Este foi um dos primeiros contos de FC que escrevi e publiquei aqui no Recanto e, por conta de um jejum de ideias nessa categoria, eu trago de volta. Boa leitura.
De Volta a Terra
Enquanto esperava pelo embarque Alice se lembrou de cinco anos atrás. A plataforma de pouso e decolagem era a mesma, simples e robusta, sem nenhuma estética e de baixa tecnologia como tudo o mais no planeta Terra. Mas Alice havia mudado muito, não era mais a jovem frágil recém saída da faculdade.
Naquela época ela havia acabado de se formar em biologia, seu grande sonho desde os tempos da escola básica, sem nenhum louvor diga-se de passagem, apesar de esforçada ela nunca conseguiu acompanhar o resto de sua turma. Também pudera, sua vida nunca foi fácil, além de estudar ela tinha um emprego na unidade de processamento de alimentos de sua estação, ganhava mal e sustentava quase que sozinha sua mãe e seu velho bisavô com os quais dividia um cubículo em uma das colônias perto de Alfa Centauri, uma lata de sardinha dentro de uma lata de conserva como dizia seu bisavô.
Ele tinha razão, a colônia era formada por estações gigantescas de formado cilíndrico, graças ao movimento de rotação essas estações produziam uma força centrifuga que imitava uma baixa gravidade. Milhões habitavam essas estações, era muito mais cômodo que viver em um planeta, já que o ambiente podia ser perfeitamente controlado.
Houve um dia no entanto que Alice decidiu abandonar essa vida, foi um dia negro. Uma falha no sistema de aquecimento de sua estação fez com que a temperatura caísse bruscamente, pela primeira vez Alice sentiu frio, mas de qualquer forma os funcionários na fabrica estavam protegidos por um sistema de aquecimento auxiliar, o mesmo não se podia dizer dos habitantes menos favorecidos da estação, como sua mãe e seu bisavô. Ela ainda se lembrava quando reconheceu os corpos rígidos de seus entes mais amados, amontoados junto a muitos outros retirados dos cubículos da periferia da estação, todos vitimas de hipotermia.
Alice tinha que traçar seu destino. Como não foi uma aluna brilhante não podia se canditar a uma vaga para estudar a exobiologia que vinha sendo descoberta nas dezenas de planetas e luas exploradas na galáxia, mas também não queria uma vaga de professora ou técnica de laboratório em uma das outras estações, cargo geralmente destinado aos alunos menos destacáveis. Não, o que ela queria era deixar a vida nas colônias.
Foi então que ela ouviu falar na Terra, o planeta natal da raça humana, o planeta abandonado.
Foi uma dessas informações no cantinho do mural virtual da faculdade que passam despercebidas para a maioria: “Precisa-se de profissionais em ciências biológicas para trabalhar na reserva da Terra e projetos de panspermia dirigida, necessária disponibilidade para permanecer longos períodos no planeta. Curiosos não serão bem-vindos, o trabalho envolve exposição a riscos físicos e mentais.”
Alice entrou em contato com a organização por trás do anúncio, que ela veio saber depois fazer parte da Confederação, instituição que fazia às vezes de um Estado interestelar.
As orientações eram claras, precisavam de indivíduos que dominassem o conhecimento da biologia terrestre, isso era uma vantagem para Alice, já que com as disciplinas básicas ela não tivera problemas. Além do mais os candidatos selecionados iriam passar por um curso de sobrevivência em ambientes hostis e uma longa temporada em uma estação onde seus corpos seriam gradualmente adaptados a gravidade terrestre.
Havia uma clausula a mais: os participantes no projeto deveriam manter sigilo absoluto sobre toda a pesquisa, tratava-se de um caso de segurança galáctica.
Alice passou por todas as etapas e foi enviada a Terra. Ela ainda se lembrava quando viu o globo azul esverdeado salpicado de nuvens brancas pela primeira vez, a visão de um planeta era um espetáculo que poucos seres humanos tinham a oportunidade de testemunhar já que a humanidade estava confinada em suas colônias. Ela lembrava ainda do “enjôo da Terra”, a sensação horrível experimentada pelos viajantes espaciais quando desciam a superfície do planeta, era provocado por uma combinação da alta gravidade e os elementos naturais: variações no clima, microorganismos, luz solar e poeira, coisas inimagináveis no ambiente estéril e controlado das estações espaciais. Alice ficou duas semanas de cama, nunca havia ficado doente na vida, chegou a pensar que as dezenas de imunobiológicos que tomara tinham sido em vão.
Logo que se recuperou foi apresentada de fato a “missão”: a vida nas colônias estava tirando da humanidade seu maior trunfo, a capacidade de adaptação. Era consenso geral entre os especialistas que em um futuro próximo o ser humano seria extinto, seja por meios próprios ou pelo contato com civilizações alienígenas mais avançadas (o surpreendente era o fato de Alice descobrir que a Confederação já sabia da existência de tais civilizações, mas escondia a informação do grande público). Para evitar essa possibilidade a Confederação havia transformado todo o planeta Terra, abandonado havia séculos, em uma reserva natural.
Muita coisa tinha mudado na Terra desde o êxodo da humanidade, toda a biodiversidade terrestre, antes confinada em pequenas ilhas (as antigas reservas e parques naturais ainda não destruídos pelo homem), havia se apoderado de novo de todo o planeta. A Terra era mais uma vez um mundo selvagem.
Alice faria parte de equipes de cientistas de várias áreas que passariam cinco anos isolados nessa nova Terra, conduziriam suas pesquisas quase que isolados uns dos outros em instalações espalhadas pelos cinco continentes. Seu papel era selecionar espécimes de plantas e animais que, a partir da reestruturação genética, poderiam ser usados para “terraformar” mundos alienígenas. Essa era a verdadeira missão, transformar mundos hostis em planetas onde o ser humano pudesse viver. Na verdade, como Alice veio a descobrir depois, o objetivo era que, mesmo que o ser humano desaparecesse, as formas de vida da Terra pudessem ter uma chance de se espalhar pela galáxia e continuar sua evolução, talvez até triunfando sobre formas de vida extraterrestres, esse era o legado que a Confederação queria deixar como herança da humanidade para a Terra depois de quase destruí-la. Isso era a panspermia dirigida.
E durante cinco anos Alice permaneceu na Terra vivendo como seus antepassados.
No começo foi muito duro, tinha que dividir o tempo entre as pesquisas e sua própria subsistência. No início o medo era constante, não estava acostumada ao poder dos elementos, na América do Norte enfrentou o frio e a neve enquanto documentava a migração de bisões e alces. Na América do Sul o problema era a alta umidade e o calor da selva tropical, além dos mosquitos, nesse continente ela permaneceu a maior parte de sua estada tamanha era a diversidade de vida nos diferentes estratos de vegetação, como aquilo havia sobrevivido ao meteoro humano era um quase um milagre. Alice também enfrentou desertos, geleiras e as profundezas do oceano. Por duas vezes teve que matar para sobreviver, uma foi no encontro com um leão na África subsaariana e a outra foi com um crocodilo na Austrália, ela escapou por pouco.
O clima também foi um desafio, a primeira vez que ela testemunhou um trovão ficou gravada na memória. Agora ela entendia por que esse fenômeno poderoso havia sido divinizado pelos primeiros homens. Como os outros integrantes do projeto espalhados pela superfície da Terra ela enfrentou tornados, nevascas, tempestades de areia e extremos de calor e frio. Havia ainda as forças do interior do planeta: terremotos e vulcões.
Com o passar dos anos Alice entendeu por que o ser humano havia obtido tamanho sucesso evolutivo, a exposição aos elementos na Terra era implacável em selecionar as espécies mais adaptáveis, e era esse poder em se adaptar que o ser humano isolado em suas confortáveis estações estava perdendo. Mas não era só isso que ele estava perdendo, como ela estava descobrindo o desejo de explorar e desbravar novos territórios também desaparecia aos poucos, desejo esse que ela aprendeu a recuperar.
Os anos iam passando, a jovem que perdera a família em uma lata de conserva agora era uma mulher preparada para qualquer desafio, havia se encontrado com seus ancestrais, não só nas ruínas das antigas civilizações ou nas pinturas rupestres de cavernas imemoriais, ela sentiu que fazia parte de algo maior que havia se iniciado naquele planeta há centenas de milhões de anos atrás e que agora, com a participação dela, iria se espalhar pelo resto do universo.
Cinco anos. Alice abandonou as lembranças. Era hora de partir. Não, ela não retornaria para nenhuma colônia, tinha uma nova missão, transformar mundos vazios em novas Terras, futuros lares para os bilhões de exilados da galáxia, começava uma nova etapa na evolução do ser humano, mas isso, como Alice bem sabia, é outra história.
Obrigado por lerem esse conto, espero que tenham gostado e qualquer comentário, critíca ou sugestão serão benvindos. Até o próximo conto!
Luciano S V.
Naquela época ela havia acabado de se formar em biologia, seu grande sonho desde os tempos da escola básica, sem nenhum louvor diga-se de passagem, apesar de esforçada ela nunca conseguiu acompanhar o resto de sua turma. Também pudera, sua vida nunca foi fácil, além de estudar ela tinha um emprego na unidade de processamento de alimentos de sua estação, ganhava mal e sustentava quase que sozinha sua mãe e seu velho bisavô com os quais dividia um cubículo em uma das colônias perto de Alfa Centauri, uma lata de sardinha dentro de uma lata de conserva como dizia seu bisavô.
Ele tinha razão, a colônia era formada por estações gigantescas de formado cilíndrico, graças ao movimento de rotação essas estações produziam uma força centrifuga que imitava uma baixa gravidade. Milhões habitavam essas estações, era muito mais cômodo que viver em um planeta, já que o ambiente podia ser perfeitamente controlado.
Houve um dia no entanto que Alice decidiu abandonar essa vida, foi um dia negro. Uma falha no sistema de aquecimento de sua estação fez com que a temperatura caísse bruscamente, pela primeira vez Alice sentiu frio, mas de qualquer forma os funcionários na fabrica estavam protegidos por um sistema de aquecimento auxiliar, o mesmo não se podia dizer dos habitantes menos favorecidos da estação, como sua mãe e seu bisavô. Ela ainda se lembrava quando reconheceu os corpos rígidos de seus entes mais amados, amontoados junto a muitos outros retirados dos cubículos da periferia da estação, todos vitimas de hipotermia.
Alice tinha que traçar seu destino. Como não foi uma aluna brilhante não podia se canditar a uma vaga para estudar a exobiologia que vinha sendo descoberta nas dezenas de planetas e luas exploradas na galáxia, mas também não queria uma vaga de professora ou técnica de laboratório em uma das outras estações, cargo geralmente destinado aos alunos menos destacáveis. Não, o que ela queria era deixar a vida nas colônias.
Foi então que ela ouviu falar na Terra, o planeta natal da raça humana, o planeta abandonado.
Foi uma dessas informações no cantinho do mural virtual da faculdade que passam despercebidas para a maioria: “Precisa-se de profissionais em ciências biológicas para trabalhar na reserva da Terra e projetos de panspermia dirigida, necessária disponibilidade para permanecer longos períodos no planeta. Curiosos não serão bem-vindos, o trabalho envolve exposição a riscos físicos e mentais.”
Alice entrou em contato com a organização por trás do anúncio, que ela veio saber depois fazer parte da Confederação, instituição que fazia às vezes de um Estado interestelar.
As orientações eram claras, precisavam de indivíduos que dominassem o conhecimento da biologia terrestre, isso era uma vantagem para Alice, já que com as disciplinas básicas ela não tivera problemas. Além do mais os candidatos selecionados iriam passar por um curso de sobrevivência em ambientes hostis e uma longa temporada em uma estação onde seus corpos seriam gradualmente adaptados a gravidade terrestre.
Havia uma clausula a mais: os participantes no projeto deveriam manter sigilo absoluto sobre toda a pesquisa, tratava-se de um caso de segurança galáctica.
Alice passou por todas as etapas e foi enviada a Terra. Ela ainda se lembrava quando viu o globo azul esverdeado salpicado de nuvens brancas pela primeira vez, a visão de um planeta era um espetáculo que poucos seres humanos tinham a oportunidade de testemunhar já que a humanidade estava confinada em suas colônias. Ela lembrava ainda do “enjôo da Terra”, a sensação horrível experimentada pelos viajantes espaciais quando desciam a superfície do planeta, era provocado por uma combinação da alta gravidade e os elementos naturais: variações no clima, microorganismos, luz solar e poeira, coisas inimagináveis no ambiente estéril e controlado das estações espaciais. Alice ficou duas semanas de cama, nunca havia ficado doente na vida, chegou a pensar que as dezenas de imunobiológicos que tomara tinham sido em vão.
Logo que se recuperou foi apresentada de fato a “missão”: a vida nas colônias estava tirando da humanidade seu maior trunfo, a capacidade de adaptação. Era consenso geral entre os especialistas que em um futuro próximo o ser humano seria extinto, seja por meios próprios ou pelo contato com civilizações alienígenas mais avançadas (o surpreendente era o fato de Alice descobrir que a Confederação já sabia da existência de tais civilizações, mas escondia a informação do grande público). Para evitar essa possibilidade a Confederação havia transformado todo o planeta Terra, abandonado havia séculos, em uma reserva natural.
Muita coisa tinha mudado na Terra desde o êxodo da humanidade, toda a biodiversidade terrestre, antes confinada em pequenas ilhas (as antigas reservas e parques naturais ainda não destruídos pelo homem), havia se apoderado de novo de todo o planeta. A Terra era mais uma vez um mundo selvagem.
Alice faria parte de equipes de cientistas de várias áreas que passariam cinco anos isolados nessa nova Terra, conduziriam suas pesquisas quase que isolados uns dos outros em instalações espalhadas pelos cinco continentes. Seu papel era selecionar espécimes de plantas e animais que, a partir da reestruturação genética, poderiam ser usados para “terraformar” mundos alienígenas. Essa era a verdadeira missão, transformar mundos hostis em planetas onde o ser humano pudesse viver. Na verdade, como Alice veio a descobrir depois, o objetivo era que, mesmo que o ser humano desaparecesse, as formas de vida da Terra pudessem ter uma chance de se espalhar pela galáxia e continuar sua evolução, talvez até triunfando sobre formas de vida extraterrestres, esse era o legado que a Confederação queria deixar como herança da humanidade para a Terra depois de quase destruí-la. Isso era a panspermia dirigida.
E durante cinco anos Alice permaneceu na Terra vivendo como seus antepassados.
No começo foi muito duro, tinha que dividir o tempo entre as pesquisas e sua própria subsistência. No início o medo era constante, não estava acostumada ao poder dos elementos, na América do Norte enfrentou o frio e a neve enquanto documentava a migração de bisões e alces. Na América do Sul o problema era a alta umidade e o calor da selva tropical, além dos mosquitos, nesse continente ela permaneceu a maior parte de sua estada tamanha era a diversidade de vida nos diferentes estratos de vegetação, como aquilo havia sobrevivido ao meteoro humano era um quase um milagre. Alice também enfrentou desertos, geleiras e as profundezas do oceano. Por duas vezes teve que matar para sobreviver, uma foi no encontro com um leão na África subsaariana e a outra foi com um crocodilo na Austrália, ela escapou por pouco.
O clima também foi um desafio, a primeira vez que ela testemunhou um trovão ficou gravada na memória. Agora ela entendia por que esse fenômeno poderoso havia sido divinizado pelos primeiros homens. Como os outros integrantes do projeto espalhados pela superfície da Terra ela enfrentou tornados, nevascas, tempestades de areia e extremos de calor e frio. Havia ainda as forças do interior do planeta: terremotos e vulcões.
Com o passar dos anos Alice entendeu por que o ser humano havia obtido tamanho sucesso evolutivo, a exposição aos elementos na Terra era implacável em selecionar as espécies mais adaptáveis, e era esse poder em se adaptar que o ser humano isolado em suas confortáveis estações estava perdendo. Mas não era só isso que ele estava perdendo, como ela estava descobrindo o desejo de explorar e desbravar novos territórios também desaparecia aos poucos, desejo esse que ela aprendeu a recuperar.
Os anos iam passando, a jovem que perdera a família em uma lata de conserva agora era uma mulher preparada para qualquer desafio, havia se encontrado com seus ancestrais, não só nas ruínas das antigas civilizações ou nas pinturas rupestres de cavernas imemoriais, ela sentiu que fazia parte de algo maior que havia se iniciado naquele planeta há centenas de milhões de anos atrás e que agora, com a participação dela, iria se espalhar pelo resto do universo.
Cinco anos. Alice abandonou as lembranças. Era hora de partir. Não, ela não retornaria para nenhuma colônia, tinha uma nova missão, transformar mundos vazios em novas Terras, futuros lares para os bilhões de exilados da galáxia, começava uma nova etapa na evolução do ser humano, mas isso, como Alice bem sabia, é outra história.
Obrigado por lerem esse conto, espero que tenham gostado e qualquer comentário, critíca ou sugestão serão benvindos. Até o próximo conto!
Luciano S V.