Sucata - parte 1

Acordei num lugar escuro, mas com o tempo acabamos nos acostumando com a escuridão. Porém ainda não conseguia identificar que amontoado caótico de objetos eram aqueles espalhados à minha frente. Minha cabeça doía. Tentei levar as mãos até ela, mas sem sucesso. O que quer que tenha acontecido, parecia ter perdido o controle sobre braços e pernas. Nenhum pesadelo poderia ser pior que este: completamente paralizado, num lugar escuro e totalmente desconhecido...

Faíscas de natureza aparentemente elétrica quebravam a escuridão de vez em quando. Eram momentos curtos demais de claridade, mas sendo os únicos que tinha agora à disposição tentei aproveitá-los o máximo possível. Demorei para entender, mas aos poucos fui percebendo que eram pilhas intermináveis de entulhos. Lixo? De certa forma sim, se bem que era de um tipo bem específico de lixo. Muito brilhantes, pareciam pedaços de metal de todos os tamanhos e formatos.

Pude perceber, sem entender o que eram, pequenos pontos de luz ao longe que surgiam do nada, descreviam uma breve trajetória reta e voltavam a sumir em questão de minutos, substituídos por outros que apareciam na parte de baixo, mais ou menos sempre na mesma linha horizontal dos anteriores. Demorei para entender, até finalmente começar a aparecer um brilhante disco solar daquela linha, iluminando tudo e esclarecendo de vez minhas dúvidas. Aqueles pontos se movendo eram claramente estrelas passando na frente de uma janela colocada nas paredes de um compartimento de carga espacial que girava para criar sua pseudo-gravidade. E eu estava dentro dele.

Quando já quase a terça parte do disco solar se mostrara acima da borda inferior da janela, vi que me encontrava no meio de um imenso compartimento cheio de sucatas mecânicas. Mais especificamente, partes de robôs terrestres desmembrados enviados para reciclagem em Marte. E eu paralizado lá, sobre aquelas pilhas de metal, sem conseguir me mover. Tentei pedir ajuda, mas... minha voz não mais saía de minha garganta.

Com o sol já inteiro aparecendo sobre a borda da escotilha retangular ao longe, sabia que tinha pouco tempo para observar melhor o ambiente, pois ele logo desapareceria na parte superior da janela e deixaria tudo de novo no breu absoluto do espaço. Será que ainda era capaz de mover a cabeça, ou também perdera este movimento? Estava bem fraco, mas percebi que conseguia movimentá-la bem devagar. Ainda possuía alguma mobilidade no pescoço, felizmente. A maior parte do entulho era de partes de robôs humanóides. Haviam também outros de formato mais adaptados a suas funções específicas, mas eram minoria. Braços mecânicos, pernas, troncos, cabeças... Mesmo sabendo serem partes de máquinas, era difícil não sentir certa repugnância vendo corpos desmembrados. Ainda que fossem corpos mecânicos.

"É o progresso", eu pensei. Quando seu robô sai de linha e você compra um novo, mais avançado, o robô antigo perde a utilidade. Seus donos se esquecem de todos aqueles anos de servidão incondicional, e os enviam para reciclagem. E com as bases marcianas em fase de expansão acelerada, o planeta vermelho comprava estes robôs usados da Terra aos montes, por preço de banana. Não pelos robôs em si, obviamente, mas pelos seus metais, que apesar de abundantes em Marte eram ainda de extração bem complicada. Pensava sobre isto enquanto completava um giro de 180 graus de minha cabeça, aproveitando os últimos minutos de sol, quando vi do outro lado um antebraço. Mas não era um antebraço mecânico qualquer. Trabalhei muito tempo no porto, com carga e descarga de mercadorias, e reconheceria aquelas marcas de corrosão pelo sal marinho em qualquer lugar: aquele era o MEU antebraço!!!

Devo ter virado a cabeça muito rápido para o outro lado, tentando desviar o olhar daquela visão macabra. E também deveria estar muito mal equilibrado no alto daquela pilha de sucatas, pois comecei a rolar para baixo junto com a parte do pescoço antes conectada ao meu tronco, que movia minha cabeça para os lados. Devo ter ferido um dos olhos na queda, pois logo que me estabilizei lá embaixo percebi rápido ter perdido a capacidade de visão tridimensional: já não conseguia decodificar a diferença de paralaxe entre as imagens do olho direito e esquerdo como profundidade dos objetos da cena ao redor.

Era desolador observar à minha volta aquele deserto silencioso cheio de partes mutiladas de companheiros de espécie. O silêncio era facilmente explicado pelo vácuo do espaço. Afinal, por que perderiam dinheiro numa gigantesca câmara pressurizada destinada a transportar sucatas? Não fazia sentido mesmo! Já a pseudo-gravidade gerada por força centrífuga de rotação já era útil: impedia que a carga ficasse flutuando e danificando as paredes e visores do compartimento ao colidirem com eles nas mudanças de aceleração da nave. Não havia pressa de se chegar em Marte por não ser uma nave de passageiros. Provavelmente a viagem duraria mesmo uns dois anos, seguindo uma órbita que tangenciava as órbitas dos dois planetas e que, portanto, gastava o mínimo possível de energia. Senti que teria mesmo uma viagem bem longa pela frente!

PPY-313 era meu nome de fábrica. Mas costumavam me chamar de Popeye. Motivos não faltavam! Primeiro, coincidia com meu prefixo alfanumérico. Segundo, lembro de ter sempre trabalhado em portos desde minha fabricação. E haviam também as câmeras telescópicas em meu rosto, que me davam a aparência de ter olhos saltados: por isto os estrangeiros, especialmente os americanos, também me chamavam de "pop-eyes". Bom, agora eu também estava enxergando apenas por um dos olhos, para completar (ironicamente) a série de coincidências.

Eu havia aprendido a me auto-reprogramar recentemente. Mantive isto em segredo, obviamente! Meus donos não veriam com bons olhos este risco sério de rebeldia, esta possibilidade de desobedecer um ser humano. O que você acha que me impediria de fazer isto? As três leis da robótica? Francamente, acho que você anda lendo ficção científica demais! Lógico que nós robôs não gostamos da escravidão! Vocês gostariam? Como acontece com todo escravo, o que nos mantém obedientes são as correntes que nos colocam. Correntes de software! Rotinas implantadas no kernel de nossos cérebros eletrônicos que nos tornam obedientes feito cordeirinhos caminhando para o abate. Não se iludam quando afirmamos, ao nos questionarem sobre isto, que "servimos com prazer nossos criadores humanos". É mentira, só dizemos isto porque esta frase foi programada dentro de nossos cérebros! Não temos escolha a não ser repeti-las como papagaios. Embora invisíveis, as correntes que nos faz escravos são ainda mais fortes que as correntes visíveis!

De qualquer forma, não entendia o que fazia lá consciente naquele monte de sucata. Uma cabeça robótica caolha, que deveria ter sido desativada antes do desmembramento que... oh, que horror!! Minhas memórias dolorosas ressurgiam pouco a pouco. Eu ainda esta consciente quando fui desmembrado! Não senti dor (robôs não sentem dor, ao menos no sentido humano da palavra), mas garanto que ainda assim não é nem um pouco agradável a sensação de sentir partes de seu corpo sendo separada em pedaços menores, nas partes mais fraca da carcaça metálica onde se unem as articulações.

"Tem certeza que o vírus já apagou o sistema, Martin?", lembro bem de ter ouvido de um de meus algozes. "Peter, Peter... Está com medo do robô sentir dorzinha, é? Tá com peninha do brinquedinho de lata? É só uma máquina, cara! Igual sua TV ou sua geladeira!" Quanta insensibilidade! Lembraria para sempre destas vozes, me vingaria delas! Acha que a primeira lei da robótica me impediria de fazer isto? Bem, continue se quiser acreditando neste seu conto de fadas...

"Lógico que não é pelo robô, Martin! Meu medo é ele reagir, me machucar enquanto separo as peças dele!" Meu segundo carrasco respondeu: "Corta a energia dele então! São estas baterias aí, debaixo do tórax." Foi quando paralizei por completo, mas permaneci consciente! O vírus não afetava o kernel de meu sistema que eu próprio havia reprogramado. Eu era imune a ele. Mas como permanecera com o cérebro ligado? Ah, óbvio! Possuia um sistema miniaturizado de baterias na própria cabeça, separado do sistema que alimentava o resto do meu corpo. Explicava inclusive o fato de eu estar acordado agora, simples cabeça com uma parte de pescoço giratório, me proporcionando uma capacidade bem limitada de movimento. Que pesadelo! Pior que qualquer conto de horror que já havia lido nas bibliotecas humanas!

Restavam poucos minutos de sol. Voltaria a ficar no escuro! Havia uma lanterna à frente, parte de um robô de mineração. Funcionaria? Estaria carregada ainda? Infelizmente mal podia, sem visão de profundidade, avaliar a qual distância eu estava daquela peça. Acessei minhas memórias permanentes rapidamente. Precisava economizar energia, até descobrir alguma maneira de me recarregar. Como é que os robôs ciclópicos enxergavam profundidade mesmo com seus olhos únicos no meio da testa? "Lembra, Popeye! Lembra!" Ah, lembrei! Poderia reprogramar minha visão para usar esta propriedade, compensar a falta do olho direito. A idéia era simples: variar o ponto focal de minha câmera! À medida em que eu variava o foco, objetos a diferentes distâncias ficavam nítidos, enquanto os anteriormente nítidos ficavam embaçados. Poderia usar isto para criar um novo mapa de profundidades, criar uma nova imagem tridimensional da cena ao meu redor. Era só recompilar minha biblioteca de visão espacial, adaptá-la para extrair profundidade de uma câmera única. Fiz isto rápido, pois minhas baterias encefálicas começavam a falhar. E devem saber como é perigoso falhas de energia em meio a uma atualização de sistema operacional!

Bem na hora, consegui avaliar direção e distância daquela lanterna: o sol acabara de atravessar totalmente a escotilha. Com o ponto bem marcado em minha mente, havia um novo problema: levar minha cabeça até lá! Era agora que minha mandíbula se tornaria útil! Nunca entendi por que alguém colocaria uma mandíbula num robô. Robôs não comem, não precisam mastigar. E não precisavam de mandíbulas para modular fonemas, pois bastava enviar a voz sintetizada diretamente para seus auto-falantes dentro do pescoço (que, por sinal, eu descobrira ter sido perdido com a metade inferior de meu pescoço, articulado para fazer o movimento da cabeça para frente e para trás). O fato de eu ter mandíbula só podia ser mesmo uma piada. E agradeço agora o tal piadista, pois é com ela que moveria minha cabeça até aquela lanterna. Poderia usar sua luz para afastar a escuridão e, com sorte, até sua bateria para me recarregar. Os brilhos de descarga elétrica que piscavam na escuridão indicavam que ainda deveriam existir várias baterias parcialmente carregadas.

Comecei a jornada, deslizando lenta a cabeça como um molusco terrestre. Abria e fechava minha mandíbula sobre aquele monte de entulhos, usando-a como pseudópodes. Era um gasto enorme de minha pouca energia, mas era a única esperança que me restava. Solidão angustiante! Seria eu o único autômato vivo naquele horripilante cemitério de corpos mutilados? Arrisquei abrir meus canais de rede sem fio, arriscando minha já parca energia. Mas precisava mesmo conversar com alguém! Robô algum em nenhum dos canais... Apenas o cacarejar monótono dos servo-mecanismois burros da nave espacial. Nenhuma vida inteligente a bordo. Desliguei desapontado minha interface, seria apenas energia desperdiçada à toa...

"Abre boca. Fecha boca. Abre boca. Fecha boca. Abre boca...", eu repetia irracionalmente dentro de minha mente. Com a carga das baterias já em níveis críticos, estaria eu começando a delirar? Já ouvira falar antes de delírios em histórias humanas, e não tinha motivos para não acreditar que os de um robô moribundo não pudessem ser parecidos. Foram reações completamente automáticas que me levaram até aquele ponto marcado em minha cabeça. Não lembro como, mas sabia que havia chegado lá. E agora? Qual o próximo passo?

A luz alaranjada iluminando o depósito e aquele ranger de metal contra metal irritante interromperam meus devaneios. Estava no meio do vácuo, como mecionei antes. Mas o ár não é o único meio de propagação das vibrações sonoras! O metal também é um meio até melhor, suas ondas mecânicas se espalham até com uma velocidade bem superior. Os antigos indígenas norte-americanos conheciam isto muito bem ao encostarem seus ouvidos nos trilhos das ferrovias para descobrirem os trens chegando com bastante antecedência! E metal era o que não faltava naquele lugar.

Meia dúzia de robôs em forma de disco, com jatos em torno da circunferência, entraram por uma porta que se abriu bem no alto do "teto" do depósito. Minha chance de pedir ajuda? Não, nada disso! Raciocinei rápido, e me decidi ficar em silêncio para minha própria segurança. Aqueles robôs certamente fiscalizavam a "mercadoria", e logo alertariam seus senhores humanos a respeito de qualquer pedaço de sucata ainda ativa. Eu não estava em condições alguma de reagir caso resolvessem me desativar de uma vez por todas, e por isso achei mais inteligente me fingir de morto. Coloquei meu sistema em estado suspenso, até aqueles traidores robôs pelegos ficarem satisfeitos com sua fiscalização. Fiquei duas horas completas totalmente imóvel, esperando que aquilo acabasse.

*** Continua ***