Voz de pato - Parte 5

"N-E-R-E-I-D-A! N-E-R-E-I-D-A!", me gesticulava a sereia sem parar, soletrando debaixo dágua naquele alfabeto universal dos surdos-mudos. Tentei resgatar as memórias daquele alfabeto subaquático, que todos aprendiam na escola quando crianças. Na verdade um idioma muito útil também no espaço, pois não existe som no vácuo. Mas não era tão difundido lá por causa dos radiotransmissores nos trajes espaciais. Como era mesmo o sinal para a letra V naquele alfabeto? Meu primo se comunicava com ela. Mas, fluentes, se comunicavam tão rápido que perdi a maior parte da conversa. Mas entendi bem a seguinte:

- Ele não conhece nada daqui! - vi meu primo gesticulando aflito para Nereida. - É a primeira vez que desce da superfície!

Nereida insistia:

- Eu o levo de volta!

- Vai cuidar bem dele?

Nereida fez um sinal de "jóia" com as duas mãos. Ele olhou irônico para os dois amigos, depois para mim, e enfim para Nereida. Concluiu:

- Certo, a gente já entendeu o recado...

Se dirige a mim, num esforço para se comunicar de uma forma clara.

- A gente vai voltar, primo. Mas esteja em casa antes da meia-noite, hein!!! Senão a tia fica uma fera...

Ficou de costas para todos, tentando se comunicar usando apenas as mãos, bem ocultas. Era o equivalente a "cochicar" algo naquelas regiões:

- Vai lá, garanhão! - ainda me disse antes de deixa um de seus tanques de nitro-heliox3, dizendo ter certeza de que eu iria precisar de ár extra; e se foram; e me deixaram a sós com aquela estrangeira subaquática...

----------

Como não havia percebido antes? Talves a deselegante roupa de borracha dela atrapalhasse, ou a ausência de cabelos, ou minha falta de costume em distinguir as coisas naquela água turva... Mas olhando bem agora, Nereida era uma representante feminina bem atraente da espécie Homo Aquaticus! Obviamente relevando-se as duas fendas branquiais que ligavam suas orelhas (minúsculas) ao pescoço... mas eu seria capaz de me acostumar a isto. Acostumar? Do que eu estava falando?

Incrível como estas coisas só acontecem mesmo comigo! Estava ficando cada vez mais apaixonado por uma sereia muda, que nem cantava nem tinha rabo de peixe! Quem acreditaria numa coisa dessas?

- Quero te mostrar uma coisa... - Nereida já sabia que eu não era fluente no idioma subaquático, e tentava ser a mais clara possível, gesticulando com precisão. Pega em minha mão e me leva para longe daquela fonte termal de enxofre.

----------

Apesar de estar numa planície totalmente aberta, quem não está acostumado sente uma certa claustrofobia naquele ambiente escuro cercado de águas turvas, e a sensação só piora quando você se lembra que existe mais de dois quilômetros de água salgada sobre sua cabeça! Fico feliz que a adaptação ao nitro-heliox3 dispensava a necessidade de se usar escafandros, mas ainda assim a roupa de borracha era indispensável devido ao frio que fazia nas profundezas. A cúpula do habitat Aqualung-15 ficava cada vez mais para trás. Mas percebi que a escuridão só não era completa devido a pequenos pontos de luz no fundo do mar a intervalos regulares. Seria um marcador? Uma "estrada" submarina mostrando o caminho a seguir?

Nereida se sentia livre em seu habitat natural. Os implantes saindo das brânquias semi-desenvolvidas eram quase imperceptíveis. Como vim a saber mais tarde, a geração atual de Homo Aquaticus já absorvia oxigênio pelas fendas, apesar de não conseguirem extraí-lo da água. E era onde entrava o implante. Também soube que ainda tinham uma capacidade limitada de respiração normal (por via aérea), mas que não lhes parecia ser muito agradável, e que tentavam evitar sempre que possível. O frio congelante também parecia não incomodá-la, pois a roupa que ela usava parecia bem mais fina e deixava descoberta todas as extremidades do corpo. Ela não usava luvas, por exemplo. E acredito que para não atrapalhar a fluência da sua comunicação...

Ela para brusca no meio do caminho. Aponta para as orelhas minúsculas e para mim, perguntando:

- Você também está ouvindo isso?

Ouvindo? Achei que eles não ouviam, que o desenvolvimento da fenda branquial tinha eliminado a função das orelhas... Bom, às vezes o primo dizia mesmo coisas que só vinham da cabeça dele mesmo. Nem me surpreendi, mas ainda assim quis confirmar:

- Vocês conseguem ouvir?

Ela me abriu um lindo sorriso de sereia, e "falou" (com as mãos e braços, óbvio!):

- Não tem muito o que se ouvir aqui embaixo mesmo. Mas nossa espécie consegue captar os graves e muita coisa na faixa dos infrasons. Mas mesmo o som que vocês ouvem chegam até nós pela caixa craniana. Não é muito claro, mas podemos ouvi-lo sim... Perdemos o ouvido médio, mas o ouvido interno, principalmente a cóclea, ainda é funcional para a gente. Mas espera... AH! Acho que agora você consegue ouvir!

De fato uma canção linda se ouvia ao longe.

- É uma cachalote, está triste...

- Que ela diz? Você entende o que elas falam? Elas têm uma linguagem?

- Lógico que sim, tolinho! Tão complexa quanto a nossa! Com verbos, advérbios, substantivos... A espécie mais inteligente das profundezas... Antes na nossa aparecer, lógico! Mas a diferença é bem menor do que costumam imaginar...

- E esta diz o quê agora?

- Nada específico, ela só está cantando mesmo. Uma canção triste e antiga... Espera, ele está dizendo que... ah não, Santíssimo Netuno!!!

Não dava para chorar debaixo dágua. Derramar água salgada em água salgada? Como chorar num mundo envolto em lágrimas pressurizadas? Mas para mim estava claro que Nereida vertia lágrimas sem parar.

- Que aconteceu, garota?

Ela se aproximou e me abraçou. Parecia soluçar:

- Arpoaram a companheira dele! E eles estavam esperando um filhote...

- Quem? Isto está proibido a séculos!

- Piratas, meu caro! Piratas baleeiros!

Ela me apertou forte enquanto a canção triste continuava. Foi quando Nereida se afastou enérgica:

- NÃO!!! ISSO NÃO!!! Não podemos permitir! Me ajuda?

- Ajudar a quê?

- Ele pretende se matar!

- Calma! Calma! "Fala" devagar!

Ela se lembrou de minha dificuldade com o idioma.

- Existe uma fossa submarina perto daqui. De mais de 8 quilômetros de profundidade. Ele está indo para lá! Ouvi, bem claro!

- Se jogar do precipício? Ele pode fazer isso?

Ela foi bem paciente com esta minha demonstração de ignorância. Mais do que supunha possível.

- Não exatamente, mas o resultado é o mesmo: suicídio!

Ela tentou se acalmar um pouco antes de prosseguir:

- Acontece a bastante tempo, mas só muito recentemente se conseguiu explicar. De cachalotes que aparecem mortas na superfície vítimas de... "descompressão brusca".

Ainda não percebia onde ela queria chegar.

- Ficou claro com o tempo que faziam de propósito! Quando compreendemos que elas possuíam inteligência, pensavam e decidiam suas ações... Ficou evidente que, longe de ser acidente, elas queriam mesmo se matar. E esta que ouvimos chorou em alto e bom som que está prestes a fazer isto... Quanta tristeza, meu bom Netuno!! Como podes permitir que essas coisas aconteçam às suas criaturas?

- Como ela faria isto, Nereida? Me perdoe a ignorância.

- Querido, elas nadam até o fundo de uma fossa abissal bem profunda. Aguentam algum tempo, são preparadas e podem fazê-lo se for bem lentamente. Você sabe como a pressão é absurda nestes lugares, não é? Chegando lá no fundo, elas se soltam, começam a subir rapidamente. Na verdade devem morrer já no meio do caminho, e chegam mortas por descompressão súbita ao boiarem na superfície.

Me puxa pelo braço:

- Vem! Corre! A gente não pode deixar acontecer isso! Meu pai tem um aparelho para falar com elas...

Ah, vida ingrata! Mal havia conhecido a garota, e ela me levava para conhecer seu pai? Como disse antes, essas coisas só acontecem mesmo comigo...

*** CONTINUA ***