UMA VOLTA PELO FUTURO

Por ser apreciador de histórias fictícias de vagens no tempo, em 1987 escrevi minha própria ficção de viagem para o futuro. Nesse tempo ainda não assistira De Volta Para o Futuro, de Steven Spielberg, afinal, ele fora lançado recém no ano anterior e fui assisti-lo por volta de 1989 numa exibição da Rede Globo. Assistira, porém, alguns episódios de O Túnel do Tempo, cujos personagens viajavam para importantes estações da história, bem como A Máquina do Tempo, que o personagem viajou para um futuro insólito. Assistira a esses filmes, porém, havia muitos anos; a série O Túnel do Tempo ia ao ar quando eu era criança e A Máquina do Tempo não pude assistir por completo a exibição que se deu quando eu tinha em torno de doze anos e passou na tevê em preto e branco de nosso amiguinho do lado.

Baseado nesses filmes, e querendo criar uma aventura diferente, me desafiei a escrever minha viagem no tempo e redigi a caneta mais de duzentas páginas de uma história complicada desde o início, mas cujos manuscritos foram lidos por leitores muito interessados, até que o último deles não me devolveu os escritos. Decidido, porém, a enfrentar a tantos quantos desafios surgissem, fui compondo minha ficção, respeitando as teorias vigentes quanto ao deslocamento no tempo e no espaço, quanto a interferência no passado, etc., e criando minhas próprias teorias, como o paralelo entre o período de tempo gasto na viajem artificial pelo tempo e o período de tempo transcorrido na realidade normal.

Por exemplo: Na ficção, os personagens (eu e minha namorada) que tentaram viajar no tempo em 1987, após a tentativa, saíram da máquina do tempo convencidos de que ela não funcionou. Lacraram-na, portanto, com concreto, no subsolo do playground do prédio em que morávamos, no bairro Jardim América, em São Leopoldo, esquecendo-se dela e seguindo o curso normal de suas vidas; casando-se um com o outro, adquirindo o apartamento no qual eu morava, tendo filhos, os filhos crescendo, formando-se na faculdade, namorando com filhos de pessoas conhecidas no bairro, casando e tudo o mais. Trinta e cinco anos depois, porém, em 2022, no tempo exato para o qual havíamos programado o destino temporal da máquina, numa São Leopoldo e bairro Jardim América bastante mudados e tecnologicamente muito avançados, eles foram visitados por eles mesmos no mesmo apartamento e já há alguns dias sentiam que eram observados por um jovem casal estranho, mas de certa familiaridade. Eles foram muito surpreendidos com essa visita, pois estavam mais do que convencidos da impossibilidade de se viajar no tempo.

A teoria, portanto, é que, para que não haja um período vazio no curso normal da história dos personagens entre o momento inicial e o final da viagem artificial no tempo, os viajantes no tempo nada mais são do que uma duplicação dos originais, por isto, ao chegar ao futuro, os viajantes podem encontrar a si mesmos que estiveram vivendo e construindo suas vidas e história no fluxo normal de tempo. Do contrário, se, ao viajarem no tempo, os viajantes não se replicassem e desprendessem de seus originais e os deixassem vivendo o curso normal de tempo, os originais não construiriam suas histórias do fluxo de tempo normal durante os trinta e cinco anos da viagem por não existirem lá e, ao chegarem a seu destino temporal, os viajantes reintegrariam seu lugar no tempo e espaço, mas não teriam história daquele momento para trás, pois no tempo normal eles teriam sido duas pessoas desaparecidas por trinta e cinco anos. Portanto, não poderiam encontrar-se consigo mesmos no futuro ou presente e tampouco teriam uma história de vida nesse período.

Na teoria de Spielberg, o viajante do tempo viaja para o futuro em uma máquina do tempo, encontra-se consigo mesmo lá, age, fazendo o que tem que fazer, e retorna na máquina do tempo para o momento da partida, sabendo apenas ele que agiu nos instantes que nem ele mesmo ainda viveu. Retoma desde esse instante o percurso normal para o futuro, onde sabe que se encontrará consigo mesmo viajante do tempo, sabendo já a quê virá o viajante do tempo que o encontrará, perdendo daí a razão desse encontro e da viagem artificial do tempo.

Além da perda do porque da viagem artificial no tempo, por essa teoria não é possível o encontro entre os personagens no instante destino da vigem no tempo, pois, sem a duplicação dos indivíduos na partida da máquina do tempo, quando o viajante do tempo chega ao futuro, por ter viajado no tempo e se ausentado no tempo normal, neste tempo não haverá ele para encontrar-se com ele mesmo viajante do tempo no instante destino, pois terá viajado pela máquina do tempo ausentando-se do tempo normal. Voltará, porém, conforme a teoria, ao momento de partida para retomar o curso normal de sua vida e percorrer o tempo normal e encontrar-se com sigo mesmo viajante da máquina do tempo no instante destino. Ao retornar, porém, na máquina do tempo, ao instante de partida e retomar o curso normal de sua vida, o viajante do tempo ausenta-se do futuro e daí já não estará lá para encontrar-se consigo mesmo personagem no tempo normal.

Portanto, minha teoria diz que a viagem no tempo replica os indivíduos e tais réplicas não se desfazem jamais, podendo encontrar-se e interagir mutuamente enquanto compartilham os mesmos instantes no tempo, ocupando para sempre lugares distintos no espaço geográfico, mesmo que retornem para o último instante antes de terem viajado no tempo. O que fazem viajando de um ponto para o outro no tempo é replicarem-se mais e mais.

Segundo a história que escrevi, os preparativos para a viagem que fizemos no tempo, eu e minha namorada, em 1987, incluíam, entre outras coisas, algumas câmaras de vídeo que instalei sobre o prédio mais alto do centro da cidade a fim de registrar as mudanças na paisagem. Imaginei, porém, como armazenaria tantos dias de imagem numa fita K7 e como faria para substituí-las de duas em duas horas. Outro problema seria que tipo de bateria usaria que durasse trinta e cinco anos. Naquele tempo não dispúnhamos de câmeras de monitoramento como as de agora e muito menos de sistema computadorizado para armazenamento de imagens. Se as câmaras de monitoramento existiam, eram uns trambolhos como as Super Oito. Também não se dispunha de CD (compact disc); a melhor tecnologia era a fita K7 cromo. Tampouco se dispunha de disquete; os discos removíveis eram uns “bolachões” flexíveis dentro de um envelope e quase não tinham espaço de memória. O disco rígido (chamado Winchester) dos J-CPU (Jurassic - Central Processor Unidade) conjugados com o monitor verde fósforo, os paquidermes da época, não podiam armazenar mais do que 500 mega bits. Minha namorada cursava Informática na Unisinos e sabia tudo daquelas geringonças, utilizando um volume duas vezes maior que a Bíblia para dar alguns comandos no computador.

De qualquer maneira, previ que essas câmaras não durariam muito e imaginei-as filmando a ereção de centenas de edifícios que logo lhes ocultariam o horizonte por completo. Esses edifícios seriam como os do desenho animado de Os Jetsons e parecidos com as construções do filme Blade Humer – O Caçador de Andróides. Suas portas se abririam por comando de cartão magnético e identificação da íris do proprietário. Os carros andariam flutuando mesmo no chão, erguendo-se e trafegando acima dos telhados das casas e dos prédios mais altos, deslizando sobre estradas flutuantes, utilizando jatos de fogo, ou, talvez, energia eletromagnética. As roupas seriam de plástico transparente e os guarda-chuvas teriam uma lâmpada fluorescente como cabo.

Por muitos aspectos, porém, não imaginei quase nada da tecnologia futura possível, como a presente tecnologia, além do aparelho de televisão com controle remoto sem fio, que era a fantástica tecnologia da atualidade de então, substituto do, há pouco lançado, controle remoto com fio. Muito menos imaginaria que hoje estaríamos utilizando rádio por ondas celulares para a transmissão telefônica e isso seria tão popular ao ponto de mesmo crianças e idosos utilizarem. Vira umas geringonças sem fio instaladas nos carros de agentes especiais em filmes como 007 e Agente 89, mas, sinceramente, imaginava que o telefone móvel chegaria aos carros, não aos indivíduos, e isso seria o maior avanço que se atingiria; seria a última tecnologia. Quanto ao telefone convencional em si, naquele tempo, mesmo esse era coisa de rico, sendo que se pagava por uma linha mais de dez pesadas parcelas, isto quando a linha era disponibilizada depois de uma longa espera. E assim, o proprietário de uma linha telefônica tornava-se acionista da companhia telefônica.

E agora, que se passaram vinte e seis anos desde aquela viagem frustrada, fiquei mais surpreso ainda ao perceber que não previ coisas elementares como a chegada do metrô a São Leopoldo e naquele tempo ele já vinha, embora que recém chegado, desde Porto Alegre, a Capital do Estado, até Sapucaia do Sul, a cidade aqui ao lado. Mas agora, já segue duas novas estações além da estação do Centro de São Leopoldo, indo em direção a Novo Hamburgo, onde em breve serão inauguradas três novas estações. A meu ver, entretanto, esse avanço do trem está muito atrasado.

Começo a me preocupar, porém, a medida que o tempo avança, pois em menos de nove anos chegaremos ao instante destino da viagem que réplicas nossas podem ter empreendido em 1987. Não acredito, é claro, na possibilidade de viajar-se no tempo, afinal, saímos da máquina naquela tentativa sem termos nos deslocado um só minuto para o futuro ou passado, mas a teoria quanto a réplica dos indivíduos na viagem do tempo pode estar certa e, então, em 2022, meu eu sairá da máquina do tempo no subsolo do Condomínio Jardim América e nem mesmo poderá subir ao solo, pois lacrei a entrada do recinto com concreto. Se conseguir sair, porém, cavando um túnel paralelo, ele, com vinte e um anos, e a namorada, com dezenove, terão problemas, pois procurarão seus remanescentes (nós) do tempo normal e não encontrarão no lugar comum. Eles nem têm idéia de que nosso namoro terminou em 1989, que não nos casamos, que não fomos morar no apartamento duzentos e seis, que não tivemos filhos e que nunca mais nos vimos desde então. Para eles tudo isso será um grande choque e estou certo que o eu de vinte e um anos muito me criticará por ter mudado o rumo das coisas e, com toda certeza, empreenderá grandes esforços para me persuadir a retomar o caminho anterior para realizar sonhos que lhe eram tão caros.

O maior choque que terá, porém, será quando souber que seu (meu) irmão Davi terminou a vida com drogas e pôs fim a própria existência em março de 1995. Nisto terei que ser solidário com ele e confortá-lo muito, pois jamais estaria esperando por tal acontecimento, até porque, quando eu tinha vinte e um anos tínhamos o caso do meu irmão Davi como uma onda passageira. Sendo assim, quando chegar, com essa idade, o eu viajante do tempo não terá preparo para enfrentar a realidade sórdida do Davi, sendo inclusive muito jovem para absorvê-la e saber também que dentre todos os males que atraiu para si, até o tão temido vírus HIV ele adquiriu por volta de 1989/90, decaindo daí para um estado inaceitável aos olhos humanos. Quando tive que enfrentar seu suicídio em 1995, além de já ter vinte e nove anos, houve toda uma preparação psicológica decorrente da progressão dos fatos. Quanto ao eu viajante do tempo, quando chegar em 2022, ele não terá tido nada dessa preparação e, se, com essa preparação, já foi muita difícil para mim sobreviver à tristeza e depressão por causa da perda do meu irmão, muito pior será para ele, pois será pego em completa surpresa e com apenas vinte e um anos. Sofrerá muito e certamente quererá voltar no tempo para prevenir o irmão, como fiz no Natal de 1985, quando o desafiei juntamente com seus amigos usuários a comemorarmos juntos o Natal de 1995 no mesmo restaurante na cidade de Osório. E na ocasião ele chamou-me de careta, dizendo que sabia muito bem a hora de parar, todavia, o tempo do reencontro de Natal chegou e ele já tinha morrido, como em 1985 eu disse que seria se eles não parassem de usar drogas. E, se o eu viajante do tempo voltar a 1987 para prevenir o Davi de sua morte no futuro de 1995, ele ouvirá do Davi as mesmas críticas que ouvi dele naquele mesmo tempo.

Quanto a Joane, a namorada que teria viajado no tempo junto com o eu viajante do tempo, ela ficará também perplexa ao ver o rumo que as coisas tomaram, ao saber que nosso namoro tão afinado durou somente mais dois anos e terminou por motivos tão banais. Não gostará certamente de saber que no futuro não estarei com ela e, tampouco ficará contente de me ver com outra mulher. Estou certo também de que minha esposa não gostará de me ver jovem com outra e muito menos ver meu eu de dezenove anos tentando me convencer a voltar às coisas como eram.

Outro fato que deixará Joane chocada, mas, talvez, não muito surpresa, será saber que o Diego, seu sobrinho, que em 1987 era um bebê, hoje faz tratamento psicoterápico para convencer-se que não matou seu pai, o Telau, ao segurá-lo para ele não bater na Caroline, irmã da Joane e mãe do Diego. Ficará bastante surpresa, porém, ao saber que o Telau morreu de um ataque fulminante do coração por overdose de cocaína aos quarenta anos, em 2006, exatamente no apartamento duzentos e seis, onde o eu morava em 1987, quando éramos concunhados e ele já gostava de usar maconha.

Para sua completa decepção quanto a condução dos acontecimentos e relacionamentos interpessoais, quando, em 2022, meu eu jovem chegar de sua viajem pelo tempo, saberá que as coisas são assim mesmo, que é muito difícil desfazer as decisões tomadas nas encruzilhadas do tempo, pois os acontecimentos não dependem apenas da vontade de um ou dois indivíduos, mas de muitos fatores e indivíduos sem fim.

Se chegasse hoje, ele veria que a cidade não está tomada de arranha-céus pretos e envidraçados como imaginou que seria, embora existam mais que o triplo de prédios de andares e muito mais altos do que os de 1987. A cidade está muito conturbada e bairros que outrora eram quase rurais são hoje outros centros comerciais, tendo, inclusive certa independência do Centro da cidade. Os carros ainda não voam, mas andam se amontoando pelas avenidas e ruas, sendo algumas delas muito mais largas que as daquele tempo, mas, mesmo assim, engarrafadas. Os automóveis não têm ainda aquela aparência espacial dos designs futuristas das décadas de cinqüenta, sessenta e setenta, ao contrário, apesar de que são hoje muito mais velozes que em 1987, andam ainda sobre as rodas e no aspecto aerodinâmico estão tomando formas muito mais trambolhas do que as das década de trinta e quarenta.

Isto tudo, porém, é agora. As coisas vão mudar muito e mais rápido nos próximo nove anos. Antes disso teremos uma Olimpíada e Copa do Mundo no Brasil, tendo Porto Alegre e o estádio Beira Rio como sede, respingando esse evento nas cidades da Região Metropolitana, como São Leopoldo. Em pouco tempo teremos mais uma rodovia federal indo de Novo Hamburgo à Porto Alegre e desafogando o trânsito da BR 116. Também teremos um aeroporto internacional aqui pertinho, próximo aos municípios de Triunfo e Portão, locais, há pouco, muito interioranos. Em pouco tempo teremos também uma rodovia expressa de Sapiranga à Capital do Estado, servindo várias cidades pequenas que, subitamente, se tornam metrópoles. Finalmente o aeromóvel, veículo de transporte fabricado com tecnologia e mão-de-obra leopoldenses, que circula há décadas em países de primeiro mundo, fará uma sofisticada e moderna ligação entre o Trensurb e o Aeroporto Internacional Salgado Filho em Porto Alegre. E, além de tudo, em poucos anos haverá um metrô circulando no subsolo da Capital gaúcha.

Certamente que até 2022 cada ser humano terá seu “grande irmão” (big brother) a seguí-lo vinte e quatro horas por dia e decerto ninguém mais terá privacidade e nem controle da própria vida. A partir de janeiro de 2013 todos os carros terão que possuir um chip localizador e nos próximos sete anos cada brasileiro terá que ter trocado seu documento de identidade convencional por um documento único magnético, que, possivelmente, servirá também para manipulação de dados e transações financeiras. Certamente o dinheiro já será completamente virtual e ninguém mais poderá decidir quando comprar e quando vender, a não ser com a autorização de alguém no controle da vida e contas de todos.

Além disso, muitas catástrofes poderão ter se abatido sobre as cidades, destruindo, talvez, grande parte da vida de muitas delas até esse tempo, entre as quais, a exploração e criminalidade descontroladas, muita violência, inclusive dentro das famílias e entre parentes, muitos problemas econômicos, desemprego, miséria, fome, epidemias, etc., além das calamidades da natureza, que cada dia se torna mais estranha, imprevisível e agressiva.

Por fim, embora pareça meio apocalíptico, pode ser que quando o meu eu viajante do tempo chegar ao instante que selecionou em seu painel de controle na máquina do tempo Jesus já tenha voltado, resgatado os ativistas do Evangelho, e o planeta seja apenas um negro e inóspito amontoado de escombros frequentado unicamente por demônios, conforme foi descrito em Apocalipse que será o período de mil anos após a segunda vinda de Cristo, quando Deus levará daqui aqueles que O escolheram. Então meu eu jovem descobrirá que de nada adianta conhecer o futuro, pois jamais poderemos mudar o passado. Melhor é vivermos o dia de hoje como se ele fosse o último dia, pois, de fato, quando nosso último dia chegar, ele será exatamente o dia de hoje e, se não aproveitarmos o dia de hoje, poderemos não aproveitar nosso último dia.

Wilson do Amaral