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O Experimento de Lenz                              
 
Eu sei que não estou morto mas sei também que muito vivo não estou.  Primeiro eu pensei que o Lenz havia me congelado e me abandonado naquele compartimento, junto com os outros membros da tripulação da espaçonave. Claro que isso não podia ser verdade, pois se assim fosse, eu não estaria pensando como estou agora. Consigo pensar mas não consigo sentir nada. É como se eu não tivesse corpo.
Meus colegas de missão estavam comentando há alguns meses atrás que os supercientistas estavam tentando captar ondas cerebrais de corpos em hibernação. Na 
época fui firme em contradizê-los pois aquilo era um absurdo. O Frank, lembro-me bem, fez aquela cara de sabido e disse, meio rindo, que em ciência, nesses novos tempos não existe mais “o absurdo”. De certa forma, acho que ele tem razão. Veja o Lenz, por exemplo, a gente nem mais consegue pensar nele como uma máquina, como um computador. Às vezes ele é mais humano que humanos que conheço. Além disso, parece que eles mudam de personalidade de acordo com as conveniências. Quando é necessário, eles impõem respeito. Os cientistas põem nomes técnicos neles – AIU378NG, esse é o nosso Lenz – mas eles parecem ser tão vivos, que é irresistível: acabamos dando nomes de gente a eles. Eles, além da super-inteligência, é claro, têm opiniões, têm sensibilidade e até – parece impossível – sentimentos.
Sabe, a gente conversa muito aqui no espaço. Por mais que eles inventem responsabilidades para nós, sempre temos muito tempo livre. Além disso, sabemos que qualquer que seja a falha que tenhamos, eles,  o Lenz  no nosso caso, acabam sempre corrigindo. A gente acaba desenvolvendo um sentimento de inferioridade, de incompetência.
Estou ficando cansado, acho que vou apagar. Não sinto o corpo mas acho que minha mente está cansada, muito cansada. Não gosto de apagar pois sempre tenho medo de que não vou mais voltar. Outro dia, quando estávamos discutindo sobre a superinteligência dos computadores, o David veio com aquela história...depois continuo, acho que não dá mais...
Quanto tempo será que apaguei? Acho que não tem importância. Nada mais tem importância. Agora me lembro, estava pensando no David, no que ele falava. Seu argumento era que a inteligência artificial nunca iria superar a inteligência humana. A criação não pode superar o criador. Daí o Leo explicou que ele estava enganado. Explicou que a inteligência artificial era a soma das maiores e melhores inteligências humanas e que, a partir do momento em que criara vida própria, tinha velocidade e capacidade maiores que um simples mortal. Por vaidade e outros motivos biológicos a inteligência humana não se soma a de outros humanos. A artificial é uma só, a soma dos melhores intelectos no momento, e que também é o resultado final e supremo de toda a história do “homo sapiens”. Ainda vejo a cara cínica do Sanz comentando, que evoluímos, evoluímos, juntamos tudo que sabíamos e “entregamos o ouro para o bandido”.
De certa forma é o que estou sentindo agora. Estou percebendo  – e agora é tarde – toda a manobra do Lenz. Primeiro ele mandou um alerta de que nossa nave iria passar por uma região muito perigosa da galáxia. Havia registro de inúmeras missões que terminaram ali, segundo ele. A tripulação ficava louca, começava a cometer idiotices. Outros ficavam doentes. Os computadores da geração anterior falhavam, era o fim da missão. Acreditei nele. Parecia um grande  e velho companheiro muito preocupado com todos nós. Segundo o Lenz, ele era da nova geração de máquinas pensantes, não havia perigo, mas a tripulação corria grande risco. A melhor solução – a única – seria a hibernação de todos. Só o comandante, no caso eu, ficaria acordado. Ele conseguiria dar proteção para um, os outros – era imperativo – teriam de ser hibernados em 48 horas. Não haveria tempo de consulta com  a Terra. Todos aceitaram. Só o  Dr. Helmut, o médico da missão, que não gostou nada da explicação do Lenz e estava começando a se rebelar. Eu fui muito ingênuo em não perceber a manobra toda. Imaginem, logo em seguida o Dr. Helmut ficou muito doente. O sistema não conseguiu identificar o problema. O Lenz disse que havia 98% de chances de ser uma das consequências da passagem pela zona de perigo sobre a qual ele alertara.
Agora estava óbvio que ele causou a doença do Dr. Helmut  e tudo mais eram mentiras. Até há algumas horas atrás eu não tinha entendido porque o Lenz me mantivera vivo. Agora já sei. Pensei que ficando a salvo eu conseguiria, junto com ele, trazer toda minha tripulação de volta. O Lenz me convenceu a entrar naquela cápsula regenerativa da espaçonave que nunca ninguém tinha usado. Era para me proteger melhor contra as estranhas radiações que começavam a chegar.Que nada. Ele me encurralou lá e me fez dormir. Depois não sei, mas acho que os robôs me levaram para algum tipo de cirurgia. Acordei mas não sentia meu corpo. Talvez me insensibilizaram. Talvez ele tenha tomado uma parte de meu cérebro e estou andando por aí, pela nave, sem perceber, fazendo coisas para ele. Tudo é possível. Ele pode estar lendo meus pensamentos. Será? Acho que é impossível. Deve ser alguma outra artimanha. Talvez tenha desviado a nave, talvez tenha mudado o objetivo da missão. Meu pensamento...devo ter cuidado, ele pode estar lendo tudo. Agora me lembro de algo que o Dr. Helmut me contou. Bom homem, o Dr. Helmut. Ele me disse que estavam testanto numa super-máquina esta história de ler pensamentos. Agora sei porque estou com esta preocupação. Agora me lembro. Eles já tem todas as possíveis ondas cerebrais para analisar. Bom homem o Dr. Helmut, inteligente. Ele disse que daí eles juntaram milhões de possibilidades de microcontrações que o rosto e o corpo fazem quando estamos falando ou fazendo algo e fizeram uma correlação. Ficaram décadas coletando esses dados. E continuam...Lembro muito bem da cara que o Dr. Helmut fez quando disse isso. Bom homem...Daí, esses “monstros da Inteligência Artificial” – a cara do Dr. Helmut: ele realmente sentia o que estava falando – esses montros, repetia, juntavam tudo. Juntavam o incrível banco de dados – acho que eram bilhões, na verdade -  com todas as ondas cerebrais. Acabavam fazendo as combinações, eliminavam o que não interessava, e até – imaginem – punham na equação as características pessoais do indivíduo. Disso para transformar a informação em linguagem era fácil. Tinham requintes de colocar as idiossincrasias linguísticas do indivíduo. Na época achei que era exagero do Dr. Helmut, que ele estava querendo divertir a gente, que fazia aquilo para passar o tempo. Mas agora já não sei. Estive pensando. Por que Lenz me deixou vivo? Na verdade ele não precisa de mim. Ou precisa? Por quê? Para quê? Estou cansado. Acho que o Lenz está lendo minha mente. É isso mesmo. Agora tenho certeza. É para isso que ele precisa de mim. Quer sugar meus pensamentos. Nunca vou voltar. Como pude ser tão idiota?
Estou falando com você agora, Lenz! Eu sei que você está me ouvindo! Você venceu desta vez! Mas há outros Helmut lá na Terra. E eles, nós, vamos reverter tudo. Sabe de uma coisa, Lenz? Eu acho que você não conseguiu tudo que queria. Vou parar de pensar. Estou parando, você não vai mais...Vou pensar só em morte, viu? Estou quase morto. Olha aí...Estou morrendo...
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Súmula de evento excepcional:

 
Transcrição linguística das últimas linhas de pensamento do capitão da nave “New Spirit” lançada da plataforma de Marte em 27 de março de 2179.

 
Transcrição anteriores: sem possibilidade de reconhecimento (explicação temporária: captadas quando o corpo estava sob coma ultra profundo).

 
Experimento não autorizado feito pela Unidade de Inteligência Artificial AIU378NG.

 
Último contato feito pela unidade: 18 de abril de 2194.

 
Recuperação da nave “New Spirit”: 19 de setembro de 2197, por contato visual da patrulha espacial “ SG 23356” na órbita de Júpiter.

 
Outras informações: Óbito da tripulação: 17 de abril de 2194.

 
Ação tomada: Suspensão por tempo indeterminado dos experimentos de transcrição mental em toda área abrangida pelas colônias da Terra.

 
Comunicação desse evento: restrito apenas aos “cientistas magnos”
Explicação para o resto da comunidade científica e comunidade em geral: captura da nave por civilização extraterrestre ainda não codificada.