Paciente e Cobaia
Não estivesse ele anestesiado, completamente inconsciente sobre a mesa cirúrgica, teria percebido que o ambiente ao redor era tenso. O suor de nervosismo quase gotejava do cirurgião para o peito exposto do paciente enquanto conduzia o bisturi com maestria através de carnes, músculos, nervos e vasos sanguíneos. Felizmente o auxiliar ao seu lado tinha sempre um pano seco à mão para enxugar as gotículas que se formavam em sua testa. A contaminação provocada por uma daquelas gotas caindo em direção à mesa, sobre a qual se via o peito aberto do paciente, seria fatal!
- Cuidado! - alerta o experiente doutor. - Tem uma microartéria aí onde você está encostando o tubo de sucção!
O bip era intermitente. Ótimo sinal! Significava que o coração ainda batia. Mas dispensável naquela situação em particular: qualquer um podia ver ao vivo que a bomba muscular continuava funcionando dentro do tórax do doente.
- Como está a pressão?
- Caindo, doutor!
- Nada bom... Nada bom... - resmungou mais para si mesmo que para o resto da equipe.
Os sensores ao redor da mesa cirúrgica registravam os movimentos com precisão. Cada leve tremor dos instrumentos cirúrgicos era armazenado na memória digital do computador que monitorava aquela cirurgia cardíaca.
- Está começando a fibrilar, doutor!
- Rápido! Placas elétricas! Rápido, gente!
Era indiferente se o paciente estava mesmo lá ou a milhares de quilômetros de distância, a emoção e o nervosismo eram sempre os mesmos! Contanto que o delay de transmissão não afetasse a precisão nos movimentos dos médicos, poderiam operar até mesmo um paciente do outro lado do mundo. Uma operação remota interplanetária, com seus enormes atrasos entre ação e resposta, já era bem mais complicada. Inviável devido à velocidade finita de propagação das ondas eletromagnéticas, portadoras dos movimentos codificados da equipe cirúrgica. Era por isso que o computador os registrava fielmente, observava, analisava... e tentava aprender! Inferir um padrão!
- Parada respiratória!
- Diminuam a separação das costelas! Agora!
A ilusão era perfeita! O paciente parecia estar mesmo presente ali, no lugar em que era projetado o holograma! Apesar de tatearem e rasgarem com seus instrumentos apenas ar puro preenchido com laser holográfico e vapores de água para projeção de seus raios, nodos de ressonância de frentes de ondas ultrassônicas cuidadosamente dirigidas davam uma sensação tátil bem próxima da real.
- O perdemos, doutor!
O apito contínuo que preenchia a sala tornava este comentário dispensável. O doutor baixou os olhos com tristeza. Era a quarta vez que aquilo acontecia só naquele dia, sem contar com outras sete tentativas frustradas do dia anterior! Ele sentia estas perdas na própria alma. As coisas não iam muito bem ultimamente. Ele estava caindo de sono, dormira pouco menos de uma hora de ontem para hoje! Ainda assim, decidiu insistir:
- Certo pessoal! Vamos tentar de novo até acertar!
A enfermeira-chefe olha preocupada para as profundas olheiras debaixo das cavidades oculares do cirurgião.
- Tem certeza de que está bem mesmo, doutor?
- Não se preocupem comigo! Se concentrem no paciente!
- É melhor descansar um pouco!
- Não temos muito tempo, vocês sabem! - mas, se sentindo esgotado, resolve ceder - Só mais uma tentativa, por favor! Depois paramos por hoje!
A enfermeira entra com alguns códigos no teclado ao lado da mesa cirúrgica. O paciente morto vai sumindo aos poucos, ficando transparente. Em seu lugar sobre a mesa aparece outro, um novo holograma. Novo? Oras, não desconfie dos próprios olhos, caro leitor! Ou o próximo paciente é gêmeo idêntico do primeiro ou estamos aqui de novo diante do mesmo paciente. Vivo outra vez!
- Paciente número 137244... de novo! Escaneado dia 7 de novembro de 2112 às 21 horas e 58 minutos. Diagnóstico de doença cardíaca congênita. Iniciando procedimento cirúrgico...
Reconstruído do paciente original, dados salvos do organismo micrometricamente mapeado por um scanner clínico, seus tecidos novamente se "materializavam" no holograma e ganhavam vida com o algoritmo simulador de metabolismo humano. O sangue voltava a correr naquele organismo virtual registrado na memória do computador, músculos simulavam contração e relaxamento, alavancando as articulações sustentadas por ossos intangíveis. As vias nervosas transmitiam sensações de dor ao cérebro emulado, e por isto mesmo o doutor recomeçou aquela simulação com uma anestesia geral no paciente. Ele mergulhou na inconsciência em poucos minutos, invadido por aquelas sequências binárias narcotizantes.
O bisturi descreveu um corte preciso na pele sobre o tórax, de cima a baixo. Serras virtuais cortando o esterno ao meio, separadores holográficos afastando as costelas... De novo os sensores registravam os movimentos. Se bem aprendidos, poderiam depois ser replicados por braços robóticos mil vezes mais precisos que as mãos de qualquer cirurgião! Desta vez tinha que dar certo!
- Anticoagulante aqui, enfermeira!
Ela digita algo numa pequena caixa branca com uma ponta metálica, e encosta no ponto de junção entre a aorta e o coração, apontado pelo médico.
- Tem que funcionar! É aí que estivemos falhando este tempo todo!
A operação prossegue por pouco mais de uma hora. O cirurgião e sua equipe estavam chegando ao limite do suportável. Quando vem enfim o resultado tão esperado:
- Sucesso! O paciente está salvo! Parabéns doutor!!
Alívio geral! Finalmente a sequência correta de procedimentos que salvaria o paciente, no momento aguardando ansioso pelo resultado da simulação cirúrgica em seu corpo. Seu problema cardíaco finalmente resolvido graças a mãos robóticas que reproduziriam perfeitamente os movimentos ensinados ao cérebro eletrônico pelo competente cirurgião!
- Paro aqui, meus caros! Acredito que vocês sejam capazes de fechar sozinhos de novo o paciente, não é? Quanto a mim... não aguento mais. Preciso de uma cama urgente!
Ele vai até o banheiro e se dirige ao espelho. Não havia percebido antes como estavam profundas suas olheiras! Mas o esforço valeu a pena. Estava feliz! Tudo dera certo depois de 12 horas de simulações, quatro frustradas. Mentira, havia se esquecido do dia anterior sobre o mesmo paciente... Não estava mais pensando direito, efeito indiscutível do sono mais que atrasado. Estava feliz. Tira a máscara e se olha no espelho, com um sorriso que ia de uma orelha a outra. Qualquer um de vocês leitores que o visse agora sem a máscara não teria a menor sombra de dúvida quanto ao fato inusitado: o paciente no holograma acima da mesa de operações era o próprio Doutor!!!
*** FIM ***