregos que riscava o relvado de um verde quase lustroso até ao único portão de saída existente.

Renata via-os afastarem-se, através dos vidros de cristal da porta exterior do Hall. Charles reparou no interesse da amiga.

- Não creio que o Norman seja o objecto dessa curiosidade. – disse ele - E por exclusão de partes...o que é que te preocupa?

- Esse Wills. Eu não acho que ele tenha vindo cá apenas para falar contigo. – respondeu ela, e abriu um pouco a porta exterior, para facilitar a observação. – Repara, mesmo enquanto o Norman fala com ele, olha para todos os cantos do jardim. Quando chegar ao portão, aposto que terá mapeado mentalmente os pontos aonde acha que estará os dispositivos de segurança.

- Renata, internacional ou não, ele é um polícia. E estes tipos tendem a ser um pouco paranóicos com as questões de segurança. – disse Charles, enquanto Renata fechava a porta e continuava a olhar lá para fora através do vidro, visivelmente a remoer algo. E há muito que Charles aprendera a confiar nos instintos de Renata – Achas mesmo que ele espera que o Chacal Verde ataque a mansão?

- Se me mo perguntares, acho que ele tem a certeza que tu és um alvo do Chacal – os olhos de Renata não deixavam espaço para uma possível brincadeira – E ele parece ter vindo aqui para estudar no campo as dificuldades com que os terroristas depararão, caso esteja certo.

- Se ele acredita nisso, parece razoável que assim o faça. – disse Charles. Depois iniciou um sorriso que parecia o de uma criança travessa – Renata, gostaria de te mostrar uma coisa.

- Charles. Se é outra vez um desses brinquedos que o Norman te traz da Cibernética só para te agradar...

- Não, não é nada disso – disse Charles, que decidiu picar a amiga – Mas tens que reconhecer que o homem se esforça para agradar. De facto, não sei porque o faz, visto que a sua competência é mais que satisfatória.

- Deve ser mais forte do que ele. – rosnou ela.

- Sabes, ás vezes penso que o Norman nunca se habituou a trabalhar com tipos mais novos do que ele.

- A trabalhar “com”, ou a trabalhar “para”? De qualquer forma, talvez tenhas razão, pois jovem deve ter sido uma coisa que aquele tipo nunca foi. – Renata suspirou, como que indicando ao amigo que estava farta do tema – Mas, e o querias mostrar-me?

- Anda, vem comigo ao laboratório. – disse Charles. Para ele, estava na hora de revelar o seu segredo a Renata.

- Ao laboratório? Com os milhares de metros quadrados que este casarão tem, temos que ir para as catacumbas? – Renata simplesmente não gostava de estar fechada. Não que sofresse de claustrofobia, mas estar alguns pés abaixo de terra nunca a entusiasmara. Ela era do tipo que não se importava de ir para a praia em dia de chuva, só para não estar fechada em casa. Charles sabia disso e não insistiu.

- Bem, posso-te dizer o que é. – disse o jovem – É sobre aquilo que tenho estado a trabalhar nos últimos anos. Estou prestes a acabar.

Os olhos de Renata abriram-se de surpresa.

- Espera. – disse Renata, olhando fixamente nos olhos do amigo - Esse teu projecto que nem à Maria confessas, está para terminar? – Charles assentiu com a cabeça – Que em três anos nem a mim me disseste, estafermo! – ele encolheu os ombros. Ele queria isolamento, e ela respeitou isso, mas a curiosidade de Renata nunca parara de o interrogar, sem resultados, claro. Até agora. – E vais-me dizer agora. Isto tem de ser especial, meu lindo. Vamos para o terraço do último piso, aquele onde está aquele conjunto de mesa de jardim todo maricas.

- Estilo romântico parisiense, Século XIX.

- Isso. Pedimos à Maria para nos levar lá o almoço e contas-me lá as coisas. – ela puxou-lhe pelo braço, quase o arrastando pela porta

- Mas era melhor eu demonstrar, Renata, acredita.

- Primeiro, contas-me. – insistiu ela – Depois, se valer a pena, vamos então ao teu laboratório de Drácula mostrar lá o que for.

E os dois desapareceram pela porta que dava para um dos elevadores da mansão, enquanto se ouvia a voz de Charles a protestar sobre poder chover e ser cedo para almoçar.

Até há poucos meses atrás, a avenida aonde se situava a mansão dos Mahil-Dupont era um dos locais mais sossegados que ainda se podia encontrar, tendo em conta a relativa proximidade da capital francesa. Nos dois quilómetros daquela avenida, assim designada por um capricho de um dos moradores locais, que pagara o necessário à câmara municipal para que assim fosse, o trabalho para o carteiro local podia-se contar pelos dedos de uma mão, resumindo-se a algumas enormes mansões e aos seus desmesurados jardins circundantes. Felizmente para Pierre, o velho carteiro e a sua amada bicicleta de ferro, todas estas residências tinham a caixa do correio junto aos portões de entrada e a sua tarefa por ali quase se resumia a um aprazível passeio por um local calmo e bonito. Mas isso mudara pouco depois do último natal. Os terrenos em frente à propriedade de Charles, do outro lado da avenida tinham sido comprados por uma multinacional americana de fastfood e o estabelecimento fora construído e abrira em menos de dois meses. Uma estrutura decorada com plástico pintado de incarnado e amarelo berrante identificava uma companhia que quase não precisava de ir ao encontro dos seus potenciais clientes, limitando-se a instalar-se num sítio e os clientes, quais esfaimados lobos consumidores, apareciam, como alcateias. Os pais faziam o desvio necessário da auto-estrada principal para satisfazerem a curiosidade dos seus adorados e sobrenutridos filhos sobre qual seria o brinquedo-promoção do hambúrguer da semana. Na comodidade que era oferecida aos clientes, estava o inevitável parque de estacionamento, que tão bem ficava numa região que há pouco mais de cem anos era um dos mais belos locais de França.

Num dos lugares desse estacionamento, numa das filas que fazia fronteira com a estrada, estava uma velha carrinha azul, de caixa fechada. Se um dos transeuntes ocasionais reparasse bem no pequeno e discreto respiradouro que a carrinha tinha no topo, verificava que havia nele, quase encoberto, uma pequena peça, parecida com um minúsculo tubo de plástico, que de vez em quando se mexia. E mexia consoante a vontade de Lucien Grubber, que no interior da carrinha mantinha uma vigília ao seu próximo alvo: a mansão dos Mahil-Dupont. A câmara de vídeo, que a parte visível fora da carrinha era o tal tubo de plástico, estava agora focada no portão exterior da mansão. No computador portátil que Lucien mantinha sobre os joelhos, ele revia os dados sobre quem tinha observado entrar para dentro da mansão, cerca de uma hora atrás. Tinham sido três pessoas, das quais duas ele identificara. O portátil tinha uma base de dados sobre a família e interesses dos Mahil-Dupont, que a pulga lhe tinha fornecido. Um dos que entrara era Norman Greenwich, Administrador executivo do grupo económico. Trabalhava para a família há quase vinte anos. Outra era Renata Myles, que quase casara com Jaques Mahil-Dupont, não fosse este ter morrido com o pai num acidente de automóvel. Mesmo assim, ela era agora a presidente do concelho da administração do grupo, e dizia-se à boca cheia que a jovem era a figura forte no grupo Mahil-Dupont. A terceira pessoa, um homem alto e entroncado, não fazia parte da base de dados. Devia ser um visitante ocasional. O que era raro, naquela mansão. Mas sendo uma visita ocasional, não interessava a Lucien, fosse quem fosse. Mas os outros dois, talvez fosse por aí que ele conseguisse a entrada daquele sítio. O jovem alemão olhou para a imagem do portão no monitor e sorriu. Tinha conseguido entrar nos mais difíceis sistemas de segurança em instalações industriais e até em bancos, e no entanto, aquela residência começava a parecer-lhe o seu maior desafio. E por infeliz coincidência, era exactamente o seu mais desejado alvo. A pulga tinha-o posto de sobreaviso que Charles Mahil-Dupont tinha o hábito de testar ele mesmo alguns sistemas criados pela sua unidade de produção electrónica. E isso fazia daquele alvo um objectivo de alto risco, pois era impossível saber o que havia lá dentro. Nesta altura, avançar seria a mesma coisa que entrar numa esquadra e pedir para ser preso. Segundo a pulga, era no coração daquela mansão que se situaria uma base de dados isolada do resto do mundo, contendo toda a investigação e projectos futuros de um dos mais poderosos grupos industriais do mundo. Mas nos últimos dias, algumas dúvidas tinham assaltado o espírito de Lucien. A história inicial da pulga fizera sentido: o herdeiro da família manteria todos os segredos do grupo à sua beira, mantendo assim um controle necessário. Mas pelo que vinha observando, e lendo, tanto nos jornais económicos como nas colunas de mexericos sociais, Lucien começava a não acreditar que o herdeiro dos Mahil-Dupont se preocupasse muito com a gestão das empresas. Havia quem dissesse que ele nem sequer tivesse ainda recuperado da morte dos parentes. Pela informação do pai da pulga, a tal base de dados era gigantesca, é certo, mas pelo seu isolamento não recebera mais nenhuma actualização, pelo menos, no último ano. Isso seria impossível para alguém que teria que se manter actualizado dos avanços tecnológicos das suas empresas. Era certo que a mansão recebia equipamento tecnológico de ponta. Mas segundo as guias de entrega de material que a pulga tinha conseguido ver quando pirateara o sistema central informático do Grupo Mahil-Dupont, isso limitara-se à instalação de equipamento de segurança e algum material áudio e vídeo. De facto, pelo que Lucien vira nesses documentos pirateados por Jane, a mansão parecia ter um avançado sistema de gestão doméstica, designado Domus. Mas a tal base de dados, que segundo o pai de Jane, talvez se situasse numa misteriosa cave, estava à margem de tudo isso. Segundo ele, seria como um mundo dentro de outro mundo. O próprio Lucien, disfarçado de fiscal de Bruxelas (o seu mau francês tinha que ter uma explicação) falara com um dos técnicos que fizera parte da equipe que no passado instalara algum equipamento na mansão. Esse técnico, um marroquino que falava um francês tão mal como o dele, falara de um corredor no nível do subsolo, que ia dar a uma porta que para além dela, segundo ouvira, nada fora instalado. Isso corroborava com a hipótese dada pelo pai de Jane. Tinha confirmado com Jane a veracidade do isolamento da base de dados, e ela assegurou que pelo menos isso era incontestável. Não havia ligação ao exterior por cabos óptico à mansão. E a pulga, depois de ter penetrado no LoveBrother, o programa de controlo de informação da CIA, assegurou que através de comunicação telefónica ou de corrente eléctrica também não houvera passagem de dados. E a transmissão de dados por rádio ou por laser estava fora de questão, pela pouca segurança que ofereciam. Portanto, o isolamento dessa tal base de dados estava confirmado. Mas Lucien tinha cada vez mais dúvidas sobre para que é que ela realmente existia. Um suave zunido de alarme fez-se ouvir dentro da carrinha, interrompendo os pensamentos do jovem. Num dos monitores, o que registava a leitura do radar térmico, mostrava a silhuetas térmicas de duas pessoas que se encaminhavam da mansão para o portão exterior. Dera um trabalhão montar de noite uma sofisticada antena sua entre as letras do gigantesco logótipo do fastfood ali do lado, mas compensara o trabalho. Pelo tamanho das silhuetas, eram dois homens. A rapariga devia ter ficado lá dentro. O portão abriu-se e os dois saíram. Era o tal Greenwich e o sujeito que não conseguira identificar. Andaram cerca de duzentos metros enquanto falavam, ou pelo menos, enquanto Greenwich falava, pois o outro parecia apenas ouvir. Chegaram a um automóvel estacionado, um Rover metalizado. Enquanto os observava, Lucien pensava que aquele Greenwich ou a tal Renata Myles seriam o ideal para o plano que tinha em mente, pois eram as únicas pessoas com acesso livre à mansão, pelo que lhe fora dado a observar. Mais a Myles, que mantinha as suas visitas mais ou menos regulares. Mas Lucien não se podia dar ao luxo de escolher. De qualquer forma, quando se referia a acesso livre, referia-se ao facto de ambos tocarem à campainha da mansão e lhe abrirem a porta. No mês que estivera ali a vigiar, usando alternadamente quatro carrinhas diferentes, nunca vira outras visitas. Aquele tipo do Rover tinha sido a única variante. E não vira uma única vez o famoso Charles Mahil-Dupont. Não admirava que, segundo lera, os paparazzi à muito tinham desistido de rondar o sítio à procura de alguma foto do herdeiro. Entretanto, o mais entroncado entrou no Rover e arrancou. Por momento, Greenwich ficou a ver o carro afastar-se, até que olhou para o portão donde acabara de sair e começou a andar devagar de volta nessa direcção. Lucien inspirou fundo. Estava na hora de começar a fase um do seu plano. Rapidamente, calçou os ténis que estavam em cima de um dos monitores e vestiu o casaco de fato de treino que estava a tapar um outro monitor. Saiu da carrinha, trancou-a e começou a correr, como qualquer outro cidadão a fazer exercício. Atravessou a estrada para o outro lado e correu pelo passeio, paralelamente ao longo muro que cercava a mansão. Estava agora a cem metros do portão e a outros cem de Greenwich. Passou pelo portão e quando estava prestes a cruzar-se com Greenwich, simulou torcer o tornozelo e caiu aparatosamente no chão, agarrando-se de seguida ao tornozelo. A primeira reacção de Greenwich foi de não saber o que fazer, mas segundos depois, estava a ajudar Lucien a pôr-se de pé. Nesse acto, o jovem dissimuladamente tirou de um bolso o que parecia ser um moscardo pô-lo nas costas do casaco de Greenwich, sem este se dar conta. Lucien agradeceu a ajuda, e simulando que afinal o pé parecia estar bom , reiniciou a corrida, atravessando a estrada. Greenwich abanou a cabeça e reiniciou a sua caminhada. Entretanto, verificando que Greenwich não o seguira com o olhar, Lucien alcançara a sua carrinha e entrou nela. Sentou-se na pequena cadeira que estava ao centro da divisão traseira do veículo, pôs uns auscultadores sobre os ouvidos e tomou nas mão o que parecia ser um pequeno telecomando de um carro de brinquedo. Ligou um dos botões nesse comando e no monitor à sua frente surgiu uma imagem em movimento, um pouco tremida. Era a imagem transmitida pelo “moscardo” que o jovem alemão pusera nas costas de Greenwich. O moscardo era uma obra-prima da nanotecnologia e tinha valido a Lucien uma ida ao Japão, para conseguir comprá-lo no mercado negro. Tinha custado uma fortuna e não era o modelo que conseguia voar. Mas esse, o tal moscardo espião que voaria como um moscardo real, talvez não passasse de uma lenda nos meios do submundo tecnológico. Muita gente falava nele, mas nunca ninguém tinha visto um. Enquanto Greenwich de aproximava do portão, Lucien, usando o comando, fez o moscardo subir pelas costas e posicionar-se no ombro, um pouco atrás do campo de visão do executivo. Lucien sentiu um arrepio, ao pensar que bastava ao outro limpar os ombros para uma pequena fortuna despedaçar-se na calçada e ele ter que voltar ao Japão. Greenwich parara agora em frente ao pequeno painel de metal aonde se situava a campainha estilo clássico no portão e Lucien esperou que o outro tocasse à campainha. Mas não o fez. Lucien olhou para o outro monitor, o que mostrava a imagem recolhida pela câmara no topo da carrinha e viu Greenwich a olhar para os lados, como se receasse ser visto. Nos seus auscultadores ouviu a voz de Norman Greenwich, captada pelo moscardo no ombro deste:

- Domus, código zebra dois azul um. – disse Greenwich, quase num sussurro. Que raio estava o tipo a fazer? Uma voz monocórdica saiu do painel.

- Código aceite. - respondeu a voz pelo interfone. Lucien perguntou-se se aquela seria a voz do tal Domus.

- Domus, Charles está no laboratório? – perguntou Greenwich ao intercomunicador.

- Negativo. O menino Charles encontra-se no terraço superior da mansão, na companhia da menina Renata – respondeu educadamente a voz. De alguma forma, aquela forma educada de falar, numa voz tão maquinalmente monocórdica a imitar um homem de idade soava estranho a Lucien. Talvez fosse efeito do interfone. A voz no intercomunicador continuou – O laboratório encontra-se vazio.

- Óptimo! - disse Greenwich - Domus, dá-me acesso e apaga o registo desta minha entrada.

- Afirmativo – respondeu a outra voz, e o portão à frente do executivo abriu-se.

Na carrinha, Lucien via num monitor Greenwich a desaparecer atrás do portão, e no outro monitor observava uma imagem que avançava em direcção a uma enorme mansão, por um caminho de lajes por entre um relvado, com estátuas que pareciam ser gregas a passarem por ambos os lados.

- Isto está a ficar interessante! – comentou Lucien para si mesmo – Há mais que um macaco a querer a mesma banana.

Greenwich entrou no hall e só nessa altura se lembrou de um pormenor. Olhou nervosamente para todos os lados e disse:

- Domus, a Maria está aonde?

- Maria está na cozinha. – respondeu o servil Domus – Pelo registo de conversas, está a preparar o almoço para os meninos Charles e Renata.

- Excelente! – disse Norman – Isso quer dizer que disponho de mais tempo do que pensava.

Rapidamente, entrou pela porta que dava para um dos elevadores. Entrou no elevador e no painel de metal polido de botões do ascensor, carregou no botão do nível do subsolo. Enquanto descia, pensava se teria sorte naquilo que vinha em busca. Sorriu, enquanto pensava no Charles. O idiota não sabia, mas ele, Norman Greenwich, sabia precisamente o que o geniozinho andava a fazer. O teletransporte. Norman não acreditaria se não tivesse visto com os seus próprios olhos os registos vídeo das experiências de Charles. Há um ano atrás, aquando da sua primeira “incursão” aos domínios de Charles, não conseguira perceber o que o herdeiro andava a tramar, até deparar com o registo do primeiro teletransporte do jovem. Depois do fogo, esta era a invenção que mais poderia mudar a humanidade. E o idiota do Mahil-Dupont nem sequer ainda tinha ainda registado a patente. O rapaz não era nem um décimo do que o pai fora. O facto de ter deixado a Myles chegar aonde chegara era disso prova. Reynard Mahil-Dupont nunca deixaria uma espevitada como Renata tomar as rédeas da corporação. Greenwich lembrava com nostalgia os tempos em que ele e Reynard eram a dupla mais temida no mundo dos negócios. Os dois, juntos, tinham afrontado as poderosas corporações Americanas e Japonesas. Mas o acidente que matara Reynard e Jaques mudara tudo. Na altura, fora como se Norman tivesse perdido um irmão e um sobrinho. E tentara dar o seu melhor para Charles seguir as pegadas dos parentes. Mas o rapaz revelara-se um fraco, incapaz de compreender a responsabilidade que herdara. Para Norman, Charles, apesar de ter o sangue de Reynard a correr-lhe nas veias, não passava da ovelha negra da família. E a família agora resumia-se a ele. E Greenwich compreendera que estava a chegar a hora de separar o seu destino do daquela família. Mas se pedisse o afastamento, por mais elevado que fosse o valor monetário da sua compensação, nunca corresponderia à justiça para com quem tinha ajudado a construir aquele império económico. Não, ele próprio cuidaria para obter o que achava justo. Apesar de quase desprezar Charles, Greenwich nunca menosprezara as potencialidades científicas do jovem. E afinal, o jovem podia ter os meios que quisesse ao seu dispor para tentar qualquer projecto em que se empenhasse. Fora com isso em mente que, quando fornecera o Domus à mansão, dera indicações ao seu fiel engenheiro-chefe para deixar uma “porta de segurança” no sistema. E assim, apenas com um código oral, a sua vontade era divina para o Domus. Greenwich gostava daquela situação: com o Domus, podia ver e ouvir tudo o que se passasse naquela mansão. Sem ninguém sequer desconfiar. Norman reconhecia para com ele próprio que tirava um certo prazer disso. Só lamentava que Charles não parecia ser do tipo que agradasse romanticamente a Renata, pois se algo desse tipo acontecesse, seria interessante expor cenas mais íntimas nos média. Greenwich sorriu, recordando a ocasião em que ele e Reynard tinham arruinado uma Ministra da Economia mais metediça com um esquema parecido. Mas voltando à sua prioridade actual, quando Charles começou a isolar-se cada vez mais no laboratório subterrâneo, Norman vira que chegara a hora de utilizar a “porta de segurança” do Domus para descobrir o que se passava. Logo que descobriu, começou a preparar as coisas para se apoderar daquela oportunidade. A tecnologia de teletransporte seria o meio ideal para formar o seu próprio império financeiro. Só os direitos sobre a patente fariam dele o homem mais rico do mundo. E isso seria apenas o começo. Mas Greenwich deparara-se com um problema: ele apenas controlava o Domus, e este não tinha acesso ao computador principal do laboratório. Mas tinha acesso ao circuito vídeo, no qual eram registadas as experiências de Charles. Fora assim que conseguira descobrir tudo. E Greenwich dera ordem ao Domus para que gravasse tudo o que se passasse no laboratório. Infelizmente, em questão de comunicações de dados, a mansão estava isolada do mundo e ele tinha que, regularmente, vir discretamente a uma das inúmeras consolas do Domus buscar o CD com as gravações que o seu espião informático efectuara, na impossibilidade de este lhe enviar isso para o exterior da mansão. Mas hoje não estava aqui para isso. Hoje, contava ser a última vez que tinha que se portar como um ladrão, esgueirando-se por entre as sombras.

A porta do elevador abriu-se e à sua frente estendia-se o corredor que levava à porta de madeira do laboratório. Começou a atravessar o corredor. Para ele, os incríveis sistemas de segurança que ali actuavam nada significavam, pois todos eram geridos pelo Domus. E o Domus era o seu melhor amigo. Norman sorriu com essa ironia.

Sentados nas cadeiras de jardim de ferro fundindo pintado de verde, Renata olhava para Charles como se este estivesse sob um interrogatório policial, sendo ela o inquisidor. E ele bem podia começar a falar, pois depois de três anos a guardar segredo, ou ele falava depressa ou ela começava a ficar com vontade de atirar o amigo para fora do terraço. Se era que se podia chamar terraço àquele mini-jardim incrustado no terceiro piso da mansão. Reynard, o pai de Charles, mandara-o instalar na altura em que uma empresa do grupo andava a desenvolver aquele tipo de relva artificial que cobria quase a totalidade daquele terraço.

Charles trauteava os dedos na mesa metálica em forma de flor que estava entre eles, em que as pétalas dobravam-se harmoniosamente até formarem os pés que a suportava, com a antecipação do que ia revelar a Renata, como que fazendo uma pausa dramática antes da revelação. Ela, revelando a sua pouca queda para dramatismos, foi directa ao assunto:

- Muito bem, conta! – disse ela, que apesar de tentar usar a técnica de autocontrole com que nos negócios lhe fazia assentar o rótulo de “máquina fria”, não conseguia evitar de se sentir por dentro como uma criança ansiosa. E na companhia de Charles, quase como um irmão para ela, Renata quase se dava ao luxo de libertar aquilo que tinha que reprimir durante o trabalho, parente as hordas de executivos enforcados nas próprias gravatas de marca. E acrescentou com ar condescendente. - E depressa, menino, que a senhora aqui está à espera.

- Parece-me, Renata... – disse Charles, demorando-se propositadamente – Que por vezes esqueces que tens apenas mais dois anos do que eu.

- Charles... – ameaçou ela, entre um sorriso que o desarmava sempre.

- Muito bem, então é assim. – disse Charles, sentindo o próprio coração ao pulos por finalmente contar a alguém o seu feito. – O que eu criei e desenvolvi é algo que vai mudar muita coisa, tal como conheces.

- É bom que mude, depois de três anos naquele buraco – interrompeu ela.

- Está bem, rapariga do campo. O facto é que hoje fiz as experiências finais. – ele fez uma pausa, olhando nos olhos dela fixamente, como poucas vezes fizera antes. – Deslocação sem movimento. Diz-te alguma coisa?

- Andaste a desenvolver a tua linguística, foi isso? – disse ela impacientemente – Vá lá, fala!

- Teletransporte, Renata, é disso que eu estou a falar! – ela não reagiu, como que ficando à espera do resto, e ele continuou. – Deslocação instantânea de qualquer coisa para qualquer parte. – e estalou os dedos – Num estalar de dedos. Num piscar de olhos. Não estou a falar de teoria, estou a falar de algo que acabei de fazer ainda hoje, lá em baixo.

Renata olhava para ele de uma forma estranha, talvez perscrutando na cara do amigo se ele não estava ainda em alguma brincadeira de prelúdio de conversa. Mas nenhum deles estava a rir, agora.

- Estás a falar a sério. – disse ela, não a perguntar, mas a constatar – Por S. Jorge, estás a falar a sério.

- Estou! – respondeu ele, levantando-se da cadeira e segurando a mão de Renata, que olhava para ele, incrédula, ainda a digerir o que acabara de ouvir – Anda, vamos lá abaixo ao laboratório que eu mostro-te.

Entretanto, Maria chegara no elevador com um carinho de serviço de comida e aproximara-se deles pelo caminho de mármore branco que atravessava a relva do ascensor até à mesa, e ouvindo as últimas palavras de Charles, abanou a cabeça em reprovação.

- Agora não vai a lado nenhum, menino Charles. – disse ela no seu suave modo autoritário – A comida está quente e nem pensar em deixá-la em arrefecer para se ir enfiar naquele buraco lá de baixo.

Charles abriu a boca para começar a protestar, mas lembrou-se de algo

- O facto é que agora também não te posso demonstrar nada. – disse para Renata, com um certo desalento – Pus o computador principal a calcular algo que ainda não deve ter acabado. Mas o seu rosto iluminou-se logo de seguida. - Mas isso é a outra surpresa. – Sentou-se e voltou a olhar fixamente nos olhos de Renata. –Viagens no tempo diz-te alguma coisa?

- O quê? – exclamou Renata, com os muito abertos olhos verdes a revelarem o quanto estava surpreendida. Charles fitava-os agora, apercebendo-se o quanto estava a saborear este momento. O espanto dela para com ele era-lhe como ouro. Ela sorriu e disse, pausadamente – Agora deves estar realmente a brincar.

Charles, não respondendo, sorriu também e voltou a sentar-se. Acto contínuo, Maria estendeu uma toalha branco alva sobre a mesa de metal e começou a pôr os pratos e talheres para o almoço.

- Que forma para dar a uma mesa! – disse Maria, abanando a cabeça, pois estava mesmo a ver que os dois jovens não iam comer em condições, pois aqueles pés esquisitos da mesa não deviam ser muito cómodos para se estar à mesa de refeição. E acrescentou - Modernices. Já não sabem que mais inventar.

A seguir: "A Intromissão"

Oldland
Enviado por Oldland em 09/03/2007
Código do texto: T406431