Expresso Transcroniano - Parte 3
*** O cantor e o maquinista ***
Com o velho jaquetão preto de couro surrado e o violão pendurado nas costas, o cantor esperava pelo trem sentado no chão da plataforma daquela estação 19-82. Estava só. As pessoas dos anos 80 perderam temporariamente o interesse nas viagens transtemporais. Até o final dos anos 70 realmente haviam poucas alternativas mais interessantes do que o trem: por volta de 1939 o mundo descobrira, abobado, que o homem já havia chegado à lua desde 1889, mas que isto foi um segredo compartilhado por poucos durante meio século! Mas dali em diante a coisa estourou, e em 1953 já estavam pousando em Marte os primeiros representantes humanos, erguendo as primitivas colônias. Uns poucos estudos minerológicos eram feitos em Mercúrio. Mas Vênus, com sua temperatura escaldante e chuvas de ácido sulfúrico, realmente não era um lugar no qual alguém em sã consciência desejasse seriamente fincar raízes. Até fins dos anos 70 as viagens espaciais viáveis se concentravam mesmo nestes 4 pólos: Terra, Lua, Marte e Mercúrio. Por isso as viagens transtemporais ainda pareciam bem mais interessantes até o final da década de 70!
Mas entre 79 e 80, viabilizadas as viagens até Júpiter e Saturno, a coisa mudou de figura. Que viajar no tempo que nada! O que todos queriam nos anos 80 era explorar aqueles praticamente dois novos sistemas planetários em miniatura, conhecer os vários súdidos que giravam em torno dos dois gigantes gasosos. E com seus explêndidos anéis equatoriais, Saturno tinha ainda um charme todo especial, apesar de qualquer um ficar também estupefato com o gigantismo de seu vizinho Júpiter e suas manchas e faixas multicoloridas. Por isso o cantor normalmente estava só naquela estação, cujo trem só parava mesmo naquela plataforma por isto ser um velho costume. A conhecida voz anunciando as estações nem perdia tempo anunciando aquela em especial, pois normalmente não havia ninguém lá fora para entrar, e raramente alguém dentro querendo sair.
- Lá vem o trem! Lá vem o trem! - se ergueu e berrou de contentamento ao ver a locomotiva elétrica se aproximando. E foi de ouvir isto que o maquinista-condutor Andrew Harlan descobriu que o velho amigo esperava mais uma vez na plataforma. Saiu rápido da locomotiva ao perceber que uma discussão havia começado. Mais uma vez, o velho amigo tentava barganhar uma carona com o enérgico fiscal do comboio.
- Quebra essa, cara! Não tem ninguém mais na estação vendo!
- Os passageiros lá dentro não vão gostar...
- Ah, eles nem precisam saber! Só se você contar.
- Ou mostra o bilhete, ou não entra.
Ele retira o violão das costas, começa a dedilhar:
- Vou cantando, animando a viagem. A propósito, quer ouvir uma música nova minha?
- Senhor! Quantas vezes vou precisar dizer que viajar no tempo não é algo que...
Harlan se aproxima, e faz um sinal ao fiscal dizendo "deixa que eu resolvo isso".
- Andrew Harlan!!!! Meu amigão! Eu 'tava' tentando explicar pro polícia aqui que...
- Ele não é polícia, é só o fiscal do comboio. - e faz um sinal mais insistente pedindo que o fiscal se retire. - Deixa que eu converso com ele a sós, Bernard!
- Fiscal, policial... é tudo a mesma coisa, né? Sempre tentando controlar nossas cabeças, fazer a gente parar de pensar sozinhos, querendo que...
- Sem discurso, por favor! - disse rindo. - Você quer outra carona no trem, não é?
- Carona? Não, bixo!!! De jeito nenhum! Eu vou pagar pela viagem! Só que vou pagar com música! Tá vendo minha carteira de dinheiro aqui? - disse, erguendo o violão.
- Você é impossível mesmo, hehehe. Vai, pode entrar! Mas só mais esta vez, hein!
Ao colocar um dos pés dentro do vagão, ele pergunta afobado:
- Peraí, peraí!! Vocês estão indo ou voltando?
- Vamos para o passado. Não aprendeu ainda que a plataforma para embarcar para o futuro fica do outro lado?
- 'PUTZGRILA', BIXO!!! Se você não me avisa eu viajo pro passado de novo!! - e completa: - Aquela rampa ligando as plataformas é mágica, sabe? Pego ela, vou, vou, vou pro outro lado... mas sempre acabo voltando neste! É o 'SIST' que faz isso. Te garanto! Confunde a mente da gente!
- Não te interessa ir para o passado?
- Já fui muitas vezes lá. Nada de novo debaixo do sol pra eu conhecer por aquelas bandas. Eu quero ir pra frente, entendeu! Pra frente! Pra frente! Quem anda para trás é caranguejo...
- Para o lado. - e Harlan não consegue segurar a gargalhada.
- Como você disse?
- Caranguejo anda para o lado. Não para trás.
- Ah, tanto faz, bixo! Você entendeu o que eu quis dizer, né? Eu quero é o futuro! Futuro! Pensar pra frente, meu!! Avançar!!
- O que quer tanto fazer lá, meu amigo?
- Oras bolas... Ver os discos-voadores!! Fiquei sabendo que tem vários lá pros lados do século XXV.
- Não têm exatamente a forma de discos, mas acho que você gostaria de vê-los sim.
- Falar com os ETs, entende? Quem sabe pegar uma carona num desses até o céu, bater um papo com Deus... Essas coisas.
Andrew sempre se divertia ao conversar com o amigo conhecido de várias viagens (sempre como carona, óbvio). Havia uma genialidade curiosa em sua loucura. Ou uma loucura sublime em sua genialidade? Pensou que isto seria um tema fecundo para discutir com ele, mas numa próxima oportunidade. Já estavam se alongando demais, via que alguns dos passageiros dentro do vagão já se impacientavam.
- Se quiser esperar um pouco, ir para a outra plataforma, logo estaremos de volta! Aí você embarca para o futuro, e vê seus discos-voadores que tanto deseja ver.
- Pode ser, cara, pode ser. Mas... vai pro passado, né? Pode me fazer um favor?
- Se você for breve, meu amigo!
- Coisa rápida! Calma... calma aí! Já pego! Já pego! - procurava algo numa bolsa de hyppie que trazia pendurada ao ombro. - Ah, tá aqui! - Mostra uma caixinha quadrada e achatada, um pouco menor que a largura de uma caixa de fósforo. - Se passar lá pelos anos 50, pede pro Elvis autografar pra mim esse vídeo-disco?
- Você sempre pede favores complicados, hein!! Acha que é fácil assim encontrar o Rei do Rock? - recebe a caixinha na palma da mão e a abre, contemplando o disco prateado dentro dela do tamanho de uma moeda. - Só não sei se tem espaço aqui para um autógrafo...
O cantor retira os óculos escuros e fixa bem a caixinha.
- Mas não é?!! Aí mal deve caber uma impressão digital. Que saudade eu tenho daqueles antigos bolachões prateados... Pelo menos dava para autografar na capa deles. Mas pera mais um pouquinho só, bixo! Eu dou um jeito nisso... - volta a fuçar em sua bolsa a tira-colo.
- Vamos lá! Os passageiros estão começando a ficar nervosos. - diz, exibindo um sorriso amarelo.
- Tá aqui! Sabia que 'tava'! - entrega ao amigo uma caixa retangular maior, que a princípio Harlan imaginou ser um bloco de notas com capas metálicas; percebe o erro ao abrí-la: era uma almofada de carimbo! - Pede então uma impressão digital do Elvis pra mim, pode ser?
- É seu ídolo, não é?
Ele confirmou acenando com a cabeça.
- Eu sempre estou por aqui. Se conseguir, pode me entregar na volta. Ou na ida. Ah, sei lá, hehehe! Ainda não entendi muito bem o que é ida e o que é volta nesse seu trem maluco...
Andrew caminha até a locomotiva ao ouvir um passageiro balbuciar mais alto uma reclamação. Ainda para na porta da locomotiva antes de entrar, para uma última despedida.
- Valeu, Andrew!!! - ouve do amigo. - Boa viagem!! Sabe que você mora bem aqui dentro, não é? - e bate no peito.
- Tchau! E até a volta, Grande Raulzito!!
Depois de fechar a porta e dar a partida no trem, ele ainda ouve Raul Seixas berrando na plataforma, correndo ao lado do trem em movimento e dando pancadinhas na janela da porta.
- E VIVA A SOCIEDADE ALTERNATIVA!!! VIVA!!! VIVA!!! VIVA!!!
O cantor sai cantarolando enquanto vê o trem partindo e ganhando velocidade. Quem sabe houvesse tempo dele compor uma música nova antes do comboio voltar, para levá-lo para os lados do Mundo do Amanhã. Enquanto subia a rampa que dava acesso à plataforma oposta, ainda sai cantarolando baixinho "Quem não tem colírio usa óculos escuro, quem não tem filé come pão e osso duro, e quem não tem visão!!!! bate a cara contra o muuuuuuro!" Ficou atento na travessia, tentando não ser mais uma vez tapeado pelo 'Monstro SIST'.
*** CONTINUA ***