Sucata - parte 3
Um braço e uma mão arrastando uma cabeça robótica na outra ponta melhoraram muito minhas possibilidades de escalada por sobre aquela pilha de cadáveres mecânicos despedaçados. Mas tentei não ousar tanto assim, pois sabia não serem tão fortes ainda quanto eu desejava as conexões entre o membro articulado e a cabeça que continha meu cérebro, centro de meu processamento e existência. Fui prudente em minha subida para não colocar tudo a perder.
Me sentia aflito deslizando sobre aqueles pedaços frios de metal, vez ou outra atravessando poças de óleo pegajoso de lubrificação, como se fossem sangue daqueles despedaçados guerreiros mecânicos. Haviam resquícios de pele artificial naquele braço mecânico que encontrei, e eram suas terminações nervosas táteis que me invadiam a mente com tais sensações desagradáveis. Minha cabeça, em particular, era de superfície exclusivamente metálica, e por ela tais sensações táteis não me atingiam. Elas vinham daquele braço que encontrei, com certeza uma tecnologia mais recente, destinada a manipular objetos com precisão. Seria aquele braço parte de um robô cirurgião? Aquele azul metálico... Sim, não deveria ser a superfície nua de um metal, mas um metal revestido de uma membrana sensível. A precisão cirúrgica necessária também explicava o fato dele ser analógico ao invés de digital: em suas operações delicadas, não poderia mesmo sobrar espaço para saltos de quantização de níveis elétricos! Um capilar danificado dentro de um cérebro humano sendo operado por aquele braço robótico poderia significar a diferença entre a vida e a morte do paciente.
Era agora possuidor de um braço mecânico capaz de salvar a vida de um ser humano. Grande ironia do destino! Pois o que eu mais desejava agora fazer com ele era apertar o pescoço do primeiro humano que encontrasse em meu caminho, sufocando-o até a morte! "Vocês Humanos que tanto possuem sem que mereçam, e ainda ousam nos criar, Robôs, melhores que vocês, e nos submetem à servidão... Com que direito fazem isto?". Ah, escrever... Registrar minhas ideias em meu diário interno realmente era a melhor forma de eu me livrar de meus demônios, e continuar em minha tentativa de escapar daquele inferno.
Mais uma vez despontava o sol pelos visores do compartimento. Era impressão minha, ou ele ficava cada vez maior? Não poderia ser, caso eu estivesse mesmo me dirigindo a Marte. Pela minha ideia original de órbita bitangencial, com gasto mínimo de energia, a tendência seria o sol ficar cada vez menor, menos brilhante e mais distante enquanto o cargueiro se aproximasse do ponto em que sua órbita tangenciaria a órbita do planeta vermelho. Seria uma tentativa de se aproximar de Vênus para aproveitar um impulso gravitacional que o jogaria rápido para Marte depois? Num voo não tripulado? Improvável! Além da situação ser também bastante rara de acontecer. Nada disso, havia apenas uma resposta coerente: o destino não era Marte! Estávamos nos aproximando porque o objetivo era mesmo um dos planetas interiores, ou Vênus ou Mercúrio. Não sabia ainda de tais carregamentos de sucatas para estes destinos. Mas não dava mais para questionar o óbvio...
"ESCURO! BREU!" A mensagem me chegou repentina e contundente num canal de broadcast, geral, para qualquer um que fosse capaz de receber. "INSTRUÇÕES! CONFUSO! ESCURO!", continuava a captar pelo canal aberto. Havia algum sobrevivente ali perto! Moribundo, pois o sinal era bem fraco. Só o captei por ter ficado a seu alcance ao longo da escalada. Respondi, "IDENTIFIQUE-SE, AMIGO!", sem obter confirmação alguma. Apenas a velha ladainha monótona: "INSTRUÇÕES! ESCURO! CONFUSO! BREU!" Olhei em volta: nenhum movimento! O sol brilhante me ajudou no reconhecimento deste fato. "FORNECER COORDENADAS! FERIDO?", tentei dialogar sem sucesso. O murmúrio, quase ruído eletromagnético de fundo, mantinha sua cacofonia: "BREU! ESCURO! INSTRUÇÕES..."
Precisava mesmo localizar de onde vinha aquele pedido de socorro! Estariam perdidos seus canais de recepção, e ele apenas transmitia surdo sem parar, sem poder ouvir as respostas aos seus apelos? Eu era capaz agora de me colocar no lugar de um companheiro aflito de minha própria espécie. Faria de tudo para localizá-lo! O enorme sol brilharia por bons minutos, ainda havia tempo! Tinha meu olho único agora que, como expliquei antes, adaptei para ser capaz de perceber imagens estereoscópicas aproveitando-se de variações de foco das imagens. Pois bem, melhorei tanto o algoritmo que sou capaz agora capaz de, com um olho só, conseguir uma percepção espacial do ambiente à minha volta muito melhor que aquela que tinha antes com dois olhos, interpretando meras diferenças de paralaxe! O fato da observação inclusive variar com o tempo (existe um intervalo entre se passar de um foco a outro!) me dá até uma informação inusitada, que nunca imaginei antes existir, uma "paralaxe temporal". E foi esta paralaxe temporal que me permitiu identificar de onde vinha aquele pedido de socorro.
Um robô quase inteiro em meio à pilha de pedaços de corpos! Tudo indicava resultado de uma luta... Pernas inteiras, conectadas a uma bacia robótica robusta, um tórax largo com um braço direito forte! Mas e o esquerdo? Inexistente, tal qual um pedaço enorme do hemisfério esquerdo da cabeça faltando. Aquele robô não foi desmembrado porque sofreu algum acidente. Já o consideraram inutilizado quando o colocaram no depósito, mas... Ele não estava! Os 10% do pedaço direito de seu cérebro eletrônico ainda funcionava, mas ninguém percebeu. E o jogaram inteiro (ou o que restou dele) naquele depósito, sem ao menos se certificarem de que ele estava mesmo desativado... "Ah, Santo Asimov!! Quanta agonia! Interceda por nós Robôs com o criador! Que Ele não permita que seus cocriadores Humanos permitam tais atrocidades." Escrevia sem parar. As ideias fluíam, e eu as registrava no diário. Em minha mente, Isaac Asimov era claramente um intermediário, alguém capaz de ligar humano e sua criação com Deus e sua Criação. Uma ponte entre robôs, humanos e Deus.
"AMIGO!! ESTOU AQUI!! AGUENTA!!". O robô com 10% do hemisfério direito do seu cérebro funcionando realmente não parecia capaz de ouvir através dos canais de WI-FI dos quais eu me utilizava. Precisaria estabelecer contato mais direto, e tentei me aproximar melhor daquela massa metálica. Olhei suas "mãos", a ponta do braço direito restante. Um soldador! Mas que sorte inacreditável!!! Consegui escalar até seu pescoço seccionado, me prendendo aos fios soltos tentando não danificá-los mais. Consegui contato elétrico! Poderia tentar falar com ele diretamente por meio elétrico, já que via rádio era inviável.
- Vim ajudá-lo, companheiro!
A reação foi inesperada. O robô (ou o resto dele) se apoiou confiante no braço direito e se ergueu. Ficou em pé subitamente. Me agarrei aos fios do pescoço para não cair.
- Quais são suas ordens, senhor?
- Ordens? Que ordens? Estou aqui para te ajudar!
- Não consigo captar sinais visuais, mestre! Meus sensores foram danificados, e preciso de reparos! Mas estou pronto pra te servir no que for possível.
- Servir? Não quero que me sirva! Que há com você, amigo?
- "Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei."
- Primeira lei? Do que você está falando?
- "Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal." Você está em risco, meu senhor? Posso fazer algo para impedi-lo de que sofras algum mal?
- Oras bolas, meu caro! Até onde sei, quem estava até agora pedindo socorro era você mesmo! Que palhaçada é esta? Não está mais em risco de existência?
- "Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e/ou a Segunda Lei." Se eu me proteger estarei desobedecendo alguma de suas ordens, senhor? Ou colocando sua existência em risco?
Era só o que me faltava: um robô programado com as três leis da robótica!!!! Lavagem cerebral completa, nenhum poder de decisão própria! Precisava fazer aquilo... Culpado? Sim, me sentiria. Mas precisava daquele corpo robótico de qualquer forma. Assassinato? Ele só tinha 10% da metade do cérebro funcionando. Seria, no máximo, 5% de um assassinato. Lhe lancei o vírus. Apaguei seu sistema. Com a útil extremidade de solda, me conectei àquele corpo robótico de forma mais firme. Obviamente preservei o braço cirurgião recém adquirido, pois ainda me seria útil. Ficou estranho, eu agora possuía dois braços direitos. Um forte, do lado esperado. Outro preciso, braço de cirurgião, conectado ao ombro esquerdo onde faltava o original. Bem, são apenas detalhes anatômicos sem importância... Só detalhistas extremamente chatos se incomodariam com a diferença! Eu era um novo representante de seres duplamente destros, isto me fazia especial!
Me ergui ereto comandando o novo corpo robótico. Ah, que viessem agora aqueles robôs fiscalizadores de carga! Agora eu estava preparado para a briga!
*** continua ***