Expresso Transcroniano - Parte 5
*** Clandestinos ***
"Estação 19-50! Senhores passageiros, faremos uma pausa de 3 horas para carga e descarga de mercadorias. Aqueles que desejarem sair do trem neste período, favor não esquecerem de levar o canhoto do bilhete para o reembarque..."
Era o melhor momento! Toda aquela confusão de gente entrando e saindo, falatório, movimento... era o momento dele deslizar invisível para dentro de um dos vagões de carga! Não havia como ele conseguir uma passagem de passageiro comum. Precisaria explicar o motivo da viagem, seu nome, sua época natal... e era aí que estava o problema! A princípio considerariam piada verem diante deles um passageiro tão antigo. Tentariam comprovar, só de pirraça. E comprovariam! DNA nunca mente, por mais que se passem as eras! A degradação dos telômeros cromossômicos é passada de geração em geração, e não haveria dificuldade alguma em identificar sua época natal! E, comprovado, lhe barrariam a entrada! Seu embarque representava uma alteração histórica muito mais profunda do que qualquer controlador temporal seria capaz de aprovar! O próprio fato dele já ter chegado tão longe demonstrava uma falha grave no sistema de controle! Muito mais seu reembarque voltando ao passado... Era por isso mesmo que precisava reembarcar oculto, como clandestino.
Sempre se criava um comércio intenso entre as épocas pelas quais o Expresso Transcroniano fincava estações de parada. Nada mais racional: você tem um recurso abundante numa época, e outro recurso escasso, e descobre que em outra época a situação se inverte, com o recurso escasso se tornando abundante e o abundante se tornando escasso. Nada mais inteligente que trocar um pelo outro numa transação intertemporal! Faltava petróleo no século 22 para confecção de produtos plásticos (o petróleo sintético ainda era caro, e de qualidade inferior), produto que ainda abundava nos anos 50. Ao mesmo tempo, era difícil conseguir plutônio nos anos 50 para as emergentes usinas termonucleares, elemento que sobrava no século 22 como resíduo incoveniente dos propulsores iônicos metálicos. Lixo da propulsão, em resumo. Por quê não trocá-los?
Obviamente ele evitou vagões com estas cargas mais perigosas, e se acomodou invisível num vagão carregado de alimentos. Santa fórmula de invisibilidade! Ele a conseguiu de um passageiro futuro chamado... como era mesmo o nome dele? "Alguma coisa" Wells?? Devia ser isto mesmo... Pena que durava pouco seu efeito. Mas, acomodado no vagão de carga que era agora fechado por fora, percebeu que havia durado tempo suficiente. Com a palma da mão aberta defronte seus olhos, percebeu que começava aos poucos a se tornar visível de novo. Bem na hora!!! E, clandestino num vagão transportando alimentos, comida era o que não lhe faltaria até o final da viagem!
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Naquele hotel barato do começo dos anos 50 ele se entretia com o novo robô. Programável? De certa forma sim, visto que a simples troca de seus discos centrais, com desenhos diferentes em suas ranhuras, modificavam a trajetória do autômato. Solução simples mas engenhosa: a linha gravada nos discos metálicos faziam variar as rodas direcionais do robô à medida em que o disco girava, e isto permitia alterar a trajetória seguida pelo robô bastando simplesmente trocar seu disco com outro de instruções diferentes, gravadas em forma de uma curva em torno do centro do círculo. Era difícil criar trajetórias fechadas, de forma que o robô acabasse voltando na posição inicial depois que o disco completasse uma volta completa no sentido anti-horário, mas ele estava chegando perto de resolver também isso. Sentia que o problema tinha algo a ver com a área entre esta linha e o círculo médio do disco, correspondente ao comando de "seguir em frente" do robô. Mas resolver este problema envolvia solucionar equações a nível infinitesimal, algo que estava além de seu alcance ainda. Felizmente o amigo, que saíra a pouco mais de uma hora, disse estar trazendo um conhecido que começava a estudar exatamente este problema de área calculada pelos tais "infinitesimais", seja lá o que isto significasse.
Leonardo adoraria sair e explorar aquele mundo novo à sua volta, mas o amigo Galileu recomendou que não o fizesse. Seria choque demais para uma primeira viagem! Era sempre uma péssima idéia se aventurar desacompanhado pelo mundo do futuro. Inicialmente tentou continuar trabalhando no quadro novo, tentando se entender com uma tinta de um material futuro conhecido naquele tempo como "acrílico". Não gostou muito do efeito, e foi o que o levou a voltar sua atenção para o robô, em criar discos novos com novos comandos para sua trajetória.
Sabia que não deveria estar lá. E muito menos seu amigo Galileu! "Oficialmente" ainda não haviam estações transcronianas em suas épocas. Galileu as teria conhecido através do amigo Isaac, e por sua vez Leonardo ficaria conhecendo a existência de tal conexão através de Galileu.
- Leo??? - era Galileu à porta do quarto. - Podemos entrar? Eu trouxe o Isaac comigo.
- A porta está aberta, amigo!
Amigo? Era um sentimento muito maior que "amigo" que Leonardo sentia pelo velho de longas barbas brancas chamado "Galileu". Barbas brancas o excitavam tanto quanto jovens imberbes! Mas isto deveria continuar sendo platônico, se ele não quisesse constranger o amigo do século seguinte. Além disso, ele já enfrentara problemas demais com esta sua opção sexual antes... E o fato de ver agora que nada mudara no futuro (em alguns aspectos, até havia piorado!) só o tornava ainda mais cauteloso.
O velho Galileu Galiei entrou com um baixinho, que foi logo apresentando:
- Leonardo, este aqui é Isaac Newton, um grande estudioso das ciências físicas e matemáticas do século XVII!
O casaco era vermelho. As calças eram vermelhas. Seus sapatos eram vermelhos. Pelo jeito, ele devia gostar muito de vermelho. Isaac logo se animou vendo o robô de Leonardo descrevendo trajetórias precisas no chão. Só não se animou mais porque o robô não era vermelho.
- Ah! Vejo que seu amigo se interessa por autômatos mecânicos!!!
- Entre outras coisas, como pintura, anatomia, arquitetura... - completou, erguendo a mão para cumprimentá-lo, logo aceita por Isaac.
- Me permite? - perguntou Newton, erguendo do chão a pequena tartaruga mecânica movida a cordas espirais. - Ah, são as linhas deste discos que dirigem a direção de seu movimento, não é? Interessante... Bem engenhoso, meu caro... Leonardo, não é?
- Leonardo di Ser Piero da Vinci! Mas pode me chamar só de Leo, se lhe convém.
- Certo, Leo! Por favor, me chame de New também!
Leonardo pôde perceber a genialidade detrás daques olhos aparentemente insignificantes para a pessoa comum.
- Esse disco direcional... a distância entre ele e o círculo médio tem a ver com a variação tangencial da trajetória que ele segue naquele instante, não é? Preciso analizar com mais cuidado o problema, Leonardo, mas a princípio me parece que uma trajetória fechada poderia ser obtida se a área da curva exterior ao círculo médio fosse igual à área da curva interna. Hmmm, acho que não... Precisaria fazer umas conversões de coordenadas polares para retangulares antes... Ouvi falar que um francês de nome Descartes (contemporâneo seu, Galileu!) teria estudado isto. De qualquer forma, isto faria o robô voltar ao ponto de onde veio depois de uma rotação completa do disco. Você está, pelo que vejo, tentando criar um disco com instruções para o autômato descrever uma trajetória fechada, não está?
- Ahan... - interveio Galileu. - Teremos bastante tempo para tratar destas amenidades. Podemos cuidar agora dos detalhes práticos?
- Certamente! - disse Newton. - Como fiscal dos comboios, preciso me certificar que...
- Fiscal? - perguntou Leonardo.
- Caro, pelo que sei, morri em 1727, com 84 anos bem vividos! Ou ainda vou morrer? Ah, tanto faz!!! Essas viagens no tempo são mais confusas até que meu cálculo diferencial... O fato é que, "oficialmente", o transcroniano ainda não chega no século 17. Sou tão clandestino quanto vocês! Ocupo um cargo falso e uso um nome falso. Prazer, meu segundo nome é Leopold Norman... Fiscal de comboios do Expresso Transcroniano!
- E eu sou Gabriel Gagarin! - se apresentou Galileu Galilei. - Ouvi este sobrenome em algum lugar, e gostei dele...
Leonardo estava aflito.
- Eu ainda sou... apenas Leonardo!
- Não tirou ainda identidades falsas? Nenhuma certidão comprovando seu nascimento no século 19 ou 20? - se espantou Newton, olhando de forma acusadora para Galileu.
- Foi tudo muito rápido, Isaac! Acabei esquecendo disso tudo...
- Não deveria, amigo! Não deveria! Como ele vai embarcar? Como o apresentaremos? Acha que é fácil ele se apresentar no guichê dizendo: "Olá, eu sou o Leonardo da Vinci, venho do século 14 e quero comprar uma passagem de volta pra minha época." Tsc, tsc... Não é assim que as coisas funcionam, meu caro Galileu Galilei! E tem ainda um tal de Einstein, do século XX, que parece ter me reconhecido! Estou contra a parede...
- Eu o apresento como... meu irmão!
- Francamente, estaria mais para seu neto, né? Mas... dá-se um jeito!
Pegou um outro robô sobre a mesa. Também uma tartaruga mecânica, mas este parecia bem mais complexo! Cheio de pinos em volta!
- E este aqui, Leonardo da cidade de Vinci? Como funciona? Que são estes pininhos todos em volta dele?
- Um protótipo! Uma idéa que tive vendo os autômatos futuros! Ah! Vinci não é uma cidade, Newton! É uma comuna de Toscana, no vilarejo de Anchiano...
- Ele não tem disco de programação de trajetória...
- Não precisa deles! Ele pode... ah, deixa pra lá! Você não acreditaria...
- Tente dizer! Estes pinos todos em volta, por exemplo. Pra que servem?
- Sensores de colisão. Informam ao autômato que parte de seu corpo bateu numa parede.
- E isto serve para...
- ...para ele se decidir sobre a próxima direção a seguir. Para longe da parede!
Isaac Newton olhou admirado o autômato. Tinha ouvido direito aquela palavra?
- Se "decidir", Leo?
- Se decidir, New!! - ah, finalmente alguém reconheceu seu brilhantismo! - Ao contrário do primeiro autômato, que segue fielmente instruções codificadas num disco direcional, este aí é capaz de tomar decisões! Simples a princípio (se afastar das paredes), mas ainda acho que posso aperfeiçoar a idéia!
- Poderia colocar algo mecânico deste tipo para simular linguagem? Ou até demonstrar teoremas?
- Vai ser um trabalho colossal! Mas acredito que posso fazê-lo sim!
Isaac Newton estava resoluto.
- Não há tempo pra providenciar os documentos! Ele parte conosco de qualquer forma! Vou colocá-lo num dos vagões de carga de alimentos. - se dirige a Leonardo: - Isto te incomoda? Embarcar às escondidas?
- De forma alguma! Só quero voltar logo e colocar no papel todas estas maravilhas que vi no futuro!
- Então prepare as malas! Temos menos de uma hora antes do expresso partir de novo!
Antes dos três saírem do hotel em direção à estação, Newton se lembra:
- Ah, Galileu! Não se esqueça depois de me lembrar de te dar aquele protótipo de telescópio de reflexão!
- Reflexão? Com espelhos? Mas... como? Minha cabeça não vai ficar na frente do espelho esférico? Não verei minha testa ampliada, ao invés dos corpos celestes?
- Relaxa! Dei um jeito de resolver isto.
Os olhos de Galileu estavam radiantes. Apesar de parcialmente cegados por ter observado o sol tanto tempo através em seus telescópios, sem proteção alguma diante dos olhos.
- E vem com um brinde extra: além de ampliar mais que seus telescópios de refração, eles não sofrem com a aberração cromática! Ah é! E um vidro esfumaçado para você colocar na frente dele e parar de ferir os olhos quando quiser observar o sol!
- Nem sei como agradecer, Isaac!
- Me agradeça usando! Pra mim é só um brinquedinho, mas sei que você vai conseguir aproveitá-lo muito mais!
Os três seguiram ao longo da Baker Street, em direção à estação 19-50 do Expresso Transcroniano, após pagarem com a moeda corrente o que deviam ao hotel. Não se encontraram com Sherlock Holmes no caminho por vários motivos! Primeiro, estavam na época errada! Segundo, Sherlock Holmes nunca existiu, qualquer que fosse a época! E finalmente, os três pertenciam a épocas anteriores àquela em que Conan Doyle escreveu as aventuras do famoso detetive. E nenhum deles parecia muito interessado em literatura futura...
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A última coisa que ele esperava ver era um companheiro de clandestinidade. Mas logo ficou claro que alguém colocava, às escondidas, uma outra pessoa naquele vagão de cargas. Já totalmente opaco (o efeito da fórmula de invisibilidade já passara a uma hora e meia), não tinha onde se esconder. Enfim, raciocinou: "o cara que entra agora está tãol ilegal quanto eu! não tenho o que temer..."
- Ah! Não sabia que tinha companhia!
Ele fez sinal de silêncio.
- Ninguém sabe que estou aqui!
- Desculpe, desculpe! Eu me chamo Leonardo, e você?
Pensou. Deveria revelar seu nome verdadeiro? Óbvio que não!
- Leopold! Julius Leopold!
- Ah, belo nome! Julius... É de onde? Romano? Eu sou da Itália! Nasci em Toscana, na comuna Vinci do vilarejo Anchiano, conhece?
- Já ouvi falar... - embora fosse uma mentira deslavada, pois nem podia ter ouvido falar deste local na sua vida anterior à viagem: ele ainda não existia!
- Faz o que da vida, Julius? Eu sou pintor, arquiteto, anatomista, inventor... Ah, desculpe! Estou sendo exagerado, né?
- Me veja só como um viajante curioso, meu caro Leonardo! Vem do futuro?
- Passei por lá! Me deu até algumas idéias interessantes, como este autômato digital capaz de tomar decisões. Gostaria de vê-lo?
Dá corda ao brinquedo, e o clandestivo vê embasbacado aquela peça mecânica de bruxaria tomar decisões, seguir a direção oposta aos obstáculos com os quais colide em seu trajeto maluco. A pequena tartaruga de metal parecia ser capaz de pensar! Afinal, quem era este tal de Leonardo da cidade de Vinci do qual ele nunca tinho ouvido falar?
- Estou com fome... Aceita um lanche?
Leonardo ficou pensativo.
- Não sei, Julius... Consumir a carga? Isto não lhe parece roubo?
- Ah Leonardo! Quem vai saber?
Ele pegou dois pacotes de carne desidratada do século 23. Estava escrito na embalagem "carne bovina sintética", seja lá o que isto significasse. De qualquer forma ele não sabia decodificar caracteres latinos. Acendeu um aquecedor laser portátil (presente de um amigo do futuro) no centro do vagão. Foi quando percebeu que o trem partia naquele exato momento.
- Se seu sentimento de culpa for maior que sua fome, é só não pegar a sua carne. Eu vou comer meu pedaço sem problema nenhum...
A fome falou mais alto. Leonardo da Vinci também enterrou seus dentes naquele bife de carne bovina sintética aquecido pelo minúsculo aquecedor laser.
*** CONTINUA ***