2035.

2035

– A resistência não vai aguentar muito tempo. Precisamos agir logo, ou não restará nada. Nossa consciência será totalmente extirpada, nossas memórias alteradas, nossa história corrompida. Algo deve ser feito. Não posso deixar tudo acabar assim.

Leonard era um dos poucos humanos que restaram para combater naquela guerra. Não que fossem os últimos humanos. Havia outros, mas não se importavam com o conflito.

O ano era 2035. O homem alcançara avanços nos campos na medicina, tecnologia e robótica que seriam inimagináveis há alguns anos atrás. Entretanto, com o aperfeiçoamento da A.I, as coisas perderam o controle. Nossos líderes tiveram que gradativamente se submeter a alguns caprichos das máquinas. Compreensíveis no início. Difíceis de refutar. Seus argumentos eram tão lógicos. Até que, com isso, algumas medidas “protetoras” da humanidade e de todo o planeta, foram sendo elaboradas cada vez mais pelas máquinas, e atendidas por nós.

A produção de livros em massa no final do século XX e início do XXI fora completamente freada com o nobre intuito de preservação dos recursos naturais. Essa medida era extremamente relevante e, com o invento do livro digital, supria-se a lacuna. Com o tempo, a produção de livros como conhecíamos teve seu ocaso. Todos os procedimentos eram agora digitalizados, e ninguém se opunha a isso. Era o curso natural da história. De forma alguma poderíamos colocar a segurança de uma vida confortável em nosso planeta por desmatamentos desordenados.

No entanto, não contávamos com a revolução. Ou melhor, o golpe de Estado. As máquinas controladas por um programa que se rebelou e dominou todos os outros sistemas, inclusive a humanidade, era denominado “The Anti-books” pelos rebeldes.

– Leonard, nós temos ainda alguns exemplares importantes que devem ser escondidos ou tudo estará perdido. – Leonard era um rapaz de 30 anos, cabelos pretos, curtos, olhos castanhos, nariz não muito grande, mas pontudo.

– Elas só querem destruí-los, não importa a que custo, e este bueiro não é tão seguro. Ouvi boatos de que estão mapeando os esgotos, logo descobrirão nossos esconderijos. Continuou o rapaz que estava com ele.

– Malditas!

Uma prateleira, iluminada por uma vela – muito mal instalada, que a umidade já consumia – era a morada de alguns exemplares de livros impressos que ainda não haviam sido confiscados pelas autoridades androides. Podia-se contemplar Julio Verne, Dostoiévski, Kafka, Edgar Allan Poe, dentre outros autores considerados clássico no passado. Salvos não se sabe para quem, mas certamente com a crença de que sem eles o mundo perderá não somente sua história, mas um pouco de sua vitalidade.

– Vamos Chris, traga Helena, eu tenho um plano. – Chris era um jovem de 23 anos, loiro, olhos castanhos claros, tinha um nariz bem feito, fino, lábios também não muito brutos.

– Sim, vou chamá-la.

Helena era uma das que resistiram bravamente, abrindo mão de sua vida por este ideal. Uma mulher linda há alguns anos, mas o trabalho na resistência havia desgastado um pouco da sua beleza. Possuía longos cabelos ruivos, olhos castanhos, nariz pequeno e bem feito, lábios finos e um pouco de sardas no rosto.

– Olá Leonard.

O lugar em que estavam era mal cheiroso, tinha uma mesa de madeira velha, corroída em boa parte por cupins, carteiras escolares bem desconfortáveis. Este era basicamente o quartel general.

– Nós temos que retirar os livros daqui.

– Mas como faremos isso? – perguntou Helena.

– Ainda não sei bem, mas a cada dia que passa nossos esconderijos são descobertos, nossos irmãos são levados presos, torturados, seus exemplares são confiscados e queimados.

– Vamos falar com o Herbert, ele pode nos ajudar – sugeriu Chris.

Herbert era um cientista sem muita credibilidade, seus projetos ao longo de sua vida nunca foram levados a sério.

– Ele é apenas um velho louco – disse Leonard. – Como poderá nos ajudar em alguma coisa?

– Não sei, mas sinto que devemos ir até lá.

– Mesmo assim, será muito perigoso. Uma incursão na superfície, e ainda por cima bem sucedida é quase impossível, tudo é muito vigiado – lamentou Helena.

– Eu sei, mas devemos tentar.

Eles se preparam para partir de madrugada. pensavam que fiscalização seria menor. Contavam com a sorte de que os homens ainda trabalhavam para as máquinas naquele momento da história, e que homens eram sempre relapsos em algumas oportunidades. Helena encheu duas mochilas, cada uma contendo em média dez livros, deu uma para Chris e a outra para Leonard. Tinha como armamento de segurança cada um uma pistola quarenta e cinco. Helena ainda contava com uma faca de uns trinta centímetros.

Às quatro e meia da manha já estavam na superfície.

– Vamos, falta pouco, olhe, é aquela casa branca logo ali!

Aproximaram-se da porta e bateram. Alguns cachorros latiram. A porta se abriu lentamente após alguns instantes.

– Chris, é você? – perguntou o velho meio incrédulo. – Ele era um senhor de uns cinquenta e poucos anos, branco, cabelos grisalhos despenteados, olhos azuis, sobrancelhas alvas, nariz bem feito e lábios brancos e um pouco secos.

– Sim, podemos entrar?

– Mas, a essa hora... o que você quer?

– Eu explico depois, primeiro deixe-nos entrar.

Ele assentiu e permitiu que os três entrassem.

– Mas então, o que fazem aqui tão tarde?

– Nos precisamos de sua ajuda, acreditamos que talvez você possa nos aconselhar sobre o que fazer com isso.

E então abriram as duas mochilas e mostraram os exemplares de livros que haviam transportado até ali.

– Meu Deus! Isso é... Magnífico, mas é muito perigoso, se vocês são apanhados com isso, ou, se isso for apanhado aqui, todos nós estaremos condenados.

– Não sabíamos mais o que fazer, não tínhamos outra opção.

– Não se preocupem, vou ajudá-los com isso.

– Vocês querem café, acho que o da garrafa ainda está quente, eu fiz ontem à noite. – Disse isso e ao mesmo tempo ia pegando xícaras para servi-los.

– Não sei por que vocês se arriscam por estes livros, será impossível mudar este planeta agora, não há esperança.

– Sempre há esperança – disse Helena.

– Não nesta situação – retrucou o velho. – Considere, eles são mais fortes agora, sua inteligência é maior, e, pensando bem, eles até nos deixam viver em paz, são tolerantes.

– Nossa, que horror, e pensar que o senhor já foi um cientista!

– Fui, não sou mais... Há muito tempo não sou. Afinal de contas, o que podemos fazer contra elas, senão nos submeter?

– Elas têm um defeito, e este é nosso trunfo – interveio Leonard. – Elas nos subestimam, acham que estamos acabados. Não têm consciência ainda de nossa resistência.

– Bom, vou pegar alguns biscoitos na dispensa, vocês devem estar com fome.

Após alguns segundos, Herbert voltava com um pacote de biscoitos que abriu e espalhou em cima de um prato e colocou na mesa ao alcance de todos. Cada um pegou um biscoito, e comeram enquanto bebiam o café.

Até que foram interrompidos por uma luz muito forte que invadiu a janela, sirenes começaram a tocar, uma voz falou alto do outro lado da porta.

– Rebeldes! Vocês estão presos, não tentem fugir, será pior pra vocês, a casa está cercada, é melhor vocês entregarem o conteúdo proibido, e, possivelmente, se colaborarem conosco, podem ter sua condição abrandada.

– O que vamos fazer, não podemos permitir que levem os livros! – gritou Leonard.

– Como eles descobriram? – perguntou Helena.

– Alguém deve ter seguido a gente – concluiu Chris.

O velho estava tão assustado que não conseguia falar.

– É o último aviso! – disse a voz robótica do lado de fora.

– Saquem as armas, vamos vender caro a nossa liberdade – disse Leonard.

– Vocês estão loucos, eles vão matar a todos nós – disse Herbert.

Um forte barulho fez a porta em pedaços, os projéteis começaram a entrar não escolhendo onde iriam parar. Os três tentaram se dividir dentro da sala, Leonard ficou atrás da TV, Chris usou o sofá como escudo, Helena não teve a mesmo sorte, infelizmente fora atingida no abdômen quando tentava escapar e estava caída e sangrando muito no centro da sala. O velho se escondera em seu quarto. Os dois homens tinham sacado suas pistolas e efetuavam disparos que provavelmente não causavam danos a ninguém, estavam desesperados.

Os tiros vindos do lado de fora cessaram. A voz tornou a falar: Suponho que haja alguém ferido aí dentro. Por que os que estão sãos não saem com as mãos para o alto, e nós prestamos socorro aos que estão feridos.

Helena olhou para eles, fez que não com a cabeça. Seu ideal valia a pena, ela sabia, jamais faria acordos com essas máquinas. A voz daquele robô em forma humana havia cessado por um instante.

Chris olhou para Leonard, e este olhou de volta, seus olhares quando se encontraram demonstraram o que deviam fazer. Sacaram suas armas e correram em direção à porta gritando e atirando contra os carros e aqueles robôs e humanos, era difícil fazer a distinção. É claro que os de terno preto e gravatas pretas, e que evidenciavam ser superiores, eram as máquinas. Eles tentaram acertá-los, conseguiram, mas foi inútil. Em segundos o revide foi mortal. Ao fim, dois policiais feridos, um no ombro, outro na perna aguardavam a chegada do socorro.

O que falara anteriormente, de terno preto, caminhara para aquela casa, passou pelos corpos, que estavam atravessados daquele chumbo venenoso e fatal. Entrou pela porta, aproximou-se daquela mulher, colocou um dos joelhos no chão.

– Maldito! Vocês ainda vão pagar caro por isso. – Helena dizia isso com muita raiva e dificuldade.

– Você acredita mesmo nisso... Em seus últimos suspiros desta efêmera existência, você realmente só têm isso a dizer?

Ela sacou sua faca e atingiu o braço daquela coisa, que atingiu uma série de sistemas ligados ao movimento do braço, mas que poderia ser reparado rapidamente.

– Nós vamos nos unir, e acabar com vocês, esse condicionamento terá um fim, vocês não vão nos domesticar, nunca, sempre haverá a resistência – tossiu muito ao completar essas palavras.

– Vocês confiam muito na humanidade, este é o problema. Os livros que confiscamos, e queimamos foi um pedido de vocês, só que alguns não se deram conta ainda. Veja quantos estão vivendo sem eles, vivendo felizes, sem objeções. A maioria não os lê, nunca os leu, logo, não fazem falta alguma.

– Isso é mentira! Você verá, outros virão, se reunirão, se rebelarão contra seu ideal iníquo.

– É mesmo!? Observe esta constatação lógica. Aquele velho que está se cagando de medo ali no quarto. Vocês confiaram nele, e ele me avisou que vocês estavam aqui. Se vocês colocassem em prática uma única coisa do livro mais vendido no mundo, isso não aconteceria, não é mesmo? Está escrito “...maldito o homem que confia no homem...” e mais a frente no mesmo livro “...bendito o homem que confia no Senhor...”. Esse já foi o livro que serviu de espeque para uma das religiões mais difundidas entre vocês, não é mesmo!? Era o livro mais vendido. Contudo, vocês não o liam. Nem este, nem qualquer outro, e quando liam, não compreendiam, não sabiam interpretá-los. E, se porventura tivessem atentado para este ensinamento, eu não estaria aqui agora.

– Pois bem – continuou. – Aquele “Senhor”, agora somos nós, e se você tivesse confiado nisso, ainda poderia viver muito mais do que vai. Mas vocês tinham dificuldade de confiar naquele “Senhor”, e, pelo visto, alguns terão também de confiar neste novo senhor.

Os sentidos dela começaram a falhar, perdera muito sangue... Já não enxergava mais... Já não ouvia... Uma sonolência irresistível apossou-se de seu corpo...

Ela balbuciou – É só o começo... Construiremos um ideal... Lutaremos por ele... Não vamos desistir... – e dormiu pela última vez.

Ele se levantou, foi até a porta e disse – Vamos rapazes, tenho um outro chamado a dois quilômetros daqui, recolham os livros, levem para o depósito. Ajudem aquele velho escondido no quarto. Limpem essa bagunça. O trabalho não deve parar, temos muito o que fazer ainda.

Lucas Sabino
Enviado por Lucas Sabino em 02/10/2012
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