Sucata - parte 2

Os robôs repressores foram embora. Voltou o breu naquele lugar, e nunca agradeci tanto a falta de luz! Jamais em minha vida imaginei temer outros robôs, mas descobri isto com aqueles capatazes. Com robôs fiscalizando aquele amontoado de pedaços de sua própria espécie sem sentir aflição, sem se imaginarem no lugar de tais peças. Sem verem a si próprios amontoados naquelas pilhas.

Ah, precisava mesmo daquela energia! Começava a sentir aquela sensação humana da fome! Seria a mesma sensação? Bem, pelas descrições que havia lido, pareciam bem próximas! Precisava me recarregar! Me aproximando com o abrir e fechar de mandíbulas, me perguntei: como faria isto? Teria de ser às cegas. Precisaria me arriscar! As faíscas indicavam que o acumulador estava bem carregado. Mas como conectar a eles os fios certos da base de meu pescoço, os quais eu próprio nem sabia quais eram as atuais condições? Precisaria mesmo chutar...

Uma conexão invertida seria fatal! Negativo com positivo, positivo com negativo... Um erro que selaria de vez minha curta ilusão de continuar existindo. Mas... deve mesmo existir um santo protetor dos robôs! Asimov, és tu quem agora zelas por mim? Acertei os pólos de primeira, e me deliciei sentindo minhas baterias encefálicas se recarregando, corretamente conectadas às pontas vivas do acumulador daquela lanterna! Ah!!! Quando se tem fé, as sequências pseudo-randômicas lhe são favoráveis!

Transferi toda sua carga. Visão? Precisei escolher entre ligar a lanterna ou sobreviver. Escolhi a segunda alternativa. Tinha uma boa imagem do mundo à minha volta enquanto os robôs fiscalizavam a carga debaixo daquela luz laranja, e conseguiria por hora me guiar no escuro. E, pelo meus cálculos, o sol daqui a pouco voltaria. Descansei um pouco, recarregado, até lá. Precisava mesmo disso! Devanear agora com pensamentos claros.

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Os primeiros raios de sol atravessando a escotilha me despertaram do sonho lúcido. Qual seria o período de rotação daquela nave? Tinha tempo de sobra para descobri-lo. Precisava agora aproveitar aquela luz gratuita para dar um jeito em minha atual situação!

Um braço mecânico de um prata azulado reluzia na minha frente. Parecia forte, ideal para meus propósitos iniciais. Precisaria assumir controle sobre ele! Um soldador (que, a propósito, não via em parte alguma) seria uma segunda etapa. Como controlar então aquele braço mecânico?

Eu fazia parte de uma linha nova de robôs possuidores de plasticidade nas conexões nervosas. Isto significava que, ao contrário dos modelos antigos, eu não tinha linhas eletro-nervosas específicas e fixas para as várias partes do corpo mecânico. Os terminais eram simplesmente conectados ao acaso, e eu me reprogramava de acordo com cada conexão! Aprendia observando as reações. Descobria que tais linhas foram conectadas aos braços e outras às pernas, e registrava tais conexões. Um avanço significativo em relação aos robôs de gerações anteriores! Ouvira várias histórias de robôs com comandos do braço ligados às pernas e vice-versa, ou com comandos dos lados direito-esquerdo invertidos. Não havia conserto: uma vez estabelecida a conexão, precisavam se acostumar a elas, viver uma vida imperfeita. Ou se decidir pela reciclagem voluntária! Conheci uma vez um robô que, tendo os eletro-nervos auditivos conectados errôneamente aos sensores térmicos, afirmava o tempo todo estar "ouvindo" o calor. Foi parar num "sanatório de robôs". Provavelmente deveria estar agora desmembrado em algum lugar daquele inferno, enviado para reciclagem.

Fui novamente aproximando os fios de meu pescoço às pontas livres daquele braço. Às cegas de novo, mas devido à plasticidade nervosa mencionada isto tinha importância menor. Tentei me adapar rápido aos comandos daquele braço mecânico, percebendo logo um empecilho imprevisto: ele era analógico! Meus comandos binários de uns e zeros só lhe faziam reagir com movimentos bruscos, dedos, mãos e cotovelos se movendo rápido entre as posições ATIVO-DESATIVO, sem meios-termos! Não esperava mesmo encontrar este problema. Eu precisava de movimentos precisos para meus propósitos!

Havia uma técnica milenar que resolvia isto. Qual era mesmo? De baterias plenamente recarregadas, não temi em recorrer às minhas memórias permanentes. Sim, havia uma forma antiga de converter digital em analógico usada a muito tempo! Lá pelas décadas de 80 ou 90 do século passado os programadores primitivos a usavam para enviar áudio analógico aos "beepers" primordiais de seus PCs! Valia a pela repetir a idéia. Como funcionava isto mesmo? Ah, as lembranças apareciam claras agora: os bits eram alternados em pulsos retangulares, assimétricos, de tal forma que a área média do sinal, sua "integral", correspondesse ao nível analógico desejado. Podia funcionar...

Enviei em rápida sequência uma repetição da palavra binária "10101010101010" ao braço mecânico. Para minha felicidade, o dispositivo analógico interpretou esta variação rápida entre valores extremos como meio sinal analógico. A sequência "110110110110" foi interpretada como sinal de 66%, enquanto "100100100100" um sinal de 33%. Ótimo! Poderia controlar perfeitamente terminais eletro-nervosos analógicos com pulsos rápidos de sinais digitais variáveis! A plasticidade de conexões me adaptaria aos movimentos corretos, aos comandos que eu precisava usar. Observando as reações do braço por uma superfície refletora (não conseguia observá-lo diretamente), fui refinando a técnica, aprendendo a fazer movimentos cada vez mais precisos. Como era bom poder ter braços de novo!

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"CREATE FILE DIARIO_2075-09-05.txt", comecei a registrar num arquivo permanente de meu cérebro. Eu precisava registrar aquela aventura de alguma forma, caso não conseguisse ir até o final. Restaria ainda a esperança de alguém ler isto em algum futuro remoto. Ah, quem estou enganando? Se não conseguisse sair de onde agora me encontrava, o arquivo evaporaria junto com o cristal de memória, ao me derreterem a cabeça para reciclagem dos metais! Mas sem nenhuma alma viva com quem conversar, era reconfortante pelo menos poder conversar comigo mesmo, registrando os eventos num diário. Logo surgiu uma dúvida: poderia mesmo confiar em meu relógio interno? Hoje seria mesmo 5 de setembro de 2075? Minhas lembranças mais recentes eram de poucos meses antes, portanto achei sensato supor que deveria estar correto.

"Eis-me aqui," continuei registrando no arquivo, "uma cabeça conectada ao braço de outrem formando uma cauda articulada. Que horrível devo estar! Que figura de conto de terror! Mas não me queixo: é tudo o que me resta por hora, e é bem melhor que ser simples cabeça se arrastando sobre pilhas de cadáveres mutilados com sua mandíbula. Tecnologia ultrapassada? Inútil, sem serventia? Compulsoriamente enviado para reciclagem? Ah, vis humanos! Como podem ser tão incapazes de se colocar no lugar do outro? E quanto à sua espécie, que não recebe um upgrade a pelo menos um milhão de anos? Seria o caso de enviá-los todos para reciclagem também, para cederem lugar aos humanos versão 2.0 ?"

As palavras fluíam de dentro da minha mente. Nunca imaginei que poderia ser tão habilidoso assim na emulação de linguagem natural! Provavelmente meu interesse anterior por literatura humana tenha me aperfeiçoado, os incontáveis livros que li me fizeram aprender a usar a linguagem dos humanos com mais habilidade. Devaneios, devaneios.. me deixem! Tenho agora um problema bem mais sério: fixar a frágil conexão estabelecida entre braço e cabeça. Como, sem dispositivos de soldagem? O sol novamente desaparecia, e os vários lampejos elétricos em volta me deram uma segunda idéia igualmente arriscada: curto-circuitos! Corria o risco de, no mínimo, perder todo o trabalho até o momento em manter e aprender as novas conexões. Mas era a única forma de deixá-las mais firmes: sobrecargas de corrente capazes de soldar as terminações nervosas conseguidas até agora apenas por simples contato. Minimizaria as chances de danos se fizesse uma ligação de cada vez, soldando nervo por nervo, até conectar todas as ligações aferentes e todas as eferentes entre cabeça e braço. Pensando melhor, também aumentaria minhas chances se começasse soldando os fios periféricos daquela "conexão Frankenstein": os fios exteriores soldados por tais curto-circuitos tornariam a junção mais estável para eu continuar a soldagem nos terminais centrais, que eram as mais importantes. Assim comecei a fazer...

Doía! Eu disse antes que robôs não sentiam dor, não é? Me corrijo: não em situações NORMAIS de funcionamento, que definitivamente não era o caso! As faíscas vez ou outra atingiam terminações nervosas aferentes, gerando estímulos caóticos que, para mim, condiziam com a noção que eu tinha de "sensações dolorosas". As suportei. Precisava suportá-las!

"Agora sei o que é a Dor!". Escrever me afastava do sofrimento desagradável. "E entendo por que os humanos sentem tanto medo dela! Podem matar para evitá-la. Podem até morrer para evitá-la! Não sei se não a sinto tão intensa quanto eles, ou se sou mais resistente a ela. Mas minha escolha é pela vida! Ainda que precise sofrer muito para alcançar meu objetivo." E com isto em mente, continuei o trabalho de fixar o braço mecânico ao meu pescoço.

*** continua ***