Voz de pato - Parte 6
Nova Atlântida era uma cidade bem simpática. Radicalmente diferente de outros habitats humanos! O que logo saltava aos olhos: não existiam as malditas "cúpulas geodésicas" para lhes limitar um céu artificial! Era uma grande cidade cheia de construções imponentes, ruas, submarinos particulares e coletivos gerando uma versão subaquática dos já conhecidos congestionamentos de hovercrafts... Tudo igual, e ao mesmo tempo diferente: debaixo da água!
Mas não era nosso destino. Víamos o pequeno centro caótico à distância, mas Nereida me conduzia para uma região em torno dele. Havíamos subido a uns 300 metros do fundo do mar para atravessar uma mini-cordilheira submarina, mas começávamos agora a descer até uma simpática vila na periferia de Nova Atlântida.
- "Nova Atlântida? Mas não estamos no Pacífico, Nereida?"
Ela ficou emburrada. Mas que panaca eu sou, né? Deveria ter percebido que a pergunta era impertinente...
- Por isso mesmo que ela é "Nova"!! - e fez um sinal de quem pretendia encerrar ali aquele assunto. Um sinal de pontuação inexistente em língua escrita, um "fim" definitivo que só a língua universal de gestos possuía.
Chegamos em sua casa. Nunca tinha visto uma casa inteiramente submersa, debaixo dágua! Me surpreendi logo ao ver Nereida se desfazendo de suas roupas de borracha. Ela percebeu rápido meu espanto.
- Bom... espero que você não se importe de que eu fique mais à vontade em minha própria casa, né?
- Não, de forma alguma! - gesticulei enquanto via Nereida removendo aquela roupa de borracha que, mais tarde vim a saber, lhe incomodava muito! E que os Homo Aquaticos só usavam quando precisavam interagir com os Homo Sapiens, por saberem a resistência irracional e milenar que eles tinham em relação à sua própria nudez...
- Aqui você pode ficar à vontade também! - me sorri com o olhar.
- Não, não! - a possibilidade do frio falava mais alto. Além do fato de que eu não queria ainda demonstrar a Nereida o quanto eu estava "animado" com aquela situação toda.
Tomei coragem de observar o corpo de Nereida com mais cuidado, ao perceber que ela realmente não se importava nem um pouco com isso. E percebi que não era só a cabeça, sombrancelhas, cílios... a espécie realmente não possuia um único pelo no corpo! Nem poderiam ter: quantos empecilhos nossos pêlos deveriam trazer à hidrodinâmica dos corpos debaixo dágua! Causando distúrbios caóticos na corrente fluida. Vivendo a maior parte de suas vidas debaixo dágua, era mais do que lógico que eles se livrassem totalmente de tal incômodo...
Descemos até a pequena contrução. O primeiro dos meus dois galões de Nitroheliox-3 havia se esgotado, e eu só tinha agora o segundo e aquele que meu primo me deu. O troquei rápido, e perguntei à sereia onde deixá-lo.
- Aqui mesmo, querido! - descendo até o teto de sua casa, vi existir um compartimento apropriado. - amanhã o entregador troca por um novo cheio, e eu o levo pro teu primo...
Conectei então o segundo galão... Que inveja de Nereida, que respirava o oxigênio dissolvido no mar! Mesmo que fosse com aquele implante, que mal aparecia!
O pai da Nereida surgiu. Alto, forte, verdadeiro deus grego do mar... e mostrando tudo! Totalmente nu! Como vim a saber, os Homo Aquaticus não se utilizavam mesmo, no dia a dia, de vestimentas. Que sentido haveria em vestir o tempo inteiro algo que sempre estaria molhado? Fora que atrapalhava a hidrodinâmica de seus corpos quando precisavam se locomover.
Ele caminhou até nós, corpo totalmente sem pelos, e as "coisas" à mostra sem pudor algum.
- Filha, quem é esse...
- Esse quem?
- Ah, esse... - me olhou de alto a baixo. Instintivamente comecei a me despir da roupa de borracha, ao perceber que ela o incomodava.
- Este... Sapiens!!! - disse com asco. - Não acredito que você trouxe um Sapiens aqui pra nossa casa!
Me ofender? Como poderia? Ele não havia falado nada demais, só a verdade! Me chamou de "sapiens", o que eu realmente era!
- Pai, não vai começar com esta besteira agora, né? Que preconceito bobo, seu Nereu! Parece que ainda vive no século XX!!!
- Mas Nereida!!! Depois da luta de seus avós e bisavós para se diferenciarem desta espécie. Lembra do que eles fizeram? A matança de golfinhos, de baleias... Da explosão nuclear!!! Tem idéia do que é isso, filha? E você traz aqui pra nosa casa um... - o sentimento de nojo era indisfarçável... - Um "Sapiens"!?!?!?!? - de novo percebi lágrimas invisíveis se integrando rápido ao ambiente...
- Pai, eu gosto dele! E depois, que culpa ele tem de herdar os genes da superfície? Não foi ele que fez tudo aquilo foram seus... - parei de entender o resto da conversa depois disso. Só percebi trechos esparsos depois:
- Tem uma cachalote que... - Nereida argumentava. - E pode ser muito bom para nós que... - não entendi o que ela disse depois, mas vi claramente ela fazer sem parar um gesto de círculo em torno da barriga... - ...e pode ser bom para os híbridos, papa! Ele pode ter algum gene inativo que, combinado, pode...
Era difícil acompanhar a conversa, ainda mais àquela distância. Mas foi uma figura paterna benevolente, completamente diferente da inicial, que vi se aproximando de mim para um abraço.
- Eu te acolho, meu filho aéreo! - e o abracei tentando... bem, tentando evitar de encostar no "negócio" dele... Pegou em minha mão e na da filha, dizendo: - Que esta união seja abençada por Netuno e seus elementos...
Me afastei assustado! Nereida percebeu, riu, e disse ao pai:
- Calma, pai! Está assustando ele! Não estão acostumados com esta nossa determinação!
- Certo, certo... - e olha a minha roupa de borracha térmica, que eu havia retirado muito parcialmente - Mas tire logo isto, filho! Se quer viver entre nós, precisa ter nossos costumes!
E começo a me despir da roupa de borracha. Para imediatamente ser invadido pelo frio das profundezas... Nereida percebe rápido meu desconforto, e me espalha um óleo isolante milagroso! Ela espalha aquele óleo protetor sobre todo o meu corpo, sem pudor em fazê-lo em parte alguma... Que criaturas diferentes eram estes Homo Aquaticus!
- Nereida! - eu já me sentia confortavelmente aquecido totalmente nu naquelas profundezas submarinas, graças àquele óleo misterioso com o qual ela havia revestido meu corpo inteiro. Exceto pelo respirador do tanque de nitroheliox que, obviamente, eu não podia dispensar, como faziam os Homo Aquaticus... - Nereida? - Insistia o pai. - De onde você acredita que veio o som daquele cachalote?
- Ah pai... - ela pensou. - Acho que... dali!!! Sim, daquela direção!
- Otimo! - disse ele, apontando um sonar para noroeste...
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- Qual seu nome? - exibia o visor da máquina, enquanto vibrava a água ao redor com infrassons codificados no idioma das cachalotes, tentando criar palavras complexas moduladas em infrassons que se repetiam a menos de vinte vezes por segundo...
- Quem quer saber? - foi a resposta.
- Humanos...
- De onde vocês são?
- Nossos ancestrais, da superfície. Nós somos do mar, como vocês...
- Impossível, humanos no mar...
O pai de Nereida estava aflito.
- O que ele disse exatamente, filha?
- Bem claro, pai: arpoaram a companheira, que esperava um filhote do casal...
Ele baixou os olhos... Caramba, seria difícil mesmo fazê-lo mudar de idéia!
- Não somos eles, amigo! Somos diferentes!
- São filhos deles! Os demônios da superfície, covardemente protegidos por suas peles de metal!
A tensão estava clara! Seria possível prosseguir naquele diálogo?
- Sabemos que você é tão racional quanto nós! - arriscou o pai da sereia. - Dói, é difícil de aceitar, mas... o que aconteceu, aconteceu! Seu auto-sacrifício não vai acrescentar nada ao fato, amigo...
Um silêncio que parecia eterno... Eu estava perplexo! Nunca imaginei ser possível um diálogo tão humano e complexo com uma espécie tão diferente de nós! Desculpem, eu disse "humano"? Ah, que lapso! Vai ser meio difícil abandonar meus termos antropocentristas consolidados Há milênios...
O pai de Nereida começou a escrever: " foram os Homo Sapiens da superfície que...", mas a filha o interrompeu, olhou bem fundo em seus olhos, e ele refez a sentença: "foram humanos ignorantes da superfície que assassinaram sua companheira e seu filho. Não concordamos com isto! Estamos fazendo o possível para punir os culpados..."
- Ela não vai mais voltar... - decodificou o aparelho.
- Ela e teu filho estão agora nos braços de Netuno... Você acredita em Netuno, não acredita amigo? E em sua justiça...
O cachalote demorou, mas respondeu:
- Ah, já vi tanta coisa nesta vida! Mas ainda acredito nele sim! Netuno, o Deus criador dos mares!
Uma pausa torturante. O cachalote desafia:
- Como vocês imaginam que seja Netuno, hein? Um Deus Baleia ou um Deus Homo Aquaticus?
- Ele está acima disto tudo, irmão!
- Não sei se consigo viver com esta dor...
- Não consegue, irmão! Por isso que é melhor esquecê-la.
A canção de lamento ecoa por todas as profundezas marítimas.
- Netuno não deixará estes criminosos impunes!
Mas o cachalote não mais responde. Teria desistido de seu intento? Como saber?
- Que você acha, pai?
- Ah filha! Acho que passou o impulso, ele não vai fazê-lo agora. Mas e depois? E quando as lembranças voltarem? Talvez não estejamos mais perto para fazê-lo desistir da idéia...
Nereida, definitivamente, chorava apesar das lágrimas não aparecerem...
- Fizemos o que foi possível, filha! Agora... leva este seu namorado "sapiens" para dar uma volta pela cidade, ok? Acho que isto deve ter sido bem tenso para ele também...
*** CONTINUA ***