"Um Passo No Tempo" 4- Charles Mahil-Dupont

Charles Mahil-Dupont

30 de Julho, Île-de-France, França, 20 km a Sul de Paris

O som dos sinos acordaram Charles Mahil-Dupont, fazendo-o quase saltar da cama. Pela milésima vez, o jovem herdeiro prometeu a si mesmo mudar o som do programa-despertador, mas sabia que acabaria por esquecer-se. Perguntou a si mesmo o que lhe passara pela cabeça na altura para programar aquela coisa para imitar os sinos da Nôtre-Dâme de Paris. Tinha sido na época em que andava a testar a sonoridade da mansão, com certeza. Lembrava-se do quanto infernizara a vida do pai e do irmão, com essas experiências acústicas. Bons tempos. E talvez por saudosismo não tivesse ainda corrigido aquele despertar, capaz de fazer acordar os mortos. Aos vinte e sete anos, sentia mais do que nunca a falta da família que perdera. Passou a mão pelo cabelo castanho-escuro encaracolado. Levantou-se da cama, fazendo com esse gesto com que o vidro das janelas do quarto começasse gradualmente a deixar passar a luz do sol e que Domus, o programa que assistia à gestão da lida da casa lhe perguntasse, na sua voz de homem de meia-idade de modos tremendamente educados, por alguma necessidade:

- Muito bom dia, Sr. Mahil-Dupont! Espero que tenha tido uma repousante noite de sono! – disse o programa, no seu habitual francês irrepreensível, através dos alto-falantes dissimulados nas paredes - Quer que informe a Sr.ª Maria para lhe servir o pequeno-almoço no quarto?

- Não é preciso, Domus. - respondeu Charles, pensando para si mesmo, como todas as manhãs, que tinha de mudar o nome e a voz daquele programa doméstico. Talvez para alguma coisa mais feminina. – Diz-lhe que eu vou à copa e que como lá mesmo.

Vestiu-se rapidamente e desceu as escadas em direcção à copa, dois pisos mais abaixo, ignorando a porta do elevador da mansão a abrir-se, por gentileza do sempre irritantemente prestável Domus. Chegou à copa e cumprimentou a septuagenária Maria, que estava já a pôr o seu pequeno-almoço preferido na mesa junto à única janela da copa. O jovem sentou-se, sentido com prazer o cheiro da fruta que estava na pequena fruteira, no centro da pequena mesa quadrada. Charles sorriu, pensando que por mais que tentasse e queimasse os circuitos, Domus nunca conseguiria ultrapassar a Maria, em eficiência. Também, eram mais de sessenta anos de experiência com a família que a Maria tinha contra um programa instalado à pouco mais de quatro anos, pouco antes do acidente dos seus pais. Podia ser um programa auto-evolutivo, ou “intuitivo”, como rezavam agora as campanhas de marketing, mas Maria era para Charles a prova viva que a máquina, tivesse lá quantos “chips” tivesse, nunca ultrapassaria o homem (e muito menos aquela gentil mulher). Enquanto comia a tosta mista besuntada com compota de morangos silvestres (feita, claro está, pela Maria), Charles olhava para fora da janela. A copa, tal como as cozinhas e algumas arrecadações ficavam na parte de trás do rés-do-chão da mansão. A parte da frente daquele piso era ocupado pelo gigantesco hall de entrada e os dois salões principais. Ali, daquela janelinha via apenas a estrada que dava para as garagens que ficavam nas traseiras, e podia de lado descortinar um pouco o começo do relvado que pertencia a uma das piscinas laterais. Virou-se para Maria e perguntou:

- Maria, diz-me, não gostarias que a copa fosse num piso mais acima, com melhor vista? Podia arranjar isso para quando o quisesse.

Maria esboçou o sorriso que Charles tão bem conhecia, desde criança.

- Menino Charles, aí nessa mesa já servi o pequeno-almoço ao seu avô, ao seu pai, e agora a si, desde criança. Deixou de gostar do sítio?

- Não, não é isso é que… - Ele calou-se. Sorriu também e simplesmente respondeu: - Não, claro que continuo a gostar. Sempre gostei.

A velha senhora continuou a limpar um tacho que pelas formas devia ser da idade da sua utilizadora, mas tão polido e brilhante como se tivesse acabado de ter sido comprado novo. Maria baixou o olhar, não encarando o jovem homem, enquanto fez a pergunta:

- Será que chegarei também a ver o seu filho nesse mesmo lugar, menino Charles?

Charles não gostava daquela pergunta, mas não o demonstrava. Nunca o faria com Maria. Entendia perfeitamente o sentimento daquela idosa senhora. Maria tinha emigrado de Portugal aos quinze anos e desde logo começara a trabalhar na casa dos Mahil-Dupont. Com o passar do tempo, não fora só a família a adoptar Maria, mas tinha sido também esta a adoptar a família como sua. E era óbvio que ela encararia um filho dele como uma dádiva, como se de um neto seu se tratasse. Afinal, ele próprio era como um filho para ela. Tal como o seu pai o fora. E era uma questão, posta por ela na maioria das vezes timidamente e que se vinha acentuando cada vez mais desde há três anos, desde o acidente que vitimara os seus pais e Jaques, o seu irmão mais velho. Um acidente, estúpido, como o eram quase todos os acidentes de viação. Um qualquer sujeito com pressa que decide fazer uma ultrapassagem perigosa, provocando uma colisão frontal. Quatro vítimas, entre elas três quartos da sua família. E ele, o benjamim da poderosa família Mahil-Dupont, que pouco mais fizera na vida do que estudar o que mais gostava: os legados de génios como Einstein e Hawking, de repente vira-se à frente de toda a interminável rede de negócios da família. Felizmente, Renata, a noiva de Jaques, depois do choque de perder o noivo a quatro meses do casamento, fora uma preciosa ajuda nestes três últimos anos. Charles por sua vez, depois de passado, na medida do possível, todo o inverno emocional provocado pela morte daqueles que mais amava no mundo, e talvez para ultrapassá-lo, passou a dedicar-se completamente ao projecto que começara já a delinear-se no seu espírito, ainda ele era um universitário hiper-activo. E pensar nisso fê-lo acabar de comer mais depressa e levantar-se, para se dirigir de seguida ao laboratório, que se situava na cave da mansão. Não sem antes ter dado educadamente o prato e a chávena a Maria, dando-lhe um beijo na testa, em agradecimento à atenção prestada. Antes de sair, tirou uma das maçãs que estava na fruteira e pô-la num dos bolsos do casaco de lã que vestia. Quando estava a passar pela porta de saída, Maria acrescentou:

- O Charles não me respondeu! –

Charles parou e sorriu para ela. Era mesmo dela, não deixar pontas soltas numa conversa, mesmo que já lhe soubesse o desfecho. Nisso, fazia-lhe lembrar o seu próprio pai. Charles nisso não se admirava, pois o seu pai com certeza tinha recebido muita da sua educação daquela espartana senhora. Tal como ele próprio.

– Maria, sabe muito bem que eu nem sequer namoro. E por enquanto, só quero acabar aquilo em que estou empenhado, no laboratório.

- Quanto a namoro, não sei se reparou que a menina Renata tem vindo cada vez mais cá a casa. Quanto ao seu laboratório, sinceramente, menino Charles, pergunta-me se eu quero mudar a paisagem da cozinha e passa catorze horas por dia enfiado naquele buraco sem janelas.

- Não se preocupe, Maria. – respondeu gentilmente Charles, pensando se ela se calhar contava mesmo as horas – Que o que estou a fazer no “buraco” está quase completo. Quanto à Renata, sabe muito bem que devido à necessidade da minha assinatura em documentos em que a procuração não chega, ela tem que cá vir.

- Isso de assinaturas e procurações, não percebo muito. – Maria deixou escapar um sorriso semi-malicioso – Mas que o Menino está a corar, lá isso está.

- Bom, eu tenho que me despachar. – E saiu da cozinha, sentindo no rosto que estava a corar ainda mais.

- Não se esqueça de lavar a maçã antes de a comer, menino. – disse Maria, enquanto ele saia

Enquanto se encaminhava para o laboratório, apreciou a boa sensação que tinha naqueles pequenos-almoços da Maria. Um qualquer tipo de conforto que não sabia definir mas que eram quase como que um renovar de alma. Já o seu pai lhe falara daquele cantinho na cozinha da Maria como um refúgio para as ocasiões em que o mundo lhe dava amargos de boca a mais. Charles sorriu e pensou na ironia da tradição familiar, tanto no caso da cozinha como dos amargos de boca.

Charles desceu as escadas, e atravessou o pequeno corredor que dava acesso ao salão subterrâneo que lhe servia de laboratório, passando por todos os sensores e dispositivos de segurança que aqueles seis metros de corredor dispunha e ligados directamente ao módulo de segurança no programa do Domus. Não era preciso mostrar as suas impressões digitais, a retina dos olhos ou pôr em análise a sua voz, visto os sensores de última geração fornecidos pela divisão de produção cibernética das indústrias Mahil-Dupont identificavam-no pelo cruzamento de três factores: o odor característico do seu corpo, o seu registo termográfico, que mesmo que tivesse a arder em febre ou semi enregelado, o seu registo continuaria a ser único (o mesmo se aplicava ao factor do odor), e a nova jóia tecnológica instalada naquela secular mansão: dispositivos que registavam e mediam a sua aura electromagnética, que era medida por sensores tão avançados que só o ministro de defesa francês e o seu secretário de estado sabiam (pois tinha sido dele a encomenda que dera origem a tais dispositivos). Não que houvesse um sistema de segurança “musculoso” que respondesse em caso de alarme de intruso, pois nesse caso o que aconteceria seria a clássica sirene a acordar meia região e um envio automático de aviso à esquadra de policia mais próxima. Mas Charles gostava de experimentar tudo o que de novo saia dos centros de investigação das empresas do seu pai. O jovem abanou a cabeça, e corrigiu este último pensamento; das suas empresas. Mesmo passados três anos, pensar nestes termos continuava a soar-lhe estranho. Não conseguia livrar-se da sensação que de um momento para o outro o pai surgiria à porta e começasse a avaliar o que o seu filho mais novo, o rato de laboratório, fizera nestes últimos anos. Ao seu lado estaria o seu irmão Jaques, a dizer ao pai, com o seu típico condescendente sorriso de irmão mais velho, que se quisesse fazer esse balanço correctamente que fosse falar com a Renata, que ali o seu mano continuava enterrado nos livros técnicos. Que ainda não aprendera que o trabalho dele agora não era naquele nível. Que agora ele, Charles, era quem deveria mandar naqueles que dividiam a vida entre os livros e o computador, entre o laboratório e a oficina, e não ser um deles. Ele deveria ser um gestor, não um operador técnico. O responsável, o único agora vivo, pelos bens da família. Este pensamento quase fazia o jovem francês começar a falar sozinho consigo mesmo, para explicar ao pai que ele nunca pedira aquela responsabilidade. Que nunca quisera ter participação activa nos gigantescos negócios da família. Mas imaginava sempre o pai a replicar-lhe que todas as gerações Mahil-Dupont tinham deixado o seu traço, a sua marca na sociedade francesa. E até no mundo. O avô de Charles, Jules, tinha sido o maior investidor francês (tinha assim investido toda a herança herdada dos negócios petrolíferos em África do bisavô de Charles) na indústria de áudio e vídeo alemã, conseguindo assim da maior potência económica europeia a sua própria fatia de lucro. E ele, Reynard Mahil-Dupont, pai de Jaques e Charles, cumprira a sua parte, fundando o consórcio franco-inglês que originara a geração de bioprocessadores que pela primeira vez dera a possibilidade aos europeus de deixar de andar atrelados à tecnologia americana (é claro que parte dos avanços do consórcio tinham sido graças ao bem sucedido e discreto departamento de espionagem industrial do consórcio. Mas como um dos seus sócios em Inglaterra dizia, que culpa tinham eles se os industriais eram tão facilmente subornáveis?). O seu irmão Jaques conseguira, juntamente com alguns investidores canadianos, através de angariação de vários génios por todo o globo (incluindo nos próprios EUA e Japão) continuar a política de desenvolvimento tecnológico iniciada pelo pai. De facto, e em nome da globalização, e do lucro correspondente, Jaques ultrapassara a situação de quase guerra comercial com os conglomerados do outro lado do oceano e iniciara um processo de associação comercial com os americanos que começara a deixar os senhores dos mercados asiáticos preocupados. O seu irmão Jaques conseguira, em questão de cifrões, levar a família a um nível que faria o próprio Rei Midas roer-se de inveja. Estes pensamentos assombravam Charles sempre que se encaminhava para o seu laboratório. A memória dos seus parentes era tão viva no seu íntimo, que a sua dedicação ao trabalho se transformara numa verdadeira obsessão. Ele sabia que não valia a pena começar-se a interessar pela gestão dos negócios ou de tentar descobrir qualquer outros talentos financeiros que estivessem escondidos no seu ser. Desde muito novo que a sua vocação tinha surgido espontaneamente. A física. A magia das forças que faziam o universo funcionar. O poder das leis que mantinha a matéria coesa. O seu pai não se importara muito com o seu desvio à veia empresarial da família, pois afinal o cada vez mais notável génio financeiro em que o seu irmão Jaques se estaria a tornar, ainda na casa dos trinta, compensava esse facto. E o pai, apesar de não lhe agradar por completo a tendência para a “operacionalidade científica” do filho mais novo, era notório que esperava que o benjamim da família tivesse o seu próprio protagonismo no caminho que escolhera. E Charles fora realmente um aluno brilhante na universidade. Mas nunca conseguira explicar ao pai que o mundo de quem se dedica à física não é um mundo de sobressaltos em que génios pululem com os seus feitos gloriosos. A ciência era uma amante à qual se tinha que primeiro dar muito, talvez uma vida inteira, antes de se receber algo em troca. Não era o mundo da bolsa, em que uma especulação poderia produzir o milionário da década. Não era o mundo da grande indústria, aonde um novo contrato poderia pôr uma empresa na frente de toda a concorrência. Não era o mundo empresarial, aonde um novo consórcio podia por um grupo de homens no topo do mundo. Mas explicar isso ao seu vitorioso pai só teria feito Charles sentir-se ainda mais culpado pela via que escolhera. Uma via aonde a sombra da labutação morosa e discreta num laboratório impediria a proeminência social que um Mahil-Dupont deveria ter por defeito. Depois da morte dos seus parentes, tinha sido esse seu discreto mundo de investigação o seu refugio que o poupara à vista da imprensa, ávida de notícias do último sobrevivente de uma das famílias mais famosas de França e da Europa. Renata, a bela e inteligente noiva do seu irmão tinha sido o prémio de compensação para os media. E a quase cunhada de Charles, estava para o jetset como um tubarão para um cardume de peixinhos. Charles não duvidava disso, pois à astucia natural de Renata, com certeza que ela somara algumas das manhas que aprendera de Jaques, que fazia dos media o que queria. Como Jaques por vezes dizia, enquanto lia sobre si nas colunas sociais “A imprensa era uma antecâmara de treino da bolsa”. Para Charles, esse tipo de sentimento de dívida para com a família, juntando à sua necessidade de acalmar os seus próprios fantasmas, tinham compelido o jovem físico numa tarefa que estava agora prestes ao fim. E ele sentia-se cada vez mais ansioso, como que uma febre a crescer-lhe nas entranhas, enquanto se aproximava da porta do seu laboratório subterrâneo.

– “Domus, abre!” – disse ele quase num sussurro, mas o suficiente para o eficiente computador de gestão doméstica abrir a pesada porta de madeira com duzentos anos que dava acesso ao verdadeiro ninho da trabalho do jovem herdeiro. E o domínio do Domus ficava à porta, pois lá dentro, o computador era outro. Não um mero ajudante doméstico, mas um autêntico auxiliar cientifico com uma gigantesca base de dados. Charles deu alguns passos e entrou para o sítio que realmente tinha sido o seu lar nos últimos três anos. Atrás de si a pesada porta fechou-se suavemente, mas não evitando um som que ecoou poderosamente no que era uma enorme câmara subterrânea. Aquele era o local que antes albergara a riquíssima colecção de vinhos dos Mahil-Dupont. Mas daquilo que antes era talvez a mais cara adega de França, só sobrara a pesada porta de madeira de pinho. Depois de enviadas as preciosas garrafas para locais com a mais moderna tecnologia de conservação, Charles instalou o equipamento necessário (que se resumia quase a apenas alguns potentes computadores) para um projecto que tinha em mente desde os seus tempos de universitário. Um projecto que faria o seu nome ficar na história da humanidade. E, muito provavelmente, mudar essa mesma humanidade. Deu mais alguns passos, que ressoaram com o eco, pois agora aquela enorme câmara subterrânea estava quase vazia. Tinha apenas algumas bancadas com alguns monitores de computador em cima, e uns poucos bastidores, aonde estava instalado o equipamento informático de última geração. Entre os bastidores havias livros amontoados. Além disso, apenas uma mesa redonda de madeira e uma cadeira giratória com um aspecto gasto. No chão, ao lado da mesa estava o que parecia ser um tabuleiro com terra. Apenas uma das bancadas tinha mais que monitores em cima, partilhando o seu espaço com algum equipamento técnico não-informático. Entre esse equipamento estava uma caixa azul metalizado mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos. Essa caixa apresentava na parte superior um pequeno teclado e um mostrador pouco maior que o de um relógio digital, que mostrava um número de vários dígitos em constante mudança, como se estivesse continuamente a fazer alguma leitura.

Um dos monitores (o que partilhava a bancada com a caixa azul) acendeu-se, revelando que os sensores do computador central daquele laboratório tinha detectado a sua presença, e estava pronto a receber instruções. Charles sentou-se na única cadeira daquela imensa sala, com esse monitor à sua frente.

- Computador, correr o ficheiro chamado “Troca”. – disse em voz alta. Ainda não tinha dado nome ao computador principal que o ajudava ali no laboratório. Talvez porque em questão de programas personalizados, o Domus já lhe chegava e sobrava. - Mostrar a última actualização.

No monitor correu o diagrama daquilo a que tinha dedicado a sua vida, nos últimos anos. Uma teoria que ainda nem sequer tinha nome (nos seus apontamentos apenas a designava simplesmente como “A troca”), apesar de poder simplesmente realizar uma velha aspiração do homem; a deslocação sem movimento. Por outras palavras, o teletransporte. Uma teoria, que com apenas uma sala daquela mansão familiar e uma parcela apenas da sua mesada, conseguira experimentar…e provar. Afinal, o que era necessário para tal tarefa não dependia de nenhum tipo de alimentação energética por aí além. Nem de nenhum inimaginável conversor de partículas e respectivos emissores/receptores, nem nenhum outro tipo de parafernália a que nos tinham habituado a ver nos filmes ou livros de ficção científica. Foi apenas questão de Charles chegar a uma conclusão: toda a matéria no universo existe, porque está continuamente a “dizer” que existe. E chegara a essa conclusão partindo do trabalho de um velho professor seu. O Professor Follesdal, homem de figura simples, apesar das suas feições lembrarem perfeitamente a sua ascendência norueguesa. “O meu pai com certeza foi viking, pois eu nunca o conheci!”, dissera-lhe ele uma vez, num dos seus raríssimos momentos de bom humor. Nunca fora visto na faculdade a trazer consigo um livro até ao dia das sua morte por doença, por altura do terceiro ano universitário de Charles. Mas Follesdal era muito mais do que aparentava. Era uma espécie de génio da física bastante ressentido com os seus colegas de ciências e o próprio sistema. Génio o suficiente para teorizar algo que ultrapassava algumas das leis einstianas e ressentido a tal ponto para não o repartir com ninguém. Só o fez com o jovem Charles. Para o velho e solitário académico, Charles parecera-lhe quase o sócia, em corpo e mente, do filho que Follesdal perdera num acidente. Em boa verdade, Charles nunca se sentira muito à vontade com essa questão, mas ficara completamente fascinado pelas teorias do velho professor. O velho norueguês não tinha lá em muita estima alguns dos princípios aceites da física. Tudo corresponde, ou responde a algo, é certo. Nisso, Follesdal não discordava de Einstein, em que não acreditava que Deus jogasse aos dados com a criação. Mas não necessariamente às leis imaginadas pelos homens. Charles olhou para um ressequido caroço de maça que estava sob uma das bancadas. Sorriu, pois olhava para os restos do primeiro objecto que o homem tinha conseguido teletransportar. Tinha-o conseguido há mais de um ano. E só ele sabia disso. Imaginava as reacções se comunicasse isso à imprensa. O teletransporte tornado realidade. Ele próprio quase não imaginava tudo o que aquela descoberta implicaria para a humanidade. Quase. Pois ele não planeava, por agora, dar conta ao mundo do que conseguira. O que tinha em mente era algo muito mais grandioso.

- Algo à medida de um verdadeiro Mahil-Dupont, pai! – completou verbalmente os seus pensamentos, sem dar por isso.

Reviu mentalmente todo o processo. Uma das teorias do Professor Follesdal é de que, afinal, o universo não se estava a expandir. As galáxias mantêm-se em movimento, sim, mas em gigantescos ciclos que se repetem, como que em gigantescas órbitas. E o que antes o cientistas pensavam ser um movimento de expansão que se iniciara no “Big Bang” (a tal explosão primordial que Follesdal duvidava que alguma vez tivesse ocorrido) não passavam de movimentos cíclicos. Follesdal teorizara também que afinal a luz poderia viajar em velocidades diferentes. De certo modo, isso não era novidade no meio cientifico, pois havia algumas correntes que defendiam que logo depois do Big Bang, nos primeiros décimos de segundo de vida do nosso universo, a primeira luz originada por essa explosão primordial teria tido uma velocidade muito superior à velocidade que se atribuía agora à luz. Mas apenas nesse momento primordial, há biliões de anos. Follesdal ia muito além disso. Afirmara que consoante certos padrões da sua fonte de origem, a luz poderia adquirir várias velocidades. E a ter razão, então a velocidade da luz não seria uma constante universal, como Einstein afirmara. E esse ponto, segundo ele, teria contribuído para o erro de análise que afirmava o universo como supostamente em expansão. Para ele, o universo não se expandia, circulava. “Se tentassem ver toda a existência como um ciclo de equilíbrios, saberiam da semelhança existente entre as regras aplicadas a nível molecular e a nível galáctico!” ouvira várias vezes o sábio norueguês a comentar, enquanto observava as suas próprias fórmulas matemáticas. Desdenhando dos seus pares, Follesdal ria-se de como eles se sentiam perdidos num universo em que afinal, afirmava ele, cada galáxia tinha bases de medidas espaciais fixas tão ou mais seguras que a geografia terrestre. E essa era realmente a sua teoria mais inaudita; a de que cada galáxia teria um sistema de coordenadas fixas. Com base nos seus cálculos matemáticos, Follesdal identificara as duas regiões da nossa galáxia aonde em teoria se deviam situar o que se poderia chamar de “norte” e “sul” da Via Láctea. Mas não conseguira calcular nem teorizar nada que indicasse o aspecto ou a natureza que estes seus dois teóricos “pontos cardeais galácticos” teriam. Ou a forma de os identificar. Sabia que existiriam e o seu papel, mas não aonde nem como seriam. A descoberta deles seria só feita pelo jovem Charles, já depois da morte de Follesdal. Ele descobrira o que já suspeitava ser a razão do velho Físico não conseguir achar nada nas zonas que tinha delimitado: é que quando se aponta qualquer tipo de receptor para o espaço sideral, um buraco negro é um fenómeno que só se identifica através de indícios exteriores ao próprio. Um buraco negro é invisível. É claro que tinha passado pela cabeça de Follesdal que esses pontos pudessem ser buracos negros, mas não conseguira achar nada que indicasse a presença de um destes misteriosos gigantes invisíveis naquelas duas zonas opostas da Via Láctea. Algo que denunciasse as forças abismais de gravidade que caracterizam esses abismos negros. Mas Charles descobrira. E não foi necessário reservar tempo de aluguer a um qualquer gigantesco rádiotelescópio. Aqueles dois “abismos negros” eram muito especiais. Ao contrário dos seus irmão, espalhados como ratoeiras pelo universo, estes não sugavam, comprimiam e faziam desaparecer tudo o que passasse no seu inimaginável alcance. Estes dois deixavam passar tudo, como se realmente não existissem. Charles só os localizou porque conseguira previamente identificar a única coisa que eles “sugavam”- aquilo a que ele chamava de as “coordenadas”. Cada molécula, cada átomo, cada partícula mais ínfima de matéria que se possa imaginar, tudo está a enviar eternamente duas mensagens continuamente perpétuas , uma para cada um desses pontos da galáxia. Uma, é a informação do espaço que ocupa, e é para um desses gigantes negros. A outra, é a do tempo em que se situa, e vai para o outro buraco negro oposto. Era como se cada molécula de matéria estivesse continuamente a afirmar “Existo, aqui e agora!”. Charles chamou a esses dois buracos negros que só ele sabia a existência de “bússolas negras”. Não por qualquer analogia ás clássicas bússolas magnéticas, mas porque estes dois fenómenos astrais eram como que os dois pólos de orientação para toda a matéria existente. E porque fora o nome que lhe passara pela cabeça, no momento. De seguida, calculara de que forma é que a matéria fazia a dupla e ininterrupta emissão de coordenadas para estas suas duas bússolas. O jovem, como qualquer físico, sabia que cada núcleo de matéria tem um campo gravitacional , campo esse que é o que mantém a matéria coesa. Charles teorizou que essa mesma força que mantém as moléculas de um objecto agregadas, seria ela mesma a enviar essa informação espaço/tempo ás bússolas, e fá-lo por uma simples razão: se o deixar de fazer, simplesmente deixa de existir. A integridade da matéria, a identificação átomo a átomo, o seu movimento ou imobilidade, tudo isso era completamente identificado na coordenada referente ao espaço. Ou seja, quem conseguisse aldrabar essa coordenada, obtinha uma deslocação instantânea do objecto a que essa coordenada dizia respeito. Charles teorizara que o ponto zero, o ponto de partida, dessas coordenadas seria no preciso meio caminho entre as duas bússolas, que seria o centro da galáxia. Sabendo isso, e se soubesse a coordenada exacta de um só objecto, seria o ponto de partida para identificar as coordenadas de qualquer outro objecto. Portanto, tinha de conseguir obter uma coordenada espaço/tempo. Mas identificar as coordenadas era uma coisa, mudá-las seria outra. Também nisso o génio do jovem provou ultrapassar o do seu velho mestre. Canibalizando as fórmulas originais de Follesdal, e desenvolvendo-as com os conhecimentos entretanto adquiridos, Charles criou uma única fórmula que continha em si toda a teoria da troca e a forma de a aplicar. Programou um software que codificasse essa fórmula para linguagem binária para que um computador pudesse fazer os milhões de cálculos que eram necessários para destrinçar uma só coordenada. Essa fórmula, associada a um pequeno dispositivo do tamanho de uma caixa de sapatos, seriam a chave de todo o processo. Era a caixa azul que estava ao lado do monitor principal. Essa caixa não era mais que um dispositivo que servia para conter e medir uma única molécula de hidrogénio isolada. Esse dispositivo continha também um receptor/emissor que tinha como função transmitir ao software elaborado por Charles as medições que este necessitava para processar a fórmula. O mais potente computador que o dinheiro poderia comprar demorara um ano inteiro a calcular, a pedir e a receber continuamente informações daquela única molécula até completar automaticamente a fórmula. Aí, nesse momento, Charles conseguira uma coordenada. E isso fora conseguido há um ano atrás.

- Computador, passar o registo visual da experiência numero um. – Pediu Charles, que gravava sempre em vídeo as experiências, para caso de verificação posterior.

O monitor mostrava uma imagem sua de há pouco mais de um ano atrás. Estava a colocar uma maçã em cima da cadeira onde agora estava sentado, enquanto falava para o computador:

- Computador, identifica este objecto.

- Objecto biológico, género: malus. Vulgarmente chamada de maçã. - respondera a voz monocórdica do computador.

- Exacto. Adquire as suas coordenadas E/T (Espaço/Tempo) como alvo.

- Alvo fixado.

A focagem da imagem recuava agora um pouco, para poder mostrar a mesa redonda a dois metros de distância.

- Computador, efectua a troca.

Quase instantaneamente, a maçã desapareceu de cima da cadeira e apareceu sobre a mesa. Via-se agora Charles aos pulos de alegria.

Charles desviou momentaneamente os olhos do monitor e olhou para essa mesma mesa, alguns metros atrás de si. Estava agora amontoada de vários objectos, desde utensílios de cozinha a um penico. Sorriu, pensando que a Maria devia ainda andar à procura de algumas daquelas coisas. Encolheu os ombros. Pequenos desvios em nome da ciência. Voltou a olhar para o monitor. Este continuava a mostrá-lo aos pulos. Só parara de dar aqueles pulos lá pela décima troca. O monitor mostrava-o agora a segurar a maçã que acabara de teletransportar. De repente ficara imóvel, olhando para o fruto. Tinha reparado em algo. Pô-la de novo em cima da mesa e falou para o computador:

- Computador, analisa o alvo da troca e confirma a integridade física pós-troca.

Ouviu-se um breve zunido, que antecipou a resposta da máquina.

- Integridade confirmada. Objecto cem por cento igual ao momento pré-troca.

Via-se agora Charles a aproximar-se do monitor, como que zangado com a resposta que obtera.

- Focagem do objecto ao máximo. – imediatamente, a imagem desviara-se de Charles e focara o fruto em cima da mesa. A focagem aumentara a imagem até a maçã ocupar completamente o ecrã. Na superfície da pele da maçã conseguia-se ver alguns furos minúsculos. Ouvia-se a voz do jovem, que denotava uma crescente ansiedade, criada pelo medo de que o teletransporte tivesse produzido algum efeito colateral, o que significaria um fracasso.– Determinar natureza das protuberâncias na pele do objecto. Possível relação com a troca.

O computador respondera quase de imediato, como sempre:

- Zero por cento de relação com processo da troca E/T. Protuberâncias com origem em agente biológico.

A câmara, em modo automático, entretanto deixara de focar apenas a maçã, voltando a focar Charles e o espaço circundante.

- Agente biológico? – indagou, com surpresa, o jovem, olhando para o fruto.

- Anelídeo, classe Oligochaeta. – continuou a máquina

- Anelídeo? – Charles coçava o queixo nervosamente, não fazendo ideia do que estava o computador a falar. Ao aproximar-se do terminal reparou em algo em cima da cadeira, da qual a maçã tinha sido teletransportada. O físico aproximou-se e viu o pequeno ser que se contorcia em cima do assento.

- Vulgarmente chamado de minhoca. – acrescentou o computador.

A seguir: "Possibilides"

Oldland
Enviado por Oldland em 19/02/2007
Reeditado em 02/03/2007
Código do texto: T386340